Entrevistada: Ana Cely Ferraz
Entrevistador: Jonas Samaúma
Data: 16 de julho de 2025
Local: Recife, Pernambuco
Projeto: Vidas em Cordel, Conte sua História
Código da Entrevista: PCSH 1490
Realização: Museu da Pessoa
P1:
Ana, muito obrigado por estar contando essa história aqui hoje. Ia falar pra você falar seu nome completo e o local onde nasceu!
R:
Eu sou Ana Ferraz. Nasci em Floresta, no Sertão de Pernambuco. E tô à frente da editora há 28 anos, trabalhando com poesia, com cordel — sempre nesse segmento literário, sem fugir da essência da editora, que é o cordel — e trabalhando nesse universo no país inteiro.
P1:
Quais são as suas primeiras memórias de infância?
R:
Minhas memórias de infância são recheadas de muita coisa boa. Meu pai era vaqueiro — um dos maiores da região. Fundou a primeira “Missa do Vaqueiro” em Floresta, que é a mais antiga; são 57 ou 58 anos, eu não sei. Mas é a missa mais antiga e a gente bota dois mil vaqueiros encourados na festa do padroeiro de floresta, então meu pai era um fascinado pela pega de boi. Ele vivia correndo gado. E minha mãe uma era professora primária, mas também era da região rural, de uma zona rural. Minhas imagens são as melhores possíveis, porque era tomando banho no Riacho do Navio, onde meu pai tinha uma propriedade, tomando banho no Riacho do Navio, sempre ouvindo Luiz Gonzaga. Não sei se vocês sabem, mas o pai de Luiz Gonzaga, Januário, era filho da minha cidade, era de Floresta. Então, nasci e me criei ouvindo essas músicas, tomando banho no riacho do navio, que passava dentro da fazenda do meu pai, escutando toadas. Meu pai vivia fazendo toada, brincando, aboiando — porque a lida dele era direto com o gado e com o bode, que é um animal bastante daqui da região do sertão pernambucano. Então, eu vivi isso, e conheci o cordel nas feiras livres lá de Floresta. Minha mãe era professora primária, na zona rural ela vivia escutando, ouvia Juvenal e o Dragão, O Pavão Misterioso. Então, eu tive uma sorte muito grande, porque eu pude conviver, costumo dizer com “a árvore” e dessa árvore que vem a literatura popular. Ela tem o aboio, ela tem o repente, ela tem a cantoria, ela tem a viola…
E aí eu me encontrei. Sou do Sertão e recebi esse presente de trabalhar com cordel há tanto tempo — há 28 anos com cordel — mas já tinha essa bagagem, que era um pai vaqueiro que gostava de aboiar, que vivia correndo as pegas de boi. Então, eu vivia em vaquejada, eu vivia nas pegas de boi. Ele botava a gente na caminhonete e a gente dormia todos em colchões. Então, a minha vivência no sertão foi uma vivência muito boa, andando, correndo cavalo. Ainda hoje levo cicatriz nas pernas de tanto andar, sem bota. No interior, você anda de todo jeito, aí os estribos às vezes rasgavam meus pés… E tenho até hoje essas cicatrizes. E essa coisa boa, que eu saí do sertão, mas o sertão não saiu de mim. Então, eu sempre volto a ir pra esses eventos, estou sempre participando desses movimentos, de pegas de boi, de encontros em fazendas. Sou uma mulher privilegiada, posso dizer.
P1:
Ainda no sertão, você tava falando que sua mãe contava a história de Juvenal e o Dragão?
R:
Sim. Ela era professora, e meu avô — pai dela — vendia bode na região de Itacaratu e Floresta. Ela sempre o acompanhava, como professora e boa aluna que era. Ensinou na região rural, região de Floresta. Ia de jumento. Era uma das professoras que ia nas fazendas dar aula. E aí o encontro com o cordel era sempre nas feiras livres. Todo sábado, em Floresta, havia feira livre e tinham aquelas bancadas onde os poetas vendiam seus produtos. Conheci o cordel com a minha mãe. Quando me mudei para Recife, já vinha com essa vivência do Sertão. Floresta é a última cidade banhada pelo Pajeú. Ali que se encontram o Pajeú, o Riacho do Navio e o São Francisco. Todo o encontro é na região de Itaparica, mas nós somos Pajeú também, porque o rio passa lindamente dentro da minha cidade.
P1:
Mas você se lembra de alguma imagem de quando você chegava na feira, feira? Eram repentistas, ou eram cantadores?
R:
Eram repentistas, na maioria das vezes era aquela dupla de violeiros, sempre tocando, eram os repentistas que ficavam geralmente nas feiras livres. Um poeta ou outro chegavam com seu microfone pra vender o seu produto, que era o cordel e que naquela época era muito forte, porque tinha a questão da divulgação, o cordel tinha um lado jornalístico que era repassar o que tava acontecendo — de guerras, de eventos políticos — na região na época, o cordel tinha essa coisa de divulgar, de mostrar o que tava acontecendo em eixos que no sertão e em zonas rurais não se chegava, apesar das rádios, a realidade eram as rádios que chegavam primeiro que o cordel. Mas o cordel sempre foi um grande divulgador de notícias, de histórias, de tragédias.
P1:
Você lembra do primeiro cordel que você ganhou?
R:
Não, mas eu sempre fui... Eu não lembro o cordel qual foi os primeiros, porque eu sou apaixonada por todos. Todo cordel que chega na minha editora, eu costumo ler. Mesmo que seja só uma encomenda, porque eu sou editora. Eu não sou cordelista, eu sou editora. Então, a maioria dos poetas aqui do Estado que me mandam um folheto para editar, eu costumo ler todos eles. Porque, na maioria das vezes, eu me torno também a agente que vai vender os produtos dos poetas. Eu vou ser a editora que vai vender também em feiras, em bienais de livros, em eventos literários. Então, eu costumo sempre ler muitos folhetos. E tem um que eu gostei muito, que é de Alexandre Morais. É um cordel que eu tenho uma paixão muito grande. Que eu, sertão… Ai, gente, que ele fala em Rogaciano Leite. É um cordel lindo de Alexandre Morais, que é um poeta, um grande poeta, de Afogados da Ingazeira. É “Os Meus Sertões”. Ele fala sobre Os Meus Sertões. É um cordel que fala um pouco... É baseado nos cordéis de Euclides da Cunha.
Então, é um cordel muito bonito. É um cordel que eu tenho sempre assim. Quando alguém chega assim, você... Me indica um cordel, me indica um cordel pra trabalhar. Eu sempre indico “Os Meus Sertões", de Alexandre Morais, que é um cordel lindo, muito poético, com um lirismo, que não dá para descrever a poesia que Alexandre Morais colocou nesse folheto.
P1:
Agora, você criança, você lia os Cordéis ou a sua mãe narrava para você?
R:
Minha mãe, geralmente era minha mãe. Como no passado ainda não é muito distante disso, o Cordel é uma literatura que é muito, muito, muito, é… Esquecida. Ele é um cordel que você trabalha as escolas, as salas de aula, trabalham o que é uma quadra, o que fala sobre o cordel, mas eles não incluem o cordel como ferramenta pedagógica em sala de aula. O cordel já era para ser hoje ferramenta pedagógica em sala de aula, e não é. Nós somos muito discriminados. O Cordel é uma literatura que todo mundo tá achando bonito, porque tá vivendo um momento muito importante como patrimônio material, um título dado pelo IPHAN. Em inúmeros patrimônios vivos, a gente vê que o Cordel, hoje, ele viaja, na arte, ele viaja na música, ele viaja na literatura. Em todos os segmentos, o Cordel hoje está muito em evidência. Novelas globais, Rede Globo, postando novelas onde o Cordel e o Repente e a cantoria são destacados, mas, ao mesmo tempo, é muito discriminado no meio acadêmico. Tanto no meio acadêmico, como nas salas de aula, como um olhar diferenciado também do governo, seja federal, seja municipal. Você não vê as escolas comprando cordel. Você não vê o governo comprando cordel. Você vê o cordelivro, que a gente costuma chamar, que o cordel tem, e é importante que o Cordel, hoje, entre nesse segmento de livros, porque se for nesse formato que a gente trabalha a literatura, no tradicional formato 11x16, a gente já não consegue colocar, porque é difícil você colocar numa livraria, não existe canto para Cordel em livrarias. A gente tem uma barreira muito forte ainda. O Cordel com a população, não tem. Nós não temos Cordeltecas, pouquíssimas Cordeltecas no país, e o Cordel termina sendo um produto que não é interessante nem para as escolas terem nas bibliotecas, nem faz. Não tem facilidade. Então, o livro veio para isso. O texto do Cordel é em Cordel, mas se formou tipo um Cordelivro porque hoje temos os livros, com a poesia de Cordel. Então, facilita hoje. Mas, mesmo assim, a compra governamental é muito pequena porque o olhar é muito discriminatório para a literatura popular.
P1:
É, massa demais. Eu queria saber um pouco sobre como era a oralidade. Você falou que seu pai era vaqueiro, né? Como é que era assim a cultura da oralidade? Você ouvia, tinha muita contação de estória, muitos cantos?
R:
Ele costumava contar sempre as lendas no sertão, que era a perna cabeluda, que era como aqui na capital a gente vê muito. Eu pensava que era umas coisas muito só no sertão do Pajeú, no sertão de Itaparica, mas não, é uma coisa que é geral, que a gente não costumava contar. E eu lembrava de meu pai contando, a lenda do Papa Figo, da Caipora. E lá, sim, ele... As almas. A gente sempre que ia para a fazenda de minha avó, que era no distrito de Floresta, e ele costumava, gostava de viajar de noite, levava a gente de noite. Ele ficava contando aquelas coisas. A gente passava aqui e eu escutava um uivo. Meu pai foi vereador na cidade em 1960, eu acho, sei lá. Não lembro bem, mas ele foi um dos vereadores mais votados e ele costumava bater a região, município, que é um dos municípios maiores do Estado de Pernambuco. Ele batia, ele gostava de ir de cavalo até Ibimirim, até Betânia, até Serra Talhada. Ele ia montado, ele gostava, então ele conhecia muito a região. E aí ele ia contando aquelas causas que o povo dizia que passava, que tinha uma certa passagem, que tinha uma alma penada lá, que quando o cavalo passava ela assoviava, e ele tinha sempre essas coisas de contar de almas penadas, né? E eu morria de medo, minha irmã não dormia se fosse… Na época que não tinha luz. Eu ainda cheguei a pegar uma zona rural, na fazenda do meu avô, de minha avó, que não tinha energia, né? E minha irmã mais velha, Adriana, ela não dormia de maneira alguma se não tivesse uma luz.
Então, dava cinco horas da tarde, papai tinha que despachar ela para a cidade, porque ela era a única filha que tinha medo dessas histórias que eles contavam, nessas brincadeiras que eu acho que na realidade eram mais brincadeiras para assombrar, para botar nóis, assim, os filhos, dormir mais cedo do que realmente, mas assim, tem umas histórias, tinha de onça, eu lembro de um tio-avô meu que contava… Eu peguei uma carona de jumento da fazenda de minha avó, porque só ia carro uma vez na semana, ou de Floresta, ou de Betânia, e eu pra voltar pra Floresta ou pra Betânia, não queria ficar só na fazenda, pegava uma carona com um tio-avô meu que era bem velhinho e eu ia montar no jumento e ele tinha umas passagens que ele dizia, será que apareceu uma onça?
Aí eu pensava, pronto, se a onça aparecer eu te peguei, pega ele, né? Porque ele era bem velho e não tinha condição de pular do jumento, se vai morrer é eu e ele. E eram essas histórias assim que eles contavam de onça pintada que atacava, que chegava de madrugada e hoje a gente vê ainda. Hoje, a gente tá vendo as onças voltando. Aconteceu um caso em Carnaubeira, vizinha da minha cidade, e em Belém de São Francisco, de onças. Não é onça pintada, mas aquelas onças menores que estão atacando, o desmatamento tá fazendo com que esses animais voltem pra... Chegando na civilização.
P1:
Você chegou a vivenciar uma história dessa?
R:
Não, não. Mas em todos os jornais tem saído. Teve casos bastante machucados. Acho que são as onças jaguatirica, né? Que são as menorzinhas, do tamanho de um cachorro. Mas que tá havendo alguns ataques no sertão. Hoje, né?
P1:
E quais eram as suas brincadeiras de criança?
R:
Gente, eu brinquei de tudo. Brincava de peteca. Toda criança que saiu do sertão... Nós não tínhamos riqueza. Meu pai era agricultor, vaqueiro, e deixou de correr vaquejada porque ele perdeu o olho, com espinho, e depois disso ele presenteou outras pessoas, com o gibão, tudo dele, ele não fez mais depois que ele perdeu. Ele não tinha uma visão, meu pai. Mas você não notava, porque o olho do meu pai não secou. Foi um espinho, mas ele ficou perfeitamente assim, o olho não secou. Geralmente, com espinho, os olhos secam, murcham, né? O do meu pai ficou perfeito, mas ele perdeu a visão total de um olho correndo vaquejada, e depois disso ele parou e se dedicou só à agricultura e à criação, que ele tinha criatório de bode e de boi na região, que era muito pouco na época, de seca, de tudo, mas assim, peteca, bola de gude, tudo que eu tinha de brincadeira de crianças, eu brinquei todas. Eu tive uma infância muito feliz.
P1:
Você tinha irmãos?
R:
Sim, éramos cinco. Era Adelson, mais velho, foi assassinado em Floresta. Por causa dessas brigas de família, Ferraz, Novaes. Meu irmão era policial e foi assassinado, sem dever. Nada a ver. Só porque quando mata um, tem que matar da outra família. É uma coisa que é bem triste na região. Aí tinha Adriana, minha irmã, que morreu infartada. Era professora, morava em Betânia. Era apaixonada pelas pegas de boi. Ela, mais do que eu, vivia dentro de pega de boi. Por morar lá também, tinha mais facilidade. Faleceu também há três anos atrás. Infarto fulminante, tinha 52 anos. Aí tem Alessio, meu irmão, que mora aqui. E a Amanda e eu. Éramos cinco, aí ficamos três. Aí os três moram aqui em Recife. Mas a gente não se desligou de lá. A gente tem a fazenda, a gente tem a casa dentro de Floresta, onde eu vou. De seis em seis meses eu gosto de ir. Sempre tem um evento em Serra Talhada, ali na região do Pajeú, que aí eu sou convidada, eu vou e aproveito e passo em floresta, que são 92 quilômetros, pra ver como é que tá a fazenda, como é que tá tudo lá.
P1:
E você acompanhava no roçado também? Você chegou a…
R:
Não, não, não. Era só mesmo pra ir tomar os banhos de riacho, ficar na casa de minha avó, passar a semana na casa de minha avó, em férias. Mas viver mesmo, eu acho que a Adriana e o Adelsinho, meus irmãos mais velhos, chegaram a morar na zona rural, na Varjota, que é uma zona rural que pertence à Floresta, uma vilazinha que pertence à Floresta, não é distrito. Mas eu, a Alessio e a Amanda, nós três já ficamos na cidade mesmo. Não moramos no...
P1:
E o que você lembra da escola? Assim, marcante.
R:
Eu sempre fui uma pessoa meio... Como é que você quer dizer que você era tão tímida assim, se você não era? Eu sempre, em apresentações escolares e em tudo, gostava de participar de tudo, mas... Eu tive muita sorte. Eu peguei umas professoras maravilhosas. Na região de Floresta, é muito forte a educação. A educação lá é muito forte. E eu tinha dentro de casa minha mãe, minha irmã mais velha e a minha irmã caçula, todas três formadas. Eu tinha terminado o magistério, eu era professora. Minha mãe a vida inteira foi professora. A Adriana, minha irmã, também professora. Então, eu tinha um... E tenho até hoje. Eu participo de concursos literários na minha cidade. O pessoal me convida por eu ser editora, mas eu, principalmente, por eu ter o conhecimento de Floresta. Além de editora, eu sou produtora cultural. E Floresta foi onde tudo aconteceu com a história de Lampião. A história de Lampião não foi em Piranhas, não foi em Mossoró, começou em Floresta. Ele morava numa zona rural que ficava entre Floresta e Serra Talhada, e a briga dele foi com os nazarenos, inclusive com a minha família Ferraz. Então, eu sempre busco, todas as vezes que vou em Floresta, me interagir com as pessoas que trabalham com a cultura para desenvolver mais esse trabalho lá. Porque a gente vê Serra Talhada como a terra do Xaxado, como a terra de Lampião. Mas Lampião nunca teve briga dentro de Serra Talhada. A história de Lampião era Floresta. Era fugir como fugiu, como foi embora. E foi fazer... Foi onde o Cangaço surgiu e ele saiu, mas os inimigos dele, que ele considerava inimigos, eram os florestanos, eram os nazarenos. Então, minha cidade tem uma ligação forte. A gente teve em Floresta também uma coisa que foi a rebelião, praieira do sertão, foi também em floresta, foi na Serra Negra, pertence também ao município. Então, a gente tem muita cultura lá, temos as aldeias indígenas, a gente convive. É uma coisa normal você conviver com os quilombos, com os índios, com os ciganos. Lá não teve, eu não via muita diferença de você andar com o cigano, porque é tudo muito, como é que eu posso dizer, as pessoas tem medo de se aproximar aos ciganos, e lá em Floresta nunca teve isso. A gente convivia com ciganos, convivia com negros, convivia com índios. Convive, convivia não, convivemos. É uma cidade que é muito cultural e eu costumo muito falar dela porque assim, foi muito forte em meus ensinamentos lá. Tem um grande professor, que é João Luiz, que é um dos homens mais conhecidos na região, porque ele faz um trabalho maravilhoso em todas as comunidades tradicionais da região. Ele é o cara que todo mundo procura, inclusive quando chegam aqui. Eu acompanhei a Rede Globo durante 15 dias, a RTV, que é a afiliada da Rede Globo em Campinas, que é uma das maiores afiliadas de Campinas em São Paulo. Eles vieram passar 15 dias e um amigo meu indicou, que ele era Anselmo Alves, que é um produtor muito conhecido ali, trabalhou muitos anos na Rede Globo, e ele indicou que eles me acompanhassem, porque eu era filha de um vaqueiro e eu era muito envolvida na cultura da região. E eu passei 15 dias com ele fazendo boiadeiros do Brasil. A história era boiadeiro do Brasil, mas eles fizeram um trabalho na Índia, onde o boi é sagrado. Aí eles vieram aqui para Pernambuco, eu acompanhei 15 dias, fui para a Floresta, fui para Caruaru, onde um fotógrafo maravilhoso fez um livro sobre o couro. Não sei se é esse livro. Não, é essa da Missa do Vaqueiro 40 anos. Mas ele é um fotógrafo que trabalhou durante muitos anos no Diário de Pernambuco, em alguns jornais aqui. Então, a gente fez matéria com ele, em Caruaru, a gente foi pra Floresta, fomos pra Serrita, visitar o mestre, que era celeiro, que era quem fazia o gibão, toda a vestimenta de Luiz Gonzaga.
E, em Floresta, a gente fez, inclusive, assim, não era um período de pegas de boi, porque a região é muito grande. Floresta, eu acho, hoje, é um município que mais tem pegas de boi. Toda semana você tem uma pega de boi em alguma região rural do município. E lá nesse dia não teve, mas aí eu chamei uma vaqueira, que é bem conhecida lá, Soneide, já foi homenageada. É uma mulher que trabalha com a lida do gado. E ela juntou 20 vaqueiros pra gente fazer tipo uma encenação de uma pega de boi, pra que nós não perdêssemos esse pessoal lá no sertão de Floresta, então a gente entrevistou aboiadores, muita coisa assim, muita coisa bonita. O sertão hoje não tem aquele sertão triste. Eu estava até ontem brincando, fui na Finearte e várias imagens de escultores, de artistas, em que eles trabalham ainda com aquela imagem dos retirantes. seja no barro ou na madeira, os retirantes. E a gente não vê mais isso no sertão. Você vê um sertão muito vivo, muito autêntico, uma coisa que a poesia é muito forte, é impressionante como a poesia, como a literatura é tão grande, tão vasta no sertão do Pajeú e de Itaparica.
P1:
Interessado em saber essa história que você contou do Lampião com a sua família…
R:
Sim, sim, era a família Ferraz, era os Ferraz de Nazaré quem travaram a briga com o Lampião, foi quem botaram o Lampião, mesmo o Lampião, porque na realidade foi o seguinte, a briga de Lampião foi com o Zé Saturnino, era um vizinho e compadre dele, onde houve as mortes e tal, mas quem naquela época, os coronéis, e minha família tem muitos coronéis, hoje ainda na polícia, na época não eram, não sei se seriam de patente, mas tinham muitos coronéis de patente e tinha outros que chamavam de coronéis sem ser coronel. E eles... Ficaram do lado do Zé Saturnino. Na realidade, eu acho que o Zé Saturnino devia ser um fazendeiro mais equilibrado financeiramente e o Lampião não, que era mais humilde. E os coronéis ficaram, obviamente, do lado de quem tinha mais poder também. E essa briga, até hoje, em Floresta, ninguém acha Lampião um herói. Eu tenho duas imagens grandes de Lampião que eu comprei, Lampião e Maria Bonita, que tem na minha sala, e minha mãe dizia, ainda bem que seu pai não está mais vivo para ver isso, porque ela dizia que era um absurdo eu colocar imagem de dois vilões, dois assassinos, e eu botar como se fosse imagem de um santo na minha casa. Então, ela não perdoava, porque meu avô se vestia de cangaceiro, de volante para ir também atrás de cangaceiro, para ir atrás. Raul Ferraz, meu avô, e o meu tio-avô, Manoel Ferraz. Então, eles tinham também essa coisa de procurar matar Lampião, porque Lampião ameaçava o tio-avô, que era Horácio Ferraz. Então, a gente tem essa ligação, mas a gente não discute Lampião muito em Floresta. Eu fui, levei, convidei algumas pessoas, através de uma amiga minha, que era sobrinha da prefeita, e eu disse vamos ver se a gente começa a botar o povo para estudar um pouco Lampião, a história de Lampião, porque naquele… Há tempos passados só era o Lampião e o outro lado, ninguém escutava, né? Tinha os coiteiros, que eram os que acompanhavam Lampião, que defendia o Lampião, e tinha o outro lado que era o que achava o Lampião bandido. Então, na minha região, Lampião nunca foi herói, nunca teve essa coisa de Robin Hood do sertão, como Serra Talhada e outros municípios. E eu fico muito triste porque os outros municípios todos trabalham Lampião, a história de Lampião. E minha cidade, ela não tem muito querer pra falar de Lampião, pra estudar Lampião, pra falar sobre Lampião em sala de aula, não. Lá é muito seca a história dele.
P1:
E como foi que começou essa sua jornada como editora?
R:
Então, eu... Durante essa confusão, essas brigas de famílias em Floresta, entre a minha família e a outra família, que eram os Novaes, meu pai buscou tentar tirar os filhos de lá, da cidade. Eu fiquei, acho que fui a última a sair de casa. Eu tinha um filho pequeno, o Léo, eu tive um filho com 17 anos de idade e eu ficava mais no sertão, não queria vir para a capital. Meus irmãos já moravam na capital, meus irmãos já tinham todos saído de casa e só eu que resistia e eles, não, vamos sair porque aqui não está dando mais para ninguém não, porque é só eu e a sua mãe. Terminou que eu vim, deixei meu filho, meu filho foi criado com meu pai, ficou com meu pai e eu vim para a capital, aí… Logo cheguei, conheci Igor, que é meu ex-marido, né? Foi meu companheiro durante 25 anos. E o pai de Igor, que era Ivan Maurício, jornalista, um dos maiores nomes da imprensa pernambucana, era editor do Diário de Pernambuco. E foi uma época, assim, saindo de 1980 entrando pra 90, deu aquela história que o Cordel estava morrendo, o Cordel não estava tendo mais vida. A imprensa sempre dando que o Cordel estava morrendo, sem estar, porque tinha fechado naquele momento a Casa de Cultura, a casa de cultura não, a Casa da Criança de Olinda, onde Baccaro era o cara que gerenciava e era uma gráfica grande, onde ele imprimia e comprava os originais dos poetas, aí foi naquele momento que estava fechando e Ivan como editor do diário, ele ficava, não sei se você conhece, o Diário de Pernambuco era ali, lá perto da Guararapes, e tem o primeiro, o segundo andar, e Ivan ficava, dizia ele, que ficava olhando os cantadores, os poetas, José Soares era um deles, que ficava cantando e declamando, e eles diziam que o cordel tava se acabando, né, porque não estava tendo mais, e daí surgiu fazer uma editora. Ele, Bernadette Lopes e Antônio Eymard, o esposo dela, em Olinda. Aí começaram a fazer essa editora. Só que com pouco tempo depois ele foi convidado. E aí eu já estava namorando com o filho dele, já casei logo. Acho que... Para não voltar para o sertão, casei logo. E ele foi embora, ele foi convidado, na época Miguel Arraes, acho que foi um pedido de Miguel Arraes para tirar Ivan, pelo que falavam, do Diário de Pernambuco, ele como editor, e ele foi convidado para fazer a campanha, através de Antônio Lavareda, que é um grande marqueteiro aqui, foi convidado para fazer a campanha de Tasso Jereissati como governador no Ceará. E aí ele, eu tinha perdido meu pai, tinha tido o segundo filho, e ele virou pra mim brincando e disse, Aninha, você quer tocar a Editora Coqueiro?
