Entrevistada: Ana Lúcia Nunes da Silva
Entrevistador: Jonas Samaúma
Data: 21 de julho de 2025
Local: Olinda, Pernambuco
Projeto: Conte sua História
Código da Entrevista: PCSH 1489
Realização: Museu da Pessoa
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Mestra, a senhora podia falar o dia que você nasceu, para falar o seu nome completo, o dia que a senhora nasceu e aonde?
R:
Sim, eu nasci na ilha. Meu nome é Ana Lúcia Nunes da Silva, sou mestra de Coco, Pastoril, Acorda Povo, o Coco de Roda. E cantei muito, quando eu era novinha, cantei muito com o Salustiano, Ciranda. Trabalhei de mamulengo e sempre agarrada com o meu coco e o pastoril. Porque quando... Eu nasci já dentro da cultura. Quando eu nasci, minha casa já tinha coco de roda, pastoril, acorda povo. Tudo o meu pai que fazia. Agora tudo isso pelo amor. Não ganhava nem um tostão. Mas era uma coisa maravilhosa, porque toda a comunidade também ajudava. No dia que ia ter o coco de roda, comunidade aqui, o coco de roda só era... Eu nem disse... Eu não falei a data que eu nasci.
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A senhora nasceu em que ano?
R:
Eu nasci em 1944, 26 de março.
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26 de março. A senhora nasceu como? Você nasceu como?
R:
Em casa.
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Em casa. Quem que foi que pegou?
R:
A parteira que pegou também era coquista, morreu.
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Coquista? Qual o nome dela?
R:
Chamava ela Dona... Maria.
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Maria? Não é Jovelina?
R:
Mas porque a gente pastou, né? Dela eu pequenininha, só assim, até cinco aninhos de idade, eu... Mamãe me levava pra falar com ela, pra ver ela. Mas depois a gente... Ela se mudou, mas ela morava... Eu não nasci aqui, eu nasci na Ilha do Maruim.
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E como era o lugar que você nasceu naquela época?
R:
Mar na frente, maré atrás e minha casa no meio da maré e do mar.
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E como era?
R:
Na frente era o mar. