P/1 – Obrigado por vir dar o seu depoimento. Você pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Micheline Lemos Rodrigues, eu nasci em 08 de fevereiro de 1975.
P/1 – Nasceu em qual lugar?
R – Em Maceió. Nasci lá e muito novinha fui para Aracajú, Sergipe.
P/1 – Os seus pais são de Maceió?
R – Não. São de uma cidade chamada Neópolis, no município de Sergipe.
P/1 – Os dois nasceram em Neópolis?
R – Os dois. Minha mãe nasceu numa cidade muito pequenininha, que é município de Neópolis, que antes se chamava Carrapicho e hoje se chama Baixada São Francisco. É uma cidadezinha banhada pelo rio São Francisco.
P/1 – Os seus avós maternos e paternos também são de lá?
R – Não. A minha avó paterna é de Palmeiras dos Índios, em Alagoas, e meu avô é de Recife. Minha avó materna eu não conheci, a Avó Marieta, que é de lá, da Baixada São Francisco, e meu avô materno é onde a história é mais profunda .
P/1 – Ele é de onde?
R – Então, o meu avô biológico ou o meu avô de criação?
P/1 – Os dois.
R – Na verdade os dois nasceram no mesmo lugar que a minha mãe. O meu avô João, biológico, e o de criação, o meu avô Manoel, Manezinho. Mas isso eu fui descobrir já grande. Minha mãe foi descobrir isso com quarenta anos de idade.
P/1 – Descobrir que o pai dela não era pai dela?
R – É. Eu tinha uns nove anos, mais ou menos, e minha mãe uns 40. Minha mãe, filha de Marieta e vô Manoel. Ele era oleiro, trabalhava com barro e tal. Essa cidade, Carrapicho, exporta muito este produto, é a base da cidade. E minha avó Marieta era Lavadeira, lavava roupas no rio São Francisco. Desde pequena eu sempre tive muita vontade de saber de onde eu vim, gosto de genealogia e acho muito importante você saber de onde veio, também para saber para onde você vai. Eu sempre escutei boatos em casa, então tinha curiosidade. Uma grande maldade, mas eu sempre achei que fosse filha adotiva. Não sei o porque. Depois que eu cresci, com uns oito, nove anos de idade, eu perguntei tanto isso para o meu pai que ele, erroneamente, começou a me falar que tinha me encontrado na lata do lixo. E eu fiquei com isso na cabeça e precisava descobrir que não era verdade. Desde pequenininha eu era muito chorona e muito ligada a minha mãe.
P/1 – Vamos voltar na história dos seus avós. Esse seu avô biológico desapareceu? O que aconteceu com ele?
R – Minha avó Marieta engravidou e nasceu a minha mãe. Ai o meu avô Manuel: “ah, nasceu a minha filha, que lindo!” e tal. Depois de uns três anos nasceu a minha tia Márcia. E meu avô “ah, a minha filha! Que lindo” e tal. E depois nasceu a minha tia Vânia, negra, e ficou aquele suspense todo. Mas o meu avô Manuel dizia, “ah, a minha filha! Que lindo” e tal. Minha avó Marieta morreu de tétano. Ela tinha se cortado e na beira da morte pediu para chamar o meu avô Manoel. Ele estava na olaria e foram o chamar. As últimas palavras da minha avó foi para pedir perdão para o meu avô Manoel. E meu avô disse que ele já sabia. Que ele amava ela demais e que o amor dele era suficiente para superar aquela história. E nisso a minha avó morreu. Meu avô passou a beber bastante, virou alcoólatra, e minha mãe, com onze anos de idade, ficou para criar as irmãs. Passaram por muitas dificuldades. Com doze anos a minha mãe veio para São Paulo para trabalhar, mas viu que não era nada disso e voltou para lá. O sonho dela era ser artista. Desde pequena ela cantava em clube e tal, eram apaixonados pela minha mãe. Com 19 anos ela conheceu meu pai, que disse que ela deveria escolher entre ele e a música. Minha mãe então escolheu o meu pai.
P/1 – Como eles se conheceram?
R – No carnaval. Eles são apaixonados por carnaval. Tanto é que eu nasci no carnaval. Minha mãe tem uma foto do meu pai vestido de nenenzão, com chupeta e tal, e minha mãe me parindo. . Enfim, ai vieram os filhos, eu sou a mais nova dos cinco filhos, e viemos embora para Aracajú.
P/1 – O que o seu pai fazia?
R – Meu pai era caminhoneiro.
P/1 – E sua mãe?
R – Era dona de casa. Meu pai não deixava ela trabalhar. Depois de muito tempo ela veio a estudar, coisa que ela era louca para fazer. Inclusive nessa cidade, Neópolis, que é divisa com Alagoas, minha mãe que atravessar o rio São Francisco de lanchinha para ir a escola. Ela diz que ia de lanchinha e que de vez em quando, uma senhora fazia questão de pegar a mesma lancha que ela, e ficava de frente para a minha mãe, olhando, olhando, olhando. Até que um dia essa senhora pegou e falou baixinho: “nossa, essa menina é a cara do João”. E minha mãe, muito esperta, ficou com aquilo na cabeça e chegando em casa foi falar com a minha avó, que disse que era mentira. Minhas tias continuaram morando com a minha mãe, mesmo depois do casamento dela. Meu pai não aceitava muito bem. A tia Márcia, a do meio, foi embora para o Rio de Janeiro, porque ficou sabendo que o pai dela morava lá. E as irmãs dela se perguntavam, como assim? Porque o meu avô já tinha morrido. Eu me lembro muito bem do meu avô Manoel. Ele tinha loucura por pássaros. Ele assoviava lindamente. Parecia um Rouxinol. Era magro, alto, branco, parecia um pássaro mesmo. E ai a minha tia Márcia foi embora para o Rio e minha mãe ficou com a tia Vânia. Depois de um tempo, a tia Márcia chamou a tia Vânia para ir embora e ela foi. Ficou só a minha mãe em Neópolis com o meu pai, foi quando a minha mãe resolveu ouvir a minha tia Márcia, que falou para a minha mãe que o pai dela estava vivo. E então a minha mãe quis ir para o Rio ouvir essa história. A minha mãe era muito apegada ao meu avô Manoel, e ele a ela!
P/1 – E ele continuava alcoólatra?
R – Não. Ele já tinha falecido. Meu avô Manezinho faleceu quando eu tinha uns 5 anos de idade, mais ou menos. E então minha mãe resolveu ir ao Rio de Janeiro para ver as irmãs.
P/1 – E ela era muito apegada ao Manezinho?
R – Isso. Até então ela não conhecia outra história. Ela resolveu ir ao Rio de Janeiro, mais para ver as irmãs, que há muito não via. Chegando lá, a minha tia Márcia já tinha conhecido o meu avô João e mais sete filhos dele. O meu avô João tinha ido para o Rio e formado uma família lá. E então fizeram um almoço para a minha mãe, que se deparou com o João e viu que era a cara dele! Mas ela renegou de primeira, saiu, foi embora e não quis saber. E eu era louca para ter avô e avó. Até hoje, acho a coisa mais linda do mundo que tem avó e avó e é ligado a eles. O meus avós paternos, nós não tínhamos muita aproximação. Eu os conhecia, até tinha alguma convivência, mas eles não eram carinhosos, coisa que eu era. E então, quando minha mãe voltou do Rio eu dizia: “mãe, eu tenho avô, quero saber essa história”. Eu tinha uns nove anos e muita loucura de conhecer a família da minha avó: A minha avó já tinha falecido, o meu avô Manezinho ficou vivo até os meus cinco anos de idade e as minhas tias eu sabia quem eram. E eu querendo saber disso, sempre perguntando. Quando eu achava que era filha adotiva eu perguntava para a minha mãe: “Mãe, que tipo de sangue eu sou?”. Minha mãe não sabia. Em qual maternidade eu nasci? Minha mãe meio que evitava responder essas coisas. Mas isso pela vida tribulada dela. Por ter sido a quinta filha, e eu queria ver a cara desse povo! Queria ver se meu cabelo era igual o da minha avó, se as minhas tias eram parecidas comigo. Até que um dia a minha mãe respondeu, dizendo que o meu cabelo parecia com o da minha avó Marieta. Então quando a minha mãe voltou do Rio, eu queria muito saber que história era essa. Enfim, aos quinze anos de idade o meu irmão do meio faleceu em um acidente. Foi um período muito triste. Durante um ano e nove meses morreram nove pessoas da minha família, só duas por doença, o resto todos em acidente. O meu avô paterno faleceu, avô Moisés, e num desses o meu irmão morreu, também a minha prima e meu tio mais novo por parte de pai. E minha tia do Rio, tia Márcia, pediu para minha mãe para que eu fosse para lá. E então pensei, “nossa, é a minha chance de conhecer o meu avô, eu quero saber que história era essa”. Antes de ir eu perguntei para a minha mãe, que falou muito por alto. Eu fui saber mais a fundo lá com o meu avô João.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Quinze anos. Pedi para as minhas tias me levar até o meu avô. Minha tia Márcia me levou. Eu sempre via a minha tia Vânia, que é negra, sempre muito assim e tal. E eu perguntei para ela, “tia, você tem amizade com o meu avô?” E então ela disse que o João não era pai dela, só era pai da minha mãe e da tia Márcia. Ai eu fui, mas pedi que ela fosse, mesmo ela dizendo que não sabia quem era o pai dela. Ela dizia que o sonho dela era chamar o meu avô de pai, e pediu para que eu conversasse com ele, para ver se ele deixava ela o chamar de pai. Enfim, fui e conheci finalmente o meu avô João. Nos apaixonamos. Descobri que eu tinha um sobrinho mais novo, na época eu tinha quinze e ele estava fazendo sete anos de idade. Muito engraçado porque ele falava para o meu avô: “pai, pede para ela me dar a benção, pede para ela me dar a benção”. E eu falava: “cala a boca, moleque! Não vou te dar a benção não. Você é muito mais novo do que eu”. E ai, no meu último dia lá, eu pedi benção a ele. O menino chorou, ficou todo feliz. Foi muito legal. Teve um dia que eu quis conversar com o meu avô sobre toda essa história. Eu sentei no colo dele, eu tive pouco amor de pai. O meu pai bebida, tentou matar a minha mãe várias vezes, depois que eu cresci, também tentou me matar várias vezes. Depois que eu soube de toda a história, consegui perdoar o meu pai. Hoje ele me liga, eu consigo chamá-lo de pai. Nunca tinha visto ele chorar, nem na morte do meu irmão, nem na morte do pai dele. Há uns dois anos atrás a minha mãe falou que viu ele chorando porque estava com saudades de mim.
P/1 – Mas vamos voltar a história do seu avô.
R – Eu sentei no colo dele e perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que era amigo do meu avô Manoel, e trabalhavam juntos. Disse que era muito apaixonado pela minha avó e quando soube que ela estava grávida pela segunda vez, ele chamou ela para vir embora para o Rio de Janeiro e ela não quis. E eu ficava pensando: “ e o meu avô Manoel? Como foi a traição?”. Mas isso ainda é uma incógnita. Porém a minha avó pediu perdão ao meu avô Manoel porque ele era estéril, e ela não sabia. Só ele sabia. Então a minha avó apareceu grávida por três vezes e ele recebeu as crianças, sem dizer um “ai”. Nunca questionou a minha avó e aceitou as três filhas como se fosse a dela. Então eu pensava, eu, que teria ter um avô, hoje tenho dois. Um com amor incondicional – que homem é esse, que amou a esse ponto? – e outro, biológico, apaixonadíssimo pela minha avó, pela minha mãe e minha tia. E ainda nesse dia ele disse a tia Vânia, você pode me chamar de pai. Ela o chamou, abraçou ele, mas não ficou aquela coisa, de ter relacionamento e tal. E um dia o meu avô disse: “você precisa conhecer uma pessoa”. Ele me levou a uma casa, eu fui entrando, aquele silêncio, quando eu olhei no sofá tinha uma senhorinha de xale. Eu vi que ela estava esperando alguém, ansiosa. E eu olhei para ela, ela me olhou, pegou na minha mão assim, foi olhando a minha mão, eu olhando a mão dela, e vimos que eram idênticas. Até que ela me abraçou, me beijou, e eu sem saber senti que era a minha bisavó, aquela senhorinha que ia na lancha com a minha mãe. A gente chamava ela de Mãe Daia, Izaura, minha bisavó. Ela tinha 83 anos e me disse: “nossa, as nossas mãos são iguais”. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. Depois de uns dois meses ela faleceu. Para mim isso foi extremamente importante. Deu um rumo na minha vida. Ver a cara deles me fez saber que não tem como fugir das suas origens. Por mais que você aceite ou não aceite, que queira ou não queira, você vem dessas pessoas. Eu tenho o cabelo cacheado, e depois soube que a minha avó Marieta também tinha. Minha mãe falava: “porque você não alisa o cabelo?”, e sempre com essa história, até o dia que eu disse: “mãe, você não disse que a minha avó tinha o cabelo cacheado como o meu? Você está querendo que eu não me pareça com a minha avó? Deixa eu parecer com a minha avó”. E então ela disse, é mesmo!
P/1 – Vamos voltar. Seu pai e sua mãe se casaram, quantos anos você tinha quando eles foram para Maceió?
R – Como a minha avó paterna, Avó Alaide, é de Alagoas, muito anteriormente alguns parentes meus eram de Maceió. E minha mãe tinha essa ligação por causa disso. Como Neópolis é divisa com Alagoas, ela sempre ia para lá, para visitar os meus parentes. Por coincidência, o meu pai estava trabalhando muito e falou para ela ir para Maceió enquanto estava grávida de mim. Dos cinco filhos, eu e minha irmã nascemos em Maceió. Neopolis não tinha essas grandes estruturas de maternidade e meu pai preferiu que ela fosse para Maceió. Fiquei uns dois, três meses lá. Naquele tempo o resguardo era maior e tal. Depois fiquei em Neopolis até uns cinco anos de idade.
P/1 – Você lembra da sua casa em Neopolis?