Eu já na casa dele todos os domingos, a gente se reunia, porque ele costumava juntar os filhos nos finais de semana, e sempre tinha José Costa Leite, sempre estava presente nesses eventos, ele vinha no final de semana, para trazer originais para Ivan produzir e fazer o cordel. E, nisso, eu ficava sempre brincando. Se tem uma das coisas que me divertem é sentar com poetas, ou no Mercado da Madalena, ou em qualquer canto, e eu escutar eles. Eu passo o dia escutando esses poetas, eles contando as histórias, os versos. E muita coisa engraçada. Costa Leite tinha um lado que era muito cômico. Ele gostava de trabalhar muito gracejo, O Peito que a Nega Deu, a Mulher, o Periquitinho e a Rolinha de Jacinto, eram temas que ele usava... Ele mexia com a cabeça.
A gente pensava que era uma imoralidade, que era uma coisa safada, era uma safadeza dele, mas não era, era realmente um pássaro, era o Periquito e a Rolinha, que eram dois pássaros brigando. Então, assim, eu me divertia muito a escutá-los. E aí, o Ivan via… Eu, obviamente, nasci no sertão, tinha mais condições. Quando ele veio me oferecer a Coqueiro, na hora, não tenho nem... Ou sim, você consegue, você acha que dá certo, bom, vamos tentar, né? E aí, tá com quase 29 anos, eu tô aqui ainda.
P1:
Mas por que que ele falou vou te oferecer?
R:
Porque os filhos… Meu ex-marido é publicitário, a coisa comigo não era muito de trabalhar com o atendimento, nunca foi, o Igor ficava sempre, obviamente, do meu lado aqui na editora, como sempre ficou até hoje, mesmo separado, nós estamos há seis anos separados, mas a gente trabalha junto ainda, tocando os projetos da Coqueiro quando surge, mas ele sempre teve a produtora dele, ele tem um canal, ele tem um canal, que é o Canal Capibaribe, que é um canal comunitário aqui, um ponto de cultura, e que ele sempre gostou de produzir.
A vida inteira dele foi produção. Então, ele ficava na gráfica, porque nós tínhamos um parque gráfico aqui, e com a produtora. E eu ficava à frente do atendimento, da visita aos poetas, de fazer esse contato e de fazer essa primeira, como é que eu posso dizer, o contato mesmo com o público seria eu, porque ele sabia que os filhos já não tinham essa coisa. E me ofereceu, eu aceitei de bom grado, sou muito grata a ele. Ele sabia em vida, faleceu há um ano atrás, mas eu sempre disse que foi o maior presente que ele pôde me dar para a Editora Coqueiro.
P1:
Aí você recebeu. No momento que você recebeu, qual foi o seu primeiro pensamento? Que você falou, ah, vou fazer o quê?
R:
Eu vou ter que fazer diferente, né? Porque ele não tinha... ele era um... Como é que eu posso dizer? Ele era um ativista apaixonado pelo Cordel. Mas ele não era um empresário com o olho diferenciado. Ele era um hobby. O Cordel, para Ivan, foi meio que um hobby. Ele amava e, se ele pudesse, ele bancava tudo do bolso. Ele não tem negócio de retorno financeiro. Aí, quando eu entrei eu disse, não, a gente vai ter que... O dinheiro tem que... Eu não vou poder trabalhar pra você me pagar uma coisa que não vai dar lucro às vezes. A gente tem que botar o Cordel pra dar lucro. E foi aí que eu entrei nas Bienais. Acho que eu fui das que tive coragem de enfrentar a primeira Bienal do Livro, há mais de 20 anos aqui em Pernambuco. Todo mundo dizendo, vai dar não, vai dar não, você não vai pagar os custos e tal. E assim, eu tive uma ovelha de mais de 20 mil na época. Foi um estouro de dinheiro. Eu vendi o que tinha, o que não tinha. Deixei pra vender mais depois. Porque foi um estrondo. E o cordel hoje é um grande fenômeno. Na primeira que eu fui aqui em Pernambuco. Eu acho que fui das poucas que me atrevi a pagar um estande de Bienal do Livro pra poder vender cordel. E consegui, foi um sucesso, depois disso não parei.
P1:
E qual foi a outra sacada pra fazer o cordel dar lucro, dar certo?
R:
Na realidade, o cordel em si não dá tanto lucro. O que dá lucro pra mim é fazer os livros. É as encomendas. O cordel é o meu carro-chefe. Eu levo o cordel pras feiras de livros. Mas o que eu ganho é na produção gráfica. E hoje o cordel, assim, posso dizer que ele tem feito muito… Cordéis institucionais. Então, já fiz para Olinda mais de 70 mil folhetos de cordéis na época de Dr. João Veiga, que foi secretário numa época em Olinda, na gestão de Luciana Santos, e ele fez um montante muito grande de cordéis sobre a saúde. Ele me disse assim, eu quero ouvir poetas. E quero que esses 20 poetas escrevam sobre filariose, hanseníase, pressão alta, AIDS. Eu fiz 20 títulos sobre saúde e que foram um sucesso. Porque ele dizia que fazia aqueles panfletos, os panfletos para distribuir. E que esses panfletos eram fáceis de encontrar no meio das ruas. E o cordel ele não viu no lixo. Ou seja, as pessoas que receberam a literatura do cordel educando como você tratar uma hanseníase, se você já teve, se você não tem, como evitar uma hanseníase, uma filariose. Então, esses folhetos não foram jogados no lixo, as pessoas guardaram esses folhetos. Então, foi uma campanha de muito sucesso em Olinda, que deu certo. E hoje a gente vê muito, eu recebo muitas encomendas, as maiores encomendas que eu recebo são institucionais, são de empresas, são de encomendas, falando sobre o que é cada empresa, o que cada empresa representa através da literatura de cordel.
P1:
Nesse período todo, qual foi o grande desafio que você passou com a sua editora?
R:
Olhe, eu costumo dizer que aqui o meu maior desafio é trabalhar com os poetas. É juntar. Porque a gente perde forças. O Ceará tem várias associações e tem academias de cordel. No Rio Grande do Norte, também, temos a Casa do Cordel, que Nando Cordel é um poeta, quem cuida. Rio de Janeiro, Academia Brasileira do Cordel. E aqui a gente vê que os poetas costumam muito trabalhar só entre si. Os poetas pernambucanos não levam, não é que não levam a sério, mas a maioria dos poetas pernambucanos tem sua segunda profissão, não vivem da poesia popular. O que lá no Ceará tem muitos que sobrevivem e vivem da venda do folheto, aqui nós não temos. Então, lá eles se juntam mais para fazer produção, para se venderem. E, com isso, conseguem botar livros... Você viu que o eixo Rio-São Paulo... Eles veem o Cordel muito mais no Ceará. Eles não têm uma visão muito voltada para Pernambuco. Por quê? Porque em Pernambuco os poetas costumam trabalhar muito eles, não unidos, numa união mais... que facilitaria. Eu sempre digo assim, vou lá conversar com o Secretário de Cultura do Estado, ele leva um ou dois poetas. Aí gera uma ciumeira, dois ou três têm um ciúme, não querem participar porque fulano vai e tal. Isso nos atrapalha muito, porque a coletividade eu acho que é muito importante no Cordel. E aqui nós temos... Pernambuco eu não conheço. Estado nenhum que me perdoe os outros que façam trabalho tão gigante, tão bonito com a literatura popular, com a poesia do que o sertão, do Pajeú, o Estado como um todo, mas a do sertão do Pajeú é de tirar o chapéu.
P1:
Tirei o meu aqui. Qual foi o momento que você viveu no sertão do Pajeú que traga essa força da poesia popular na sua vida que você viu?
R:
Todos os momentos que eu vou no Pajeú são diferenciados.
P1:
Pra quem não conhece, você pode contar alguma história sobre a poesia popular de lá?
R:
Gente, o que eu tenho a dizer do Pajeú é que é uma região que é... Não tem como se explicar o que é a região, o Pajeú. O Pajeú de cima, que é São José do Egito, Tabira, Afogados da Ingazeira, Carnaíba. Eu acho que o povo nasce fazendo poesia porque não tem explicação. É uma coisa que você, conversa com Antônio Marinho, fica chocada, deslumbrada com ele. Antônio Marinho é um jovem que é uma coisa que tem que ser estudada, porque é muita poesia. Ele fez o documentário, não sei se vocês conhecem, o Rio Feiticeiro, em que eu participei. Eu fui a única mulher que não era poetisa, que não era cordelista, mas que deu o depoimento, porque era falando sobre o Rio Pajeú, foi um feiticeiro, e foi a última cidade que ele foi fazer. Ele pedia licença, deixa eu dar um momentinho só, ele abria tudo em verso, ele só pedia licença, para ele tal, Aninha, como é o nome disso aqui, como é o nome dessa fazenda, como é o nome do seu filho, e daqui a pouco, só um instantezinho, quando ele voltava, ele já havia com o verso pronto. Quem é que faz um negócio desse na hora, gravado na hora? Não tem explicação. É realmente um dom muito grande e que Pernambuco é um estado que não... Não tem explicação com a poesia, com a literatura. E eu falo com a literatura agora como um todo. É erudita, é popular. ela é muito forte aqui. Nosso estado é grandioso.
P1:
Você poderia contar um pouco da sua trajetória nessa coisa da literatura das mulheres daqui também?
R:
Sim, sim, pois é, eu comecei a editar. Eu sempre buscava, porque você termina ficando muito... Eu comecei a trabalhar com cordel, com a editora, com 20 e poucos anos. Então, a literatura a gente sabe que é um ambiente muito masculino. Toda a literatura em si tem muito mais homens produzindo, trabalhando. E eu era vista muito assim. Aquela menina não sabe nada. O que essa menina tá fazendo aqui? O que essa menina tem? E eu buscava gente. Aí tinha uma que não tinha coragem. Eu lembro de duas figuras, logo que eu comecei, que era a Fátima Correia, que é lá de São José do Egito. E Fátima, Fátima Correia, e tinha outra Fátima, que era também... Tinha vergonha, se não publica, vão publicar.
Então, eu sempre busquei muito as mulheres pra estar junto, muito, muito as mulheres. E hoje a gente vê que estão produzindo mais do que os homens. Eu falo hoje pela região metropolitana, eu vejo a produção feminina muito maior do que a produção masculina. As mulheres não são só hoje apenas a rainha do lar, a dona, a mulher do lar. E a gente, quando fala em mulher, a gente vê como hoje o provedor da casa. A mulher é quem hoje cuida de uma casa. E aí é o tempo, ela fala sobre a maternidade, ela fala sobre esses cuidados de família. O ser mulher, que é muito difícil a gente ver essa onda de feminicídio, não só aqui em Pernambuco, mas em todo o país, muito forte. E as mulheres fazendo verso com coisas muito interessantes que ninguém quer discutir, que as pessoas querem botar debaixo do tapete as suas histórias. Elas não. Elas estão hoje botando as suas histórias para fora. Elas estão hoje mais encorajadas. Acho que a literatura faz um pouco isso com elas, encorajam. E é muito bonito você ver a produção delas, do que elas tão... Acho até que a literatura é uma forma de você fugir também do que dói, do que faz você sofrer. E isso elas estão fazendo muito bem. Muito bem. Elas estão fazendo literaturas lindas. Elas estão fazendo literaturas que é inexplicável. a Mariana Bigio, que faz um trabalho com a literatura infantil, com contação de estória, com música. Uma pegada totalmente diferente. Aí a gente vê Susana Morais, uma sindicalista, uma mulher bancária, uma lutadora, sabe? E fazendo poesia também totalmente diferenciada da de Mari. Aí tem a Ângela Paiva também, que é outra grande poeta. Érica Montenegro, que é a... Eu tiro o chapéu para essas mulheres.
A Érica é uma grande pedagoga. Onde ela está dentro, ela leva o cordel, ela mostra o cordel. A poesia, como vem forte, apesar de ser de Campina Grande, mas mora aqui há muito tempo, em Pernambuco. Rivani Nazário, que é a gente chama, chamava a cangaceira do cordel, mas é uma professora também. A Madalena de Castro, é muito… Belinha, lá no sertão, então não vou nem falar. Porque o sertão, a mesa de glosa, está ganhando uma repercussão nacional em todos os grandes eventos literários. As meninas estão se apresentando e, assim, uma coisa linda de se ver. Porque antes, no movimento, só eram homens, aquela coisa bem machista. A literatura é um pouco machista. Ela tentou por muito tempo excluir as mulheres. E as mulheres foram muito mais além. Elas estão aí desbravando ainda coisas que eu fico impressionada. Impressionada com a escrita feminina não só no estado de Pernambuco, mas no Brasil inteiro.
P1:
Você, na sua vida passou alguma discriminação, assim, por ser mulher nesse meio da literatura?
R:
Muita! Muita. Muito assédio. Muito assédio. Chorei muito, trancada em um quarto de hotel, os abusos. E eu, uma mulher casada, não podia ligar para meu marido para dizer o que estava acontecendo. Eu tinha que me defender. Era um momento em que eu tinha que ter voz, com os poetas que achavam que, porque eu estava tomando uma cerveja no final de um evento, eu tava dando liberdade. Porque eu tava achando graça, eu não podia rir, porque se você rir, você tava dando liberdade para que eles achassem que eu estava… Então, foi muito doloroso. Teve muitos eventos bem complicados para mim, de forçamento mesmo, de tentar entrar em quarto, no meu quarto do hotel, e tentar entrar... Sabe?
P1:
De tentarem entrar no seu quarto?
R:
De tentarem entrar. “Mas eu achei que você quisesse”. E eu, na minha, devagar, na minha, dei meu recado. Mas muito difícil. É muito difícil. Hoje eu vejo cordelistas serem assediadas nas brincadeiras. Aí elas olham pra mim assim, como se dissessem, você viu? Eu disse, estou vendo. É uma coisa constante. Isso não muda, né? Essa coisa do… Da mulher porque, sabe, porque tá ali naquele universo, porque tá vendendo seu folheto, porque não pode brincar, porque não pode tomar cerveja com você, ou com A ou com B, porque se tomar cerveja tá dando liberdade, porque se você tiver brincando e rindo, se eu tiver contando uma piada pra você e você achar graça, eu já tô dando espaço. Então, é muito complicado, muito complicado. Eu tive inúmeras situações muito constrangedoras em que eu engoli e que eu entrava pra dentro do meu quarto, chorava, chorava, no outro dia levantava, encontrava o poeta na mesa, no café, nos hotéis, e tudo bom, poeta? Tudo bom… Fazendo de conta que não existiu, que não teve nada, e ele saber, ele entender que aquilo ali tinha sido uma coisa muito grave, que eu poderia abrir a boca, que eu poderia dizer, que eu poderia falar, e eu sempre relevei, mas dando, assim, minha… Minha fala tinha que ser para eles pararem e entenderem que eu tava ali em prol de uma coisa, de um trabalho que eu respeitava muito e que, do mesmo jeito que ele respeitava o homem que tava ali, aquele editor macho, ele tinha que respeitar a fêmea que eu era. Muito difícil. Ainda é muito difícil.
P1:
Não deu uma evoluída?