R – Lembro. Era uma casa muito grande, porque antes de casa, era uma garagem para caminhões. Depois de um tempo, o meu avô construiu uma casa e fomos morar lá. A parte que eu mais gostava era o quintal, que era muito grande, com várias árvores e tal. Tinha um tanque grande, como uma caixa d’água, de cimento. Eu gostava muito de água e minha mãe, enquanto fazia as tarefas, as vezes colocava um pouco de água. Era a minha piscina ali. Era a parte que eu mais gostava. Lembro que a casa tinha muitas plantas, que a minha mãe gostava muito. Tinha um portão grande, de madeira, que tinha uma portinha muito pequena, para passar botijão, essas coisas. Minha casa na verdade era na rua, porque a gente brincava o tempo inteiro. E minha irmã sempre gritando: “para dentro! Para dentro!” Trancava o portão, mas eu sempre arrumava um jeito de sair. Teve um episódio que foi muito engraçado. Era para ser trágico, mais foi engraçado. Morávamos nessa rua, que de vez em quando passavam muitos bois e touros, onde lá pra frente da cidade tinha um matadouro. Um dia eu escapuli de casa e fui para a rua. E minha irmã dentro de casa: “cadê essa menina, cadê essa menina, pelo amor de Deus?”. Nós temos nove anos de diferença. Quando ela abriu a janela, eu estava no meio da rua e tinha uma boiada para vir para cima de mim. Eu tinha cinco anos. E então os vaqueiros correram e ficaram na frente dos bois, para que eles não me atropelassem. Um vizinho, menino, foi quem me pegou e jogou para dentro de casa. Se não, a boiada ia passar por cima de mim e não ia sobrar nada. Eu passei momentos engraçados ali. Corria para a praça em frente de casa, onde as crianças brincavam. Minha mãe, evangélica desde essa época, não deixava a gente dançam. Eu tinha um vizinho que ouvia Gretchem, e eu corria para ouvir e dançar aquilo. Minha mãe não gostava e queria morrer. Eu acho engraçado porque minha mãe dizia: “essa menina parece que é filha do vento, ninguém segura ela”. E eu me sinto meio filha do vento.
P/1 – E nessa casa você ficou até os cinco anos?
R – Até os cinco anos.
P/1 – Você chegou a ir na escola nessa período?
R – Cheguei. Eu chorava muito. Eu não lembro uma vez que eu fosse a escola e não chorava. A escola era perto da escola e minha mãe me dava aqueles ovinhos coloridos de amendoim, para eu me entreter. Mas eu lembro que eu ia com aqueles ovinhos na mão. A primeira coisa que eu fazia quando chegava a escola era chorar. Chorava e chorava e chorava. As professoras ou me levavam de volta para casa, ou chamavam o meu irmão para me levar. Essa é a lembrança que eu tenho de escola.
P/1 – Até os cinco anos?
R – Isso.
P/1 – Depois vocês se mudaram?
R – Sim. Fomos para Aracajú, pois meus pais estavam se separando. A gente ia para o Rio de Janeiro, era a chance dela de ficar perto das irmãs. Mas ela não teve coragem porque achava que era muito violento e tal. Então fomos embora para Aracajú sem meu pai, mas depois de uns meses eles voltaram.
P/1 – Como era o ambiente na sua casa?
R – Ai, era muito triste. Era muita briga, Muita briga. Pra você ter ideia, o apelido do meu pai era Hulk. Meu pai quebrou a casa inteira com socos e pontapés. Eu lembro que os vizinhos eram primos e irmãos do meu pai, que correram para salvar o que podia e tirar a gente de casa. Nisso, tinham me prendido na casa da minha tia, para o meu pai não sei lá o que. E eu não entendia o porque não deixavam eu falar com o meu pai. Eu achava que se falasse com ele, ele iria parar com aquilo. Ai fui para porta de casa e quando cheguei, ele estava pegando o meu peniquinho e quebrando no chão. Eu tinha um peninquinho rosinha, todo bordado, com uns desenhos. Pra mim, o pai quebrou naquilo, sabe? Eu não entendia nada, mas entendia que ele estava quebrando o meu peninquinho e automaticamente, ele estava se quebrando. Eu chorei e fui sozinha para a casa da minha tia. Não queria saber do meu pai. Com seis anos de idade ele quase me sequestrou. Eles se separaram novamente, foi morar em outro lugar e eu brincado na porta, minha irmã correu para me pegar porque tinha visto ele na esquina. Minha irmã achava que ele ia me pegar e ia sumir comigo.
P/1 – E era frequente as brigas com a sua mãe?
R – Ah era! Meu pai era alcoólatra e muito valente, brigão, muito forte, então ele maltratou muito a gente. Até uns sete anos, mais ou menos, meu pai tinha um jeito comigo que eu gostava muito. Eu dormia com ele, ele me dava banho. Até uns sete anos eu gostava muito dele, ele brincava muito comigo, tinha momentos de carinho. Depois, com uns oito anos de idade, mais ou menos, depois que eu vi o meu pai tentando matar a minha mãe, caiu uma ficha e comecei a me revoltar contra ele. Então ele começou a me destratar e querer me bater. Hoje eu entendo assim, porque quando você vive a história é diferente. Hoje eu entendo que naquela época ele pensou: “nossa, agora a minha filha sabe quem eu sou”. E ele começou a ter raiva disso. Ele começou a me bater e eu comecei a fugir de casa a noite com a minha mãe, quando ele chagava em casa com uma faca ou revólver. Tínhamos que pular o muro, se esconder no jardim do vizinho. Mas até uns oito anos de idade eu vi carinho no meu pai sim.
P/1 – E na sua casa, sua mãe cozinhava? como vocês dormiam?
R – Eu dividia o quarto com a minha irmã, e tinha o quarto dos meninos, dos meus três irmãos. Minha mãe nunca foi boa de cozinha, mas ela cozinhava. O apelido dela era Dama de Ferro, porque ela criava os cinco filhos sozinha. Depois de um tempo o meu pai conseguiu um emprego, não me recordo disso, mas ele entrou em empresas internacionais, passou a ganhar muito bem, mas não dava um real dentro de casa. Eram empresas que trabalhavam para Petrobrás e tal. Mas isso e nada era a mesma coisa. A minha mãe é que nos sustentava, com um salário mínimo. Meu pai nunca me deu nada. A minha mãe e minha irmã que me davam tudo. Desde os doze anos a minha irmã cuidava da gente. Trabalhava a noite, estudava de dia para ajudar minha mãe. Tanto é que eu chamo a minha irmã de mãe. Ela trabalhava o dia inteiro. Eu acordava ela já tinha saído, eu dormia, ela ainda não tinha chegado.
P/1 – Sua mãe trabalhava no que?
R – Em hospital. Fazia serviços gerais, mas com aquele sonho de estudar. Ela fez supletivo de primeiro grau, depois de segundo, fez curso técnico de enfermagem e eu acho que com 50 anos ela ingressou na universidade, mas com aquele programa para a terceira idade, que não confere certificado. Então ela fazia matérias de ciências sociais, direito e tal. Minha mãe é uma guerreira. Conseguir ingressar na universidade com 50 anos de idade, depois de ter criado cinco filhos, trabalhar fora, com um marido desses.
P/1 – E seus pais se separaram?