R:
Não. Se eu disser a você que evoluiu, muito pouco. Eu, no estado de Pernambuco, eu não tive muitos problemas, não. Acho que aqui os homens sabem um pouco respeitar esse limite da editora com o poeta, mas em outros estados foi coisas bem pesadas, bem bizarras. E eu sei que acontece com as amigas, com as meninas, que eu abraço, que são as corda lixa, e eu como editora me sinto até no direito também de falar, ó, se fulano chegar assim, você tome uma... Ter uma certa postura, seja mais... Sabe? Porque acham que porque a gente brinca, porque a gente é mulher, porque a gente ri, porque a gente não pode. Eles podem tudo, nós não.
P1:
Você, na sua trajetória como editora, qual foi as ações que você fez na educação do Cordel como ferramenta de educação?
R:
A gente tem discutido muito, é uma fala minha constante em todos os eventos que eu vou, seja em palestras, seja na universidade, bate-papo, discussões informais. Para mim é o que é mais importante, porque se o Cordel não estiver na sala de aula, nós nunca seremos reconhecidos, entendesse? É muito difícil. Vender cordel em feirinha, como eu vi ontem, eu fui lá na Fenearte, eu vendo os poetas lá, os parceiros meus vendendo cordel. Não, o cordel não tem que estar junto, porque tem o folclore de dizer que o cordel é folclórico e não é. O Cordel é uma literatura e precisa ser respeitada, precisa ser trabalhada. Não adianta eu estar aqui falando para você e vai sair depois lá no Museu da Pessoa e eu ser depois entrevistada no Diário de Pernambuco, ou na Globo. E o Cordel está nessas feirinhas, nesses eventos pequenos, numa Bienal e olhe lá, feira de livros. Não! O cordel, para ser reconhecido, tem que estar na sala. A gente precisa que o cordel, que é uma leitura fácil, é uma leitura rápida, mas não é uma leitura, não é uma literatura fácil de fazer. Então, precisa ser trabalhado isso, precisa ser discutido. O Cordel precisa ter esse reconhecimento. Nós não temos esse reconhecimento nas academias, nas academias de letras. Não temos. Nós somos considerados uma literatura ainda diminutiva.
O cordel é bonitinho, mas você pagar para um poeta escrever um cordel, ninguém quer pagar. Reconhecer que um poeta tem trabalho de pesquisa, porque o cordelista é procurado para fazer um trabalho de cordel, seja uns 15 anos, seja um aniversário, seja um casamento, para uma empresa, uma instituição, qualquer coisa, biográfico, ele tem que fazer uma pesquisa, ele tem todo um trabalho. E a gente vê que o cordel hoje, ninguém quer pagar cinco reais no cordel. Ninguém quer pagar. Não, mas eu vi ali de dois reais. Gente, dois reais não está pagando mais nem o papel. Não se paga mais o papel. E o trabalho. E aquilo ali é uma literatura. Entendesse?
Então, se o cordel não estiver na sala de aula, trabalhando com as crianças, fazendo com que a cadeia produtiva do cordel se movimente e ganhe dinheiro, a gente não tem distribuidora de cordel. Não temos onde distribuir cordel. A não ser em lojinha de artesanato.
As livrarias fecham as portas, porque não querem abrir um espaço para fazer uma cordelteca ou um espaço diferenciado para fazer expositor com os cordéis. As livrarias não querem botar isso. Então, é muito difícil de você trabalhar o cordel. É muito difícil você vender o cordel. E se ele não tiver na sala de aula, aí é que não tem. Porque vai virar um produto que não é literário, um produto que é folclórico, um produto que vai viver anos e anos, uma literatura centenária vai viver mais 100, 200 anos na mesma coisa. Por quê? Porque a escola, onde é o lugar dela, é o lugar; e outra, a nossa literatura é a única. É no Nordeste, isso tudo surgiu aqui. Não foi lá em Portugal, métrica, rima e oração, nem... Não, foi aqui que isso tudo começou. Então, é uma literatura nordestina, é uma literatura que precisa de reconhecimento, sabe? E eu não falo de reconhecimento dos de baixo, não. Eu falo lá de cima. Eu falo dos educadores, falo do Ministério, do MEC, que tem que botar o cordel e tem que ter uma… Temos que ver o cordel como um instrumento pedagógico em sala de aula. É fácil, inclusive, de leitura. As crianças gostam de fazer a brincadeira da rima, de brincar com a rima. Então, por que não ela ter esse reconhecimento, a gente trabalhar o cordel em sala de aula? É dessa forma. É vender o produto. É vender o autor, o escritor, que trabalha com aquilo ali. Nunca vai ter reconhecimento, né? Só os grandes nomes, só os eruditos têm reconhecimento. Só os grandes vão para as academias brasileiras de letras e o cordelista nunca vai sentar numa daquelas cadeiras. É muito importante esse diálogo e eu sempre tenho falado que, pra mim, eu já cheguei no topo. Eu já cheguei onde eu queria, já mostrei o Cordel, eu já mostrei a Editora Coqueiro, que há 34 anos, vai fazer 35 anos, que tá aí na estrada fazendo livros de Cordéis. Eu não preciso mais mostrar quem eu sou. Eu preciso que o Cordel seja respeitado como a literatura, que o Cordel esteja na sala de aula, que o Cordel seja discutido nos grandes congressos, sabe? Mas é difícil…
P1:
Pode dizer há quanto tempo você está na Coqueiro?
R:
Sim, há 28 anos na Coqueiro. A Coqueiro para mim foi uma experiência, continua sendo uma experiência, que todo dia é uma descoberta nova, é um poeta novo que chega, mas uma experiência muito gratificante, porque você viver, conviver com esse universo cordeliano. A cadeia produtiva é uma cadeia muito grande, do cordel, então a gente tem ali os ilustradores, a gente tem os xilogravadores, a gente tem os poetas, a gente tem as editoras gráficas, então você termina num... Num mundo muito vasto da poesia. Aí você vem com a música, você tem a ligação com o repente, você terminando no repente, com os aboiadores, com a cantoria. Então, é muito gratificante trabalhar com a poesia, com a literatura.
P1:
Desses 28 anos, qual você acha que foi o momento, alguma coisa que daria um cordel, um caso de cordel, algo que você viveu que…
R:
Eu acho que essas viagens, né? Eu vivo ou em ônibus ou em ponte aérea, né? Viajando. Meus filhos são... Eu tenho três rapazes, né? Leonardo, Lucas e Arthur. Um com 35, o outro com 30 e o outro com 28. E acho que eles sentiram muito a minha ausência quando novos, porque eu tinha essa história de ter que viajar, porque eu precisava sair isso também de Pernambuco, porque eu precisava ver a literatura também lá fora, se era tão prazerosa, tão grande, tão feita de Pernambuco. E eu acho que as viagens foram coisas muito marcantes, tanto nos choros de alegria, de reconhecimento de você ser homenageada pelo trabalho que você faz, quanto também essas dificuldades de lidar, você sendo mulher com o homem, com o ser homem. Eu não falo só de poetas, eu falo do homem como um todo. Porque eu lido com o escritor, lido com o xilogravador, lido com o gráfico, lido com os editores e com o público em geral, que também são homens e mulheres. Mas foi mais essas viagens, essas viagens foram muito marcantes. Participar na Flip, na maior feira literária do país, em Paraty, falando sobre mulheres, falando sobre cordel foi uma das coisas mais importantes. Foi um momento muito importante e de reconhecimento. São Paulo também, tá ali representando e levando Pernambuco para o mundo, como eu fiquei responsável por um dos estandes da Bienal do Livro de Pernambuco, levando para São Paulo para mostrar o trabalho dos pernambucanos, porque eu não tava lá como editora de cordel, eu já estava como editora de vários poetas e representando a Bienal do Livro de Pernambuco. Então, são coisas que são muito gratificantes, de você chegar em São Paulo e assim dizer, sou Ana Ferraz, meu maior sonho é fazer um cordel contigo, é escrever para a sua editora e você fica assim... Como assim? Já me conhece aqui em São Paulo, em Brasília, no Rio de Janeiro. Tudo é muito gratificante e essas feiras me dão, assim, uma bagagem. Porque você termina sendo... Esses poetas do Ceará, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, São Paulo... Quando você se encontra, parece uma família. Você vai aumentando sua família. Eu, como editora, já editei poetas de São Paulo, já editei do Rio Grande do Norte, já editei Paraíba, já editei Ceará, Pernambuco, Pará.