R – Se separaram há pouco tempo. Ela disse que se separou depois de uma coisa que eu disse para ela. Eu disse que não aguentava mais aquilo. Eu fui a última a ficar em casa, então vi todas as brigas por mais tempo que meus irmãos. Minha mãe conseguiu passar em um emprego público, por um concurso no TRT (tribunal regional do trabalho) e hoje a muda mudou, de 15 a 16 anos para cá. Continuou com meu pai, que continuou bebendo. Com uns 26, 27 anos, um dia eu falei para a minha mãe calmamente: “mãe, eu chego a ter raiva da senhora porque você parece amar mais o marido do que os seus filhos. Eu não escolhi o pai que eu tenho, mas você escolheu o seu marido. Então você pode desfazer esta história”. Então um dia eu comprei um apartamento e disse a eles que estava me mudando, que estava me separando deles. Eu fui embora, ela se sentiu abandonada, mas foi a partir disso que ela conseguiu se separar do meu pai, que não acreditava que ela fosse fazer aquilo. Ela comprou uma casa, reformou, tudo na surdina. Hoje são os melhores amigos. Um não faz nada sem o outro. Meu pai parou de beber, eu fiquei bem com o meu pai. Foi muito louco a forma como ele pediu perdão. Um dia ele pediu para eu ir a casa dele, porque ele tinha um negócio para me dar. Eu fui lá e ele estava na porta com uma sacolinha me esperando, agoniado. Ele me deu e era uma sacola com dez laranjas descascadinhas, bem descascadinhas, e disse: “isso é pra você sentar na frente da televisão, assistir, mas não precisa descascar”. Meu pai nunca tinha me dado nada. As dez laranjas foram as primeiras coisas, e eu achei que aquilo era um pedido de perdão. Ele é muito grosso, muito do mato, então eu achei um esforço descomunal fazer aquilo. Foi a primeira vez, depois de muitos anos, que eu chamei ele de pai.
P/1 – Vamos voltar lá para Maceió. Você teve alguma formação religiosa?
R – Eu fui criada na igreja evangélica até os meus 24 anos, mais ou menos.
P/1 – Você seguia?
R – Seguia. Foram duas coisas que me formaram bastante. Lógico que tirando a minha mãe, muito honesta, muito guerreira. Uma foi essa igreja, e outra foi o karatê e a filosofia de vida.
P/1 – Com quanto anos você praticava?
R – Já grande, com uns 18 anos.
P/1 – Então vamos voltar. Lá em Maceió como foi na escola?
R – Eu não cheguei a morar Maceió.
P/1 – Em Neopolis você ficou até cinco anos. Depois que você saiu de lá, foi morar em Aracajú?
R – É.
P/1 – E em Aracajú, como foi a entrada na escola?
R – A escola era na mesma rua em que eu morava. Foi um tempo de choro também, mas foi a primeira escola que eu me diverti. Eu conseguia ficar. Não sei se porque era perto de casa, no recreio eu conseguia ver a casa e tal. Eu tinha a sensação de que um dia a minha mãe poderia não abandonar. Acho que toda criança passa por isso, ainda mais com uma história como a minha. Mas eu lembro de brincar no parque da escola, de brincar de balanço. Nessa escola eu fui me soltando. Era muito gostoso. Também tem o fato de ser uma escola maior. Mas eu era muito tímida, muito envergonhada. Depois dessa escola eu fui para uma maior, que tinha primeira e segunda série e tal.
P/1 – Você lembra de alguma professor?
R – Não lembro. Eu não gostava de professores.
P/1 – Você tinha amigos?
R – Não, não tinha. É, eu não lembro de nenhum professor quando pequena. Nessa escola de Aracajú, eu só me lembro de um menino assim, bem loirinho. Eu estava no balanço, eu me empurrou, eu cai e bati nele . Só lembro disso e de um episódio nessa primeira escola, o qual era dia de tirar aquelas fotos para dia das mães, dia de não sei o que lá. Montaram um estudiozinho com lancheiras de um lado, lápis de cor. Eu lembro que a minha mãe prendia o meu cabelo com dois cocozinhos assim, e a minha professora, que eu não me lembro o nome do rosto nem de nada que, para tirar a foto, tirou os cocozinhos, desfez todos os cachos do meu cabelo, me colocou na frente da câmera com um lápis e uma lancheira que não eram minhas, e eu odiei aquilo! Eu tinha o cabelo ruivo, e nessa foto estou horrorosa, porque odiei aquela foto com tudo que não era meu, e por ela ter desfeito os meus cachos. Fiquei muito chateada nesse dia.
P/1 – Até o ginásio você não gostava de escola?
R – Na verdade, eu gostava de estudar, não gostava era de frequentar a escola, porque eu tinha raiva de professor fazer pergunta na frente de todo mundo. Eu tinha vergonha alheia. Se um professor fizesse pergunta a um coleguinha, eu sentia vergonha por ele. Eu não respondia nem ‘presente’, o professor chamava meu nome e eu só respondia com um aceno de mão. No pátio não, eu brincava. O negócio era dentro da sala de aula, que eu não gostava. Eu comecei a falar em sala de aula agora na USP (Universidade de São Paulo). Depois de dois anos de aula, conversando com os professores, mais o curso de teatro, começou a melhorar, mas antes disso, eu não conseguia coversar. O meu primeiro seminário eu vim fazer na USP.
P/1 – Ai no ginásio você continuava com esse comportamento?
R – Continuava.
P/1 – Você tinha amigos fora da escola?
R – Tinha bastantes amigos. Principalmente amigos da igreja. Ainda adolescente, eu fui coreografa de um grupo de adolescentes. Esse grupo rodava o Brasil e tal, então eu tinha muitas amizades fora.
P/1 – Quando você começou com as coreografias?
R – Com 15, 16 anos. Eu sempre gostei de danças, mesmo a minha mãe não deixando eu fazer. Eu tinha um grupo, chamado ‘Kings Kids’, que era um grupo dos Estados Unidos e eles iam agregando outros adolescentes e formando outros grupos, tipo células. Eu participei do grupo original e comecei a a trabalhar com eles e três nãos depois, acabei virando coreógrafa de uma dessas células. Como era um grupo de adolescentes, a minha casa vivia cheia de jovens.
P/1 – Que músicas vocês escutavam?
R – Escondido ou não? . Tiveram fases e fases. Teve uma fase em que eu escutava muito instrumental, por causa do meu irmão mais velho, ele gostava muito de orquestras sinfônicas, tocava violoncelo, então eu escutava muito. Com os meus sete, oito anos, o meu sonho era tocar piano. Tentei entrar no conservatório, mas não aconteceu, porque eu precisava de um piano para poder estudar. Também pelo meu irmão, eu escutava muito Milton Nascimento, mas a grande influência era de música evangélica, que é o que rolava dentro de casa. Mas eu não gostava muito não. No auge da escola, com uns 13, 14 anos, eu escutava muita música internacional.
P/1 – Quais, você lembra?
R – Algumas assim, mas eu não sei cantar em inglês não. Ah, Whitney Houston, que hoje eu não curto muito não.
P/1 – Você ia em festinhas e bailinhos?
R – Não, magina. De jeito nenhum! Era igreja, escola e casa. Mas tinha muita vontade. O primeiro show que não era da igreja, eu fui quando já tinha 22 anos de idade.
P/1 – Que show que era?
R – Ah, era show de grupos de forró. Não sei se a Elba Ramalho estava. Era uma época que tinham muitos show casados. Ia uma banda de forro, uma de rock e uma de samba, por exemplo. Isso lá em Aracajú. Foi muito engraçado porque foi o meu primeiro show. E no meio do show, eu dançando samba horrores, sou apaixonada por samba, escutei um barulho muito grande no teto. Fiquei no meio do salão dizendo “ai meu Deus! Eu não deveria estar aqui! O mundo está acabando” O mundo está acabando”, e os meus amigos falando: “deixa de ser louca! É um avião que está passando”. . Isso era medo, mas depois foi passando.
P/1 – E namorados?
R – Ah, eu com 12 anos, mais ou menos, namorava os menininhos na escola. Mas namoro mesmo, foi aos 15 anos, com o Tito.
P/1 – Como você conheceu ele?
R – Ele era o meu vizinho. Era tenente do exército. Quando eu saia a porta, via ele passando fardado e achava aquilo lindo, ai me apaixonei. Falava para uma amiga minha, Dani, e ela fez todo o conchavo. Hoje eu sou comadre dela, fui madrinha do filho dela. E eu era ousada, ele disse que não queria nada comigo e eu disse que daria um mês para ele se apaixonar por mim. Namoramos por um ano e três meses, eu acho.
P/1 – Como era Aracajú naquela época?
R – Ah, eu sou apaixonada demais por Aracajú. Eu achava a cidade um mundo! Muito grande! Desde os nove anos de idade eu tinha o sonho de ser atriz. Eu assistia “a gata comeu” e ficava imitando a Cristiane Torlone, mas eu achava que ser atriz era coisa dos Estados Unidos, e isso ficou adormecido. Aos 15 anos, comecei a fazer teatro na escola, mas pouca coisa, assim. Meu universo era igreja, escola e casa. Quando eu tinha que fugir para algum lugar, eu ia à praia. Era o meu refúgio. Sempre tive essa ligação com o mar, assim. Então eu ia andar. Saia da escola e ia para a praia caminhar. Minha mãe nem sabia disso. Eu não conhecia muito bem Aracajú. A forma como minha mãe nos introduziu a religiosidade, me enclausurou muito. Não quanto a religião, mas sim com a religiosidade da gente. Mas ainda bem. Foi bom por um lado.
P/1 – Você ia ao Rio? Conhecia outros estados?
R – Não. Eu ia a Maceió, só. E aos 15 anos fui a primeira vez ao Rio. Quando comecei com esse grupo de dança, ai sim: ia a Salvador, Recife, mas também com o pessoal da igreja. Isso só mudou quando eu decidi sair da igreja.
P/1 – Com quantos anos você tomou essa decisão?
R – Eu tive altas e baixas. Quando o meu irmão morreu, aos 15 anos, eu frequentava a igreja Batista. Nessa época eu me senti muito abandonada. Estava fragilizada e queria uma atenção maior. Fui para a igreja Presbiteriana, onde tinha muitos jovens que me acolheram e tal. Depois eu voltei para a Batista. Foi só aos 26 anos que eu decidi que queria conhecer outras coisas.
P/1 – Ai você já estava em São Paulo?
R – Não. Eu cheguei em São Paulo em 2006.
P/1 – E quando você começou a trabalhar?
R – Ah, eu já fazia alguma coisas durante a adolescência. Mas o meu primeiro emprego mesmo foi aos 16 anos, quando fiz um estágio na secretaria de cultura lá do estado. Era recepcionista e foi quando comecei mesmo a me envolver com cultura, conhecer mesmo as raízes e tal. Mas também não conseguia muito ir aos eventos, por conta da igreja e tal. Mas foi nessa época que eu percebi que queria mesmo me envolver mais com cultura. Fiquei nessa secretaria por três anos.
P/1 – Depois do colégio você faz faculdade?
R – Com 16 anos eu estava fazendo um curso que eu não queria. Fazia um que a minha mãe queria. Nessa época tinha o curso cientifico, que era o segundo grau e tinha contabilidade junto. Eu fui a pulso. Chorando muito. Eu já tinha dificuldade de ir a escola e ainda a minha mãe queria que eu fizesse uma coisa que não me agradava, porque minha irmã estudava contabilidade. Eu acabei indo e lá na escola teve um episódio muito chato. A porteira me confundiu com uma outra pessoa e me espancou na escola. Deu polícia, tive que ir para o IML (Instituto Médico Legal) fazer exame de corpo delito e tal. Na época eu era amiga do secretário de educação, ele foi envolvido e acabou afastando diretor, coordenador, todo mundo que tinha nessa escola, que era uma escola muito grande.
P/1 – Porque ela te bateu?
R – Eu não gostava de escola, mas gostava muito de estudar. No intervalo de uma aula para outra, eu fui na sala dos professores para ver se a professora de geografia já tinha chegado e infelizmente, eu estava na hora e lugar errado, essa porteira tinha levado o filho dela pequeninho para a escola e eu fui entrando para ver se a professora tinha chegado. Nisso, uns quatro, cinco alunos estavam tentando passar pela porta, invadindo, para poder sair da escola, e eu indo a sala dos professores. Nisso os meninos empurraram o filho dela, que caiu. Quando ela virou, a primeira pessoa que ela viu fui eu. Então ela me espancou. Cai no chão e recebi chute, soco, tudo. Naquele tudo eu falei “realmente, não quero mais escola”.
P/1 – E ai, quando ela descobriu que não foi você?
R – Ela não quis nem saber. Ela é surdo/muda. As pessoas tentaram explicar pra ela, mas não adiantou. Os professores tiveram que chegar e me tirar dali.
P/1 – E os professores?
R – Eles não acreditavam naquilo. Teve professor que chegou a empurrar ela e tal. E ai eu liguei para o meu cunhado, que me buscou em casa para irmos à delegacia para dar parte dela. Fiz os exames de corpo delito, e foi tudo para a secretaria de educação. A diretora e coordenador foram exoneradas, foi bem complicado. Depois disso eu consegui frequentar só mais três, quarto meses e sai da escola. Entrei em desespero e não queria ir mais. Isso de 16 para 17 anos. Fiquei até os meus 18, quase 19 sem ir para a escola, não queria mais.
P/1 – E você trabalhava?
R – Trabalhava. E aos 19 anos a minha mãe conversou seriamente comigo, dizendo que eu precisava voltar a escola. Nessa época, alguém indicou a ela que eu fizesse supletivo, porque assim eu não precisava frequentar a escola. Fiz o supletivo junto com a minha mãe. Ela fazendo o segundo grau. Foi ai que eu consegui frequentar a escola, com ela fazendo o mesmo curso que eu. Ai era bem diferente, era todo mundo adulto, mães, pais, então eu fiquei mais sossegada. Então eu tirei o segundo grau assim. Tentei fazer vestibular para educação física, mas não conseguia fazer mais nada que me lembrasse escola. Eu era muito revoltada com isso! Porque eu queria muito frequentar uma escola, mas não conseguia. Até que eu descobri a EAD (Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo) e, com 31 anos de idade, falei: “vou fazer e vou passar!”. Fiquei estudando em Aracajú mesmo.
P/1 – Como você ficou sabendo?
R – Um rapaz que tinha sido meu diretor de teatro em Aracajú prestou a prova e não passou. Comentou comigo o que era e, após um ano sem prestar, fez a prova e conseguiu entrar. Nisso ele me incentivou e eu comecei a estudar e juntar dinheiro para vir.
P/1 – Depois desse emprego na secretaria de cultura, para onde você foi?
R – Ai, eu não me lembro. Acho que eu passei um período sem trabalhar. Eu jogava futebol e fui chamada para jogar no Vasgo da Gama.
P/1 – Você jogava bem então?
R – É. Ai eu fui pro Rio de Janeiro. Fiquei nove meses jogando lá.
P/1 – E você jogava em algum time em Aracajú?
R – Não. Me viram jogando num parque. Foi um cara lá do Rio, que tinha vindo para o aniversário da minha avó Alaide. Antes disso nós tínhamos ido para um parque, para jogar e ele me viu jogando. Ai a noite ele me chamou.
P/1 – E quem é ele?