Então, é muito gratificante nessas viagens, esse conhecimento e é um pouco, eu vou levando, aumentando minha bagagem, cada feira, em cada evento desses, eu vou aumentando a minha história, vou aumentando o conhecimento de novos poetas, de quem tá produzindo aí, de quem está no cenário, seja lá em São Paulo, seja no Rio, seja em Curitiba, enfim… É uma coisa muito gratificante. E eu acho que as minhas viagens, de todos os eventos, participar dos congressos de literatura de Cordel em Brasília, onde Lula abria o evento, você dizer assim, poxa, eu cheguei, eu consegui. Hoje eu posso dizer que eu não sou uma editora. Eu sou a editora de Cordel. Eu tenho hoje um nome que eu prezo. Eu tenho um nome hoje que é reconhecido nacionalmente. E isso é muito gratificante. Não tem dinheiro no mundo que pague. Eu vejo todo mundo vendendo muito. Eu tenho amigas editoras que eu ajudei a fazer as editoras delas, uma escritora querendo fazer suas editoras, e eu ajudar a fazer. E hoje estão ganhando muito, porque estão vendendo para o governo do estado, porque estão governando, os livros estão no PNLB, e eu fico assim, pô, eu não consigo colocar um cordel, né? Então, eu não fiz dinheiro, eu não consegui uma herança do Cordel.
A minha herança é isso, é esse conhecimento, é esse contato com essas editoras grandes, é ser hoje procurada por outras editoras bem maiores e dizer assim, Ana, me dá aqui dez nomes no estado de Pernambuco, onde eu possa trabalhar o Cordel ou qualquer outra literatura. E eu chegar com o material e a editora nem questionar, dizer assim, não, sei que os nomes são bons, vou nem olhar, eu sei que você escolheu bem. Então, é isso o que eu tenho da herança do Cordel. Não foi dinheiro, nunca consegui vender para o Estado, nunca consegui vender para o Minc, nenhum cordel entrou em... Mas é essa bagagem do país, de conhecer tanta gente de tantos lugares e saber que a Coqueiro teve pouco. de cada um deles. Saber que eu produzi, eu já fiz livros de grandes nomes, Marcus Accioly, o poeta erudito Sidney Rocha, todos os dois eu acho que já foram, já ganharam o prêmio Jabuti, já tiveram. Então assim, tanto na literatura erudita como na popular, eu posso dizer que eu tive os maiores nomes da literatura pernambucana no meu catálogo.
P1:
Falando dos maiores nomes, você estava falando quando a câmera estava desligada, eu queria que você contasse um pouco de José Costa Leite, a relação sua com ele, com a editora.
R:
Pois é, Costa Leite foi um grande parceiro. Era um cara que eu recebia toda sexta-feira. Eu vinha para cá pra editora, ele chegava cedo, oito horas, nove horas da manhã, no máximo. Ele vinha do Condado de ônibus, já com seus 78 anos, quase 80, mais de 70 anos. A gente trabalhou mais de 20 anos juntos. E José Costa Leite, ele produzia todos os dias, ele fazia o cordel diferente. Então ele chegava aqui toda sexta-feira com oito, nove ou dez exemplares de títulos de cordéis. Aí ele vinha, ele escrevia e na maioria das vezes jogava até o original fora. E eu tive mania, fiquei com mania de pegar. Costa, eu vou guardar pra mim. Porque ele dizia, não minha filha, tá rasurado, eu fiz não sei o que aí. Não, pode jogar fora minha filha, guarda o folheto. Eu disse, não, isso aqui é sua escrita, o senhor escreveu, o senhor fez aqui em punho. Isso aqui tem muito valor pra mim e eu fui guardando. Eu acompanhei José Costa Leite durante muitos anos, nas grandes feiras literárias, em Fortaleza, Rio Grande do Norte, São Paulo, eu levantei o Costa Leite para todos os lugares. E ele era inquieto. Não era muito da oralidade. Ele era, eu brincava assim, faça aqui esse verso pra fulano. Fulano nasceu de ser homem. Eu testava, gostava de testar a memória dele, morreu com quase 90 anos, mais de 90 anos, produzindo. Ele começou a fazer cordéis com 20 e poucos anos, então era um poeta muito ativo, paraibano, era de Sapé da Paraíba. fez um trabalho brilhante. Eu acho que tem a literatura antes e depois de Costa Leite. O Cordel antes e depois dele. A poesia dele era mais graceja, ele gostava de trocar, ele gostava de brincar com os títulos. Ele gostava muito de brincar com os títulos, de fazer que eram mais... O povo vai pensar que é coisa feia, mas não é coisa feia.
E, realmente, de fato, no final da história, ele fazia toda a narração, início, meio e fim do folheto. Você pensava que era cordel de putaria. Quando chegava no final, não, era um cordel que não tinha... Ele brincava com o imaginário das pessoas e era um cara muito, muito tranquilo. Meio chato, assim, eu só vou se pagar logo as lixa, não faço nada se não for a Ana Ferraz assinando, se a Ana Ferraz disser que eu vou, eu vou, se a Ana Ferraz disser que o valor é esse, eu vou por esse valor. Então, nós tínhamos muita confiança. Eu tenho umas cartas dele que é uma coisa linda, documentário. E em vida, graças a Deus, eu acho que ele... Ele dizia que o povo de Condado, né? Condado não dava muito valor a ele, porque ele não tinha esse reconhecimento, não era chamado para as escolas, ele gostava de ser chamado para ir para as escolas. Eu acho que dos últimos aniversários dele, ele comemorou junto com Ariano Suassuna, né? Fui convidado para a Universidade Federal de João Pessoa e foram os dois homenageados, José Costa Leite e Ariano Suassuna. E Ariano, nessa ocasião, inclusive, pôde dizer ao próprio Costa Leite que era fã, que conhecia a obra, o trabalho. E ele já tinha feito inúmeros folhetos, ele tinha feito já falando sobre Ariano, mas um cara gigante. Ele e Chico Pedrosa ali na Paraíba, posso dizer que são dois gigantes, e ele faz muita falta. Morreu com quase 100 anos, 90 e tantos anos, produzindo, fazendo cordel, mas foi um grande divulgador em feira de livros. Acho que cinco anos antes de morrer, ele ainda estava indo para as feiras livres de Sapé, de Itabaiana. Ele ainda levava o microfonezinho dele para declamar a poesia dele nas feiras livres. Foi dos últimos folheteiros, eu acho. E fazia calendário também. Lunário, ele não ficava só no Cordel, ele tinha também os calendários que ele fazia anualmente. E foi, eu acho que das pessoas mais importantes que eu pude trabalhar foi Costa Leite.
P1:
Você publicou mais ou menos quantos títulos dele?
R:
Acho que dele eu publiquei mais de 300 títulos, muito mais de 300. Eu não consigo, eu sei que eu tenho hoje quase 500 originais dele, então eu publiquei um bocado. É porque tinha alguns que ele repetia, ele queria fazer uma correção de um, aí ele trazia, às vezes eu boto um junto com o outro, porque eram dois originais de uma mesma coisa, mas ele queria mudar as palavras, mas ele publicou muito. Eu acho que Costa, assim, o período que eu tive com Costa foi 20 e poucos anos, mas Costa fez mais 50 antes de mim, então só na época que eu fui com ele lá em Baccaro, quando o Baccaro estava fechando e a gente queria, ele me pediu pra ir acompanhando ele pra ver se o Baccaro devolvia a ele os originais que ele tinha vendido pra Baccaro e Baccaro não tinha publicado. Inclusive, tinha até uma dívida de Baccaro com ele, tinha uns cheques que ele tinha em mãos ainda, se eu não me engano eram 12 mil reais. E de originais que Baccaro tinha pago e que não tinha o cheque que tinha sido devolvido, não foi pago, e Costa Leite perdeu esses originais. Ele não deu, nem a família dele deu. Eu tentei muitas vezes e, segundo Costa Leite, eram muito mais de mil folhetos. Ele tinha um acervo, eu não sei onde está, se tocou fogo, o que a família de Baccaro fez. Mas Costa Leite tinha muito material com ele, inéditos. Então eu acho que hoje ele derrubou a Leandro Gomes de Barros, acho que ele produziu mais.