R – Ele é o Pompeu, é amigo dos meus tios. Da minha irmã do meu pai, que mora no Rio e o convidou para esse aniversário em Aracajú. Ele me viu, gostou, e durante o aniversário da minha avó ele me chamou pra ir para lá. Eu fiquei meio sem acreditar, mas ele conversou com o meu pai e minha mãe e tal, e eu acabei indo para lá.
P/1 – No Rio, você foi morar com quem?
R – Morei na casa da minha tia Márcia. Irmã da minha mãe.
P/1 – Como foi esse período?
R – Ah, foi difícil pra mim. Eu tinha 21 anos e estava realizando um sonho, mas chorava muito com saudades da minha mãe. Não consegui ficar por causa disso. E era uma diferença muito grande, sair de Aracajú e ir para o Rio de Janeiro para morar. Eu não dei conta. Eu ia para o Vasco com o meu primo Fernando e depois comecei a ir sozinha, mas eu não me adaptei. Treinava durante o dia e chorava, chorava, chorava a noite. Até que um dia a minha tia falou que não adiantava eu sofrer tanto, para realizar um sonho. Ai um dia eu liguei para a minha mãe dizendo que queria ir embora, e ela disse que tudo bem. Ai voltei para Aracajú. Lá eu fiquei jogando em um time, o time do seu Paulo.
P/1 – Você ganhava para isso?
R – Não. Se hoje em dia já é difícil para o futebol feminino, imagina naquela época. Era praticamente pagar para jogar. O seu Paulo é um senhor apaixonado por futebol, principalmente o feminino. Ele trabalha com isso há anos. Sai por ai juntando meninas e consegue patrocínio de um e de outro, e tem uma estruturazinha: um ônibus que leva e traz as atletas, dá uniforme e tal. Joguei lá por um tempo e fiz grande amigas, que carrego comigo até hoje. Tem a Jan, a Jú, uma galera.
P/1 – Quanto tempo você ficou no time?
R – Acho que uns 2 anos.
P/1 – Você estava com 24 anos?
R – Isso, mas ou menos. Até que rolou a história de jogar no São Paulo, mas eu não quis mais. Foi quando eu comecei a me envolver mais com teatro. Nessa época eu assisti uma peça no teatro Tobias Barreto, em Aracajú, uma peça maravilhosa com as atrizes Jacks Fagundes e a Letícia Spiller. Naquele dia eu sai do teatro e falei: “eu quero isso para a minha vida. Quero fazer isso como profissão”. Então entrei para um grupo chamado “cirando do espetáculo”, lá em Aracajú. Fiz uma oficina de um mês com eles e já comecei a trabalhar. Fiquei lá por cinco anos, e foi quando eu resolvi vir para São Paulo.
P/1 – Você conseguia viver do teatro?
R – Conseguia. Eu morava com a minha mãe, não pagava aluguel nem nada. A gente já tinha uma situação financeira mais bacana.Então o que eu ganhava era para mim. Para comprar as minhas roupas, pagar o meu cinema, me virar. Depois de cinco, seis anos eu dei uma parada no teatro. Eu já tinha trabalhado com produção de TV. Trabalhei em duas televisões de lá , de TV a cabo, e adorava isso. Ai fui tirar o meu DRT (registro profissional de locutor), viajava toda a sexta feira do ano, fazia doze horas de viagem para Itabuna, na Bahia, para tirar o DRT. Passava sexta e sábado lá e consegui tirar. Ai fiquei trabalhando em produtoras e adorava, fazia produção interna e externa, mas me faltava o teatro. Foi muito bom porque hoje, como atriz, eu sei produzir as minhas coisas. Quando estou fazendo um filme, as pessoas com quem eu mais converso é com o câmera, o iluminador, a tia que ajuda a limpar o cenário e tal.
P/1 – Nisso você já tinha tentado se envolver com cinema?
R – Não. Só teatro e produção.
P/1 – Em quais TVs você trabalhou?
R – Eu trabalhei na TV Cidade, depois fui para a TV Cajú e depois para a TV Alese, todas do canal fechado de Aracajú. Na TV Alese eu consegui conciliar teatro e televisão. Nessa época eu já tinha comprado o meu apartamento e precisava trabalhar como produtora para pagar.
P/1 – A sua mãe te ajudou a comprar o apartamento?
R – Ajudou sim. Mas na TV Alese eu tinha um salário bacana e consegui conciliar com o teatro. Quando sai da televisão, ai decidi trabalhar só com o teatro mesmo. Um ano depois eu decidi vir para São Paulo.
P/1 – Você já tinha vindo para São Paulo?
R – Nunca tinha vindo.
P/1 – Como foi a sua chegada? Você chegou e foi para aonde?
R – Uma companhia de teatro de São Paulo tinha ido para Aracajú e estava precisando de duas atrizes para compor o elenco, eu fiz o teste e passei. Mas eu já tinha planejado para vir para São Paulo. Mas me programei para vir em setembro, e isso era em abril, maio. Eu já estava estudando para o vestibular e tal. Um mês depois que a companhia voltou para São Paulo eles me ligarão e disseram porque eu não iria antes, pois tinha um trabalho lá para mim e tal, inclusive com um teste para a novela Malhação (rede Globo de televisão). Eu ficava meio desconfiada, mas serviu como uma mola para eu vir. Vim com a passagem de ida e quarenta reais. . Nessa época eu peguei uma PET de refrigerante e comecei a juntar todas as moedas de um real que eu via. Fiz um cofrezinho que começou em março. Todos dez, vinte reais que eu pegava, trocava por moeda e colocava lá. Quando foi em junho, que eu precisava vir para São Paulo, fui a agencia para ver o preço da passagem, que era 315 reais. Eu estava sem grana porque tinha montado uma cantina em uma escola pré vestibular e estava sem grana. Tinha quebrado, estava para perder o carro e tal. Ai pensei: “bom, o dinheiro que eu tenho está lá na PET de refrigerante”. . Abri a PET e tinha 314 reais. Ai falei: “mãe, você me empresta um real”? . Ai eu tinha mais um dinheirinho e enfim, comprei a passagem e me lembro que cheguei no dia 22 de junho de 2006 aqui em Guarulhos. Uma grande amiga, que eu conheci quando tinha ido com essa companhia para Aracajú na peça Telma, foi me buscar com um carrinho velho que ela tinha e me levou para a casa dela, em São Miguel Paulista. Pra mim, até então, Moema e São Miguel Paulista era a mesma coisa. AI ela me levou para a casa dessa pessoa para fazer teste para a Malhação, que tinha trabalho e não sei o que. Antes de eu vir, ela falou que tinha um quarto pra mim, que eu poderia morar. Na verdade eu fui morar num escritório, com cinco cães que faziam coco e rasgava o meu colchão, infernizavam a minha vida. Mora lá com uma pessoa que era viciada em bingo. Ela jogava horrores em bingo. Moravam na Chácara Flora e se tivesse cinco reais para comprar pão, ela jogava, e me arrastava para o bingo. Eu não falava para a minha mãe sobre as minhas dificuldades daqui, pois eu achava que ela iria querer que eu voltasse para Aracajú e eu não queria. Queria passar na EAD. E era mentira. Na verdade, não tinha teste de Malhação nenhuma, não tinha peça de teatro nenhuma. A pessoa vivia doente, todas as doenças psicológicas. Até o dia que eu disse a ela que ela teria que se virar para arrumar alguma pra eu trabalhar, afinal, tinha ido para lá por ela. Ai fomos, mechemos em um monte de coisas. Ela era, pois não é mais, uma dessas pessoas que não soube fazer as coisas na vida. Já trabalhou na rede Globo, teve cinco peças em cartaz, foi para o programa do Jô Soares duas ou três vezes, tinha tudo para ser alguém na vida, mas enfim. Acabamos montando uma peça dela que havia feito muito sucesso, mas não vou falar o nome. Acabamos montando isso de novo.