P1:
E na editora você publicou mais ou menos quantos?
R:
Pela editora eu publiquei mais de 300 títulos dele.
P1:
Não, para além dele.
R:
Ah, não, aí eu não tenho nem ideia, mas eu já publiquei muito mais de oitocentos, se não chegou a mil. Porque hoje eu trabalho, a única editora de cordel do estado, durante muito tempo, fui eu sozinha. Tem outra editora, pequenas, que fazem coisas meio que manuais, né? Mas a Coqueiro, hoje eu acho que é a maior do estado. que trabalha o cordel. Então, eu faço cordel para o estado inteiro, para fora do estado. Eu tenho clientes do Pará, clientes do Maranhão, que mandam, no Piauí, que mandam o material que eu produzi aqui e eu devolvo o material pronto pelos Correios. Eu sempre uni muito material pelos Correios. Então, não é só o Pernambuco. E eu nunca fiz essa conta. De quantos autores eu já editei, que eu já editei acho que para mais de 200 nomes, tanto na literatura popular como em outros segmentos literários, mas a gente já fez mais de 200 escritores e reconhecidos nacionalmente.
P1:
E eu queria saber uma coisa assim, de quando você começou pra hoje, qual que foi a trajetória do maquinário mesmo, de impressão do cordel, como que era quando você começou a imprimir os cordéis, como é hoje?
R:
A gente ainda tem até um prelozinho pequenininho aí que... Que eu mantenho mais na minha sala, mas como tá tudo de cabeça pra baixo aqui nessa arrumação. Mas assim, a gente começava, teve os prelo, que eram as maquininhas manuais, aí eu já peguei mais na offset. Eu peguei a Coqueiro trabalhando na offset. Ivan tinha as máquinas gráficas, não só fazia cordel, mas fazia livros, fazia revistas, e o cordel já era no offset. Depois, os poetas foram diminuindo, diminuindo a quantidade de exemplares, fazendo poucos exemplares de cada título, 50, 100, 200 exemplares, foi que a gente passou para essas máquinas que reproduzem, são tipo xerox, são máquinas que têm impressão melhor do que xerox, que são essas risograph, duplicadores, que a gente chama. Elas são melhores do que Xerox, elas tem uma visibilidade muito boa, a impressão delas, e ainda continuam delas. Quando o pedido é pequeno, de 50 a 200 exemplares, até 1.000, eu faço no duplicador, trabalho no duplicador. E quando é um pedido acima de 2.000 folhetos, acima de 1.000 folhetos, ou 2.000, aí eu uso a macro offset. mas nunca cheguei a pegar a tipografia. Eu já peguei ela, a offset, para depois voltar para o duplicador.
P1:
Desses mil títulos que você publicou, tem algum folheto que tenha alguma história diferenciada, assim, de como ele nasceu, alguma história de algum nascimento de algum folheto que foi diferente?
R:
Tem um folheto muito interessante, que eu não posso... É em quadra. É um quadro muito bonito, que é o Roçado e a Cidade Separadas pela Serra. É um folheto de Marcus Accioly, que ele retrata uma discussão um pouco falando sobre a reforma agrária, é uma discussão de um pequeno produtor rural e o dono da terra. É uma discussão pela terra, o dono da terra sem querer que o pequeno trabalhe. E é muito bonito e muito triste, porque a gente ainda vê isso. Essa luta do pequeno, do sem-terra com os donos das terras, que se dizem donos das terras. Então é um cordel que é muito marcante e muito bonito. O Roçado e a Cidade Separado pela Seta. É um poema lindíssimo de Marcus Accioly e que ele fez na literatura, fez um folheto. Ele, apesar de ser um grande escritor, ele quis botar esse poema dele num folheto de cordel, no formato de um cordel. E é muito forte. É um poema muito forte dessa… Da fala dos dois, do dono da terra e o do sem terra. Uma coisa bem bonita. Foi um dos folhetos, acho, mais bonitos também, que eu já... Fora “Os Meus Sertões”. É isso. Marcus Accioly e Alexandre Morais.
P1:
Desse todo o seu trabalho, qual que é a coisa que mais você se sente, assim, recompensada? De um momento que você sentiu agraciada de alma por realizar esse trabalho?
R:
Quando eu ganhei, não ganhei não, eu fui homenageada pela imprensa pernambucana, do mulheres que mudaram a história de Pernambuco. A imprensa pernambucana faz esse trabalho. Acho que de todo ano. Eu nunca mais nem ouvi falar como é que está esse movimento, mas você ser reconhecida entre tantos grandes nomes na literatura, na medicina, em toda uma sociedade. O estado de Pernambuco era, a imprensa não só pega pessoas que fazem trabalho em Recife, mas ela pega no Estado inteiro. E você entrar ali com Mônica Silveira, foi Mônica, eu acho, ou foi Beatriz Castro, foi uma dessas jornalistas grandes da Rede Globo, e você ser homenageada com elas e você assim dizer, pô, eu cumpri. Estou cumprindo bem o andar com a Coqueiro, com a literatura que eu acho que eu fiz bem, porque não seria qualquer pessoa que estaria nessa lista. Então, eu fiz uma mudança de alguma forma na literatura, de cordel. Eu acho que foi nessa homenagem às mulheres que mudaram a história de Pernambuco. Eu recebi aquela diplomação, eu recebi os aplausos de tantas mulheres que eu era fã. Gente de Deus, eu tô aqui no meio delas. Você até fica sem acreditar, né? Mas é isso, acho que foi quando eu recebi essa homenagem.
P1:
E hoje, qual que é a sua perspectiva? Assim, como você olha seus sonhos, o que você ainda tem vontade de fazer?
R:
Eu tenho vontade de fazer isso, de botar o cordel num lugar que ele realmente merece, né? De destaque, de importância na literatura. Eu acho que eu vou ficar gagá, vou sair da Coqueiro, vou ficar afastada, mas na luta para que a nossa literatura tenha reconhecimento das academias, que tenha o reconhecimento da educação, porque eu acho que o Cordel é muito educativo, ele tem a representatividade dele, ele não vai derrubar nenhuma literatura. Eu acho que só tem que ter o espaço dele que a gente até então não conquistou. E podem dizer quem quiser que conquistou, os grandes mestres, os grandes historiadores, mas eu ainda costumo dizer que nós não chegamos ainda a ser respeitados, a ter nosso reconhecimento pelas academias, pela literatura como um todo e principalmente nas escolas, MINC, MEC, esses ministérios e precisa ter um olhar mais sensível com o cordel, precisa ter um olhar mais respeitoso com o nosso cordel, aí sim eu vou estar de peito lavado e cumprindo a minha missão. Eu acho que é isso.
P1:
Teve alguma história da sua história de vida que você não contou e quer deixar registrado?
R:
Qual seria a história? Não, eu acho que o Cordel já é a minha história. Como eu digo assim, eu tenho três filhos, que eu sou apaixonada por minha família, sou apaixonada por meus irmãos, mas o Cordel, ele tomou uma dimensão que foi muito maior do que o cuidado deles. Hoje eu peço muitas desculpas aos meus filhos, mas eles sabem do quanto isso me satisfaz, do quanto isso me deixa feliz e realizada. Eu acho que eu já recebi esse perdão deles, mas eu quero deixar registrado isso. Eu tive que, de alguma forma, deixar um pouco de lado minha vida pessoal pra embarcar nessa história que é o Cordel e que assim, eu tô muito, muito, muito feliz por todas as conquistas e por tudo que eu vivenciei com ele e vou vivenciar mais, se Deus quiser, porque Deus é mais.
P1:
Para fechar, uma última pergunta. Se quando você passasse, morresse, você só pudesse levar uma memória dessa vida, qual seria a memória que você levaria?
R:
É um conjunto de coisas que eu gostaria. Meu sertão, as minhas raízes de uma boa sertaneja, de uma nordestina, né? Mãe, mulher, empresária, produtora. Gente, eu tiraria um pouquinho de cada coisa, assim, do que eu já fiz, do que eu já produzi. Essa memória afetiva seria realmente o meu sertãozão todinho, com meu cordel, minha família, minha vivência. Eu acho que é isso.
P1:
Obrigado.
R:
Eu que agradeço. Obrigada vocês.
Recolher