P/1 – E quem é essa pessoas?
R – Eu prefiro não falar. Montamos essa peça e um patrocínio, para conseguir morar em um hotel. Começamos a mandar, mandar, mandar, mas claro que não conseguimos, porque precisávamos de alguém famoso para conseguir. Por último eu mandei para um hotel maravilhoso em Moema, na Avenida Ibirapuera e conseguimos. Porém não tínhamos direito a refeição nenhuma. Moema, tudo muito caro, e a promessa da peça é que ganharíamos duzentos, trezentos reais por final de semana. Não era o que eu esperava, mas dava para eu me manter durante o vestibular. Quando a peça estreou, a gente ganhava dez, quinze reais por semana. O dinheiro não dava nem para ir para o teatro. E Telma dizia “porque você não conta para a sua mãe o que está passando?”. E eu não queria, pois ela ia me mandar voltar. Enfim. Comecei a passar fome. Passei dois dias e meio só com água e bolacha, mas eu dizia: “eu vou ficar, vou ficar! Eu vou passar, vou passar!”. E ai, no hotel, fiz amizade com garçonete, tananã, e elas descobriram que estávamos passando necessidade. Ai descobriram um lugarzinho no hotel onde as câmeras não pegavam e traziam comida para a gente. Comi algumas vezes assim. Um belo dia, as duas e meia da manhã, eu estou na janela olhando e vejo um bingo. Ai olhei para Telma, Telma olhou para mim e disse: “vamos, mas com qual dinheiro”?. Eu tinha uma cédula de dois reais e disse, vamos! Trocamos de roupa, lindas, maravilhosas, descemos e fomos para o bingo. Como Telma já tinha experiência em bingo, passou olhando as máquinas para ver se alguém tinha deixado algum creditozinho e viu uma máquina com dois créditos. Olhou para mim e disse, vamos? Não tinha ninguém olhando, jogamos e ganhamos 75 reais . Nesse dia sentamos naquela mesa de jogo, onde se grita “bingo” e tal. Sentei do lado de uma senhorinha de setenta e poucos anos, japonesa, que me ensinou tudo o que é palavrão em japonês. Maravilhosa! Adorei! . Nesse dia eu fiquei tão empolgada, eu nunca tinha jogado! Comprei uma cartelinha daquela e fechei o bingo, eram 300 reais, mas eu não conseguia dizer bingo! Tentava, tentava, e a voz não saia. E Telma dizendo: “o que foi, bicha?”. Ai fechou a rodada e ela me disse: “você fez bingo? Porque que não gritou, bixa? Tá louca? A gente precisa comer!”. Enfim. Mas foi naquele dia que a gente descobriu que davam sopa no bingo as três da manhã. O que a gente passou a fazer? Dormir durante o dia e durante a noite a gente guardava cinco reais e ia ao bingo comer. Eu tenho muito orgulho de contar essas coisas. A minha mãe tinha condições de me mandar dinheiro, mas eu não queria. Nisso foi acontecendo o vestibular e foi passando o tempo. E muito louco foi a forma com que eu sai do hotel, que era patrocínio. Muitas vezes a gente saia e quando voltava, tinha umas camareiras ao telefone, e quando chegávamos elas diziam “não, eu estou no quarto não sei quanto, e quando a gente saia elas desligavam”. A gente foi descobrir que gastaram 900 reais de telefone no nosso quarto, o qual a gente nunca tinha usado! A primeira vez que fui pegar no telefone para ligar para a recepção, Telma me disse: “bixa, desliga esse telefone que até para a recepção você paga”. E nunca liguei. E ai, quando nós fomos sair, o hotel cobrou da gente esses 900 reais. Isso estava acontecendo paralelamente ao vestibular da EAD. Fiz a primeira fase e passei, na segunda fase, eliminatória eu também passei e na terceira fase, passei. Eu sempre ligava para a minha mãe chorando quando passava. Eu ia para Aracajú pegar todas as minhas coisas e voltar, mesmo não sabendo aonde então eu ia morar. E ai, o hotel chega e me diz que eu tinha essa conta de 900 reais para pagar. Então me mandaram a conta telefônica detalhada, não tinha nenhum telefonema meu! Tinha telefonema para Florianópolis, Ribeirão Preto, não sei o que, não sei aonde. E então eu disse que se eles conseguissem comprovar que os telefonemas eram meus, eu pagaria. Nem que eu trabalhasse um mês no hotel para pagar a dívida. Enfim, eles nunca se prontificaram a investigar. A minha passagem eu ganhei de um amigo, Oswaldo Matos, dono de um restaurante no Copan. Muitas vezes ele me deu o que comer, dormidinhas e tal, eu tive muitos anjos em São Paulo, e falei: “e agora, como vou sair do hotel”. Oswaldo me deu a passagem para ir para Aracajú e a volta a minha mãe que daria. O pessoal do hotel prendeu as minhas coisas e eu não conseguia tirar. Arrumei as minhas malas, deixei umas roupas velhas dentro do quarto e das duas malas que eu tinha, com tudo que era meu, transformei em uma e avisei a Rafa, amigo que também morava lá. Eu tinha deixado número de Aracajú, da minha mãe, tudo com eles, e disse que não estava fugindo, mas que não ia pagar o que eles estavam me cobrando. Eles foram muito irredutíveis e não quiseram saber. Passei no quarto do Rafa e disse na recepção que estava levando ele embora. Só que eu fui junto e nunca mais voltei ao hotel. . Sai correndo na Avenida Ibirapuera, peguei carona com o meu amigo Marcelo, fui para a casa dele e as cinco da manhã fui embora. De Aracajú eu liguei para o hotel explicando que não estava fugindo, mas que eu havia passado na USP e que eles não estavam me liberando. Depois eles viram que realmente não tinha nada a ver. Minha mãe ainda me disse para dar 300 reais para eles, eu voltei de Aracajú, fui para o hotel e mesmo eles me falando que haviam comprovado e mandado a camareira embora, eu deixei 300 reais lá, fiz questão. Depois fui descobrir que um amigo que também passou na EAD morava em frente ao hotel e me chamou para morar lá. Acabei morando na mesma esquina, passava todos os dias na frente do hotel . Morei uns dois meses lá e o Oswaldo conseguiu um trabalho pra mim como radialista.
P/1 – Você já era radialista?
R – Já. O DRT que eu tinha ido tirar em Itabuna era para radialista e produtora.
P/1 – Você já tinha trabalhado como radialista?
R – Nunca! Mas fui e o Adalto Francisco, que é locutor da radio Tupi, me chamou para fazer um estágio lá. Fiquei duas semanas, eu acho, mas não dava conta porque meu curso na USP terminava as 23:30 horas, eu tinha que estar lá a meia noite para sair as seis da manhã. Eu tinha acabado de chegar em São Paulo, praticamente. Foi ai que me tornei independente, pois até então, só ficava andando com Telma para todo lugar. Ela que me ensinou a andar de ônibus e tal. Enfim, não dava tempo de sair da aula e chegar na rádio e só fiquei duas semanas lá. Depois consegui moradia no CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo), onde eu moro até hoje, e ai aconteceram milhões de coisas.
P/1 – Qual foi a sua primeira impressão ao chegar em São Paulo?
R – Eu vim no tempo certo. Eu sempre disse que nunca moraria em São Paulo, mas eu vim numa idade já madura, com 31 anos de idade e, por incrível que pareça, eu não fiquei muito impressionada. Impressionada eu fiquei, mas eu tinha metas muito nítidas para alcançar. Então eu já sabia que São Paulo era esse lugar louco, que você pode se dar muito bem, muito mal, mais ou menos, e depois de ter passado por tanta coisa, eu não tive muito medo. Logo quando eu cheguei na Chácara Flora, eu não saia muito de lá, então para mim São Paulo era aquele bairrozinho lindo e tal. Eu ia no teatro, ficava de carro com eles, não tinha muito contato com a cidade. Eu comecei a sentir São Paulo depois desses seis, sete meses da minha chegada, ou seja, de junho até dezembro, e também quando eu voltei para Aracajú. Na volta eu senti São Paulo pulsar. Nessa época eu não tinha mais a Telma, então tive que me virar, pegar ônibus sozinha, ir para a avenida Paulista, e ai eu passei dois meses em crise. Isso porque em Aracajú, passando dois meses sem trabalhar, eu ia vender cachorro-quente, roupa, então eu estava empregada sempre. Em São Paulo eu não sabia tatear absolutamente nada. Eu não sabia aonde trabalhar, o que fazer. Isso me chocou muito. E o que me irritava profundamente é que as pessoas aqui parece que tem o dedo na buzina. Ai! Aracajú tem o trânsito mínimo, e isso me irritava muito aqui: barulho, barulho, barulho. Mas eu me adaptei muito rápido, e o que fez com que isso acontecesse era o meu foco. Eu demorei muito para decidir o que eu queria na vida, passei muito tempo fazendo outras coisas, já tive umas 22, 23 profissões diferentes. Foi nessa época que eu fui pra USP, para aquela bolha. Até brinco, quando saio de lá, e falo que vou para o exterior.
P/1 – E nisso você saiu da rádio em que trabalhava?
R – Isso. Sai e ai precisava me dedicar ao curso, que era muito intenso. A cidade era muito louca, eu tinha acabado de descobrir o que queria da vida mas ainda não sabia exatamente o que fazer com aquilo. Então o que eu fiz? Tranquei o curso, porque eu estava pirando. Fiquei seis, sete meses fazendo outras coisas.
P/1 – Que tipo?
R – Ah, fui trabalhar, fiz curso de oratória, fiz outras coisas. Quando eu voltei para Aracajú eu contei para a minha mãe que tinha passado, recebi a maior bronca dela e da minha irmã, então passei a receber um dinheiro dela. Pouco, mas eu recebia. Também fazia alguns freelas (trabalho free lancer), comecei a fazer eventos, trabalhos com publicidade, ia me virando. Então eu dei aquela respirada e quando voltei para a EAD, ai sim eu dei conta do meu curso. Em 2009 eu fiz um teste para o filme “Lula, o filho do Brasil”. Passei e fiz uma das irmãs do Lula, ai já ganhei algum dinheiro e fui trabalhando assim, fazia teste para publicidade, teatro, comecei a fazer uma produção no Butantã, mas não deu certo. O curso era muito intenso, e fiquei dedicada a só isso.
P/1 – Dedicada a produção ou atuando?
R – Atuando. Fiz quatro ou cinco filmes, tem um que está passando agora no exterior, que chama “o amor que não ousa dizer o seu nome”, onde sou a protagonista.
P/1 – Vai passar aqui?
R – Passou na Cinemateca e estava no SESC Consolação (Serviço Social do Comércio). Então eu tenho me mantido assim. Quando pode, minha mãe me manda uma grana, faço meu estágio, que falta para eu me formar.
P/1 – E o projeto Sabiá?
R – É um projeto meu e da Bibi, Gabriela Gonçalvez. No início a gente tinha muita vontade de fazer um movimento com mulheres que tocassem tambores e contassem histórias. Então os tambores foram eliminados, uma outra menina que trabalhava conosco saiu e acabamos dando um tempo. Em 2011 nós retomamos, mas também não deu. Nesse ano retomamos novamente e agora o projeto está com tudo. Ontem tivemos uma reunião de trabalho, onde recolhemos depoimentos de pessoas diversas e, em teatro, transformamos isso em dramaturgia, com orientação de um diretor, um orientador, na verdade. Através de improvisos, nós vamos contando a história, ai surgem caminhadas, trejeitos dessas pessoas, falas, e ai vamos contando as histórias assim. Nesse episódio nós estamos contando as nossas próprias histórias, as partes da infância. Isso tudo se transforma em contos e vão surgindo canções também. A Bibi e eu somos compositoras.
P/1 – Olhando a sua trajetória, se você pudesse mudar algo, você mudaria?
R – Ah, eu mudaria algumas coisas. Eu mudaria, mas tem horas que eu acho que não. Eu acho que poderia ser menos traumático. Acho que a minha mãe poderia ter sofrido mesmo. Por exemplo, depois de ter contado tudo isso, minha mãe com 68 anos de idade, descobriu que está com mal de Alzheimer. Minha tia Vânia, a mais nova, está praticamente cega, sempre gostei e hoje ainda mais, me sinto na obrigação de preservar a história da minha família. Sei lá, eu acho muito injusto ela estar com Alzheimer. Alzheimer e Parkinson. Foi tudo muito duro para ela, eu acho que ela merecia um suspiro. É triste, mas faz parte da história.
P/1 – Qual é o seu maior sonho?
R – Poder ser atriz, ganhando o meu dinheiro, me sustentando dignamente com ele, dizendo o que eu gostaria de dizer, o que significa não fazer qualquer coisa, como atriz e gostaria de ser famosa . Eu gostaria! Eu sei o que eu quero dizer com isso, não gostaria de dizer qualquer coisa como atriz. Não quero ser famosa como hoje em dia. Na verdade, eu queria que o meu trabalho fosse famoso. Que fosse ouvido pelos quatro cantos, que o vento levasse, que desse muitos frutos, muitas flores, e com isso eu conseguisse me sustentar, comprar a minha casa, o meu carro, dar as festinhas que eu gosto de dar, receber os meus amigos, viver da minha interpretação.
P/1 – O que você achou sobre dar o seu depoimento?
R – A princípio é estranho contar coisas tão pessoais para alguém que eu nunca vi. Mas eu estou impressionada. E o que mais me impressionou foi chegar aqui e ver tanto jovem trabalhando no museu. É tão gostoso. Eu estou muito feliz de ter vindo aqui, ver esta estrutura, essa galera nova trabalhando com isso. Quando a gente chega aqui, a gente vê uma coisa que é muito levada a sério, não sei dos conflitos internos do museu, mas dá para ver que o trabalho é bem sério. Eu estava com medo de chegar aqui. Dependendo do que eu visse aqui, eu ia dizer que estava passando mal e ia embora. O que eu amo em São Paulo é o fato de ter gente para pensar em tudo! Como uma pessoa pensa em fazer o Museu da Pessoa? É primordial para a sociedade, nunca se esqueçam disso. Vocês fazem um trabalho para a humanidade.
P/1 – Nós é que agradecemos.
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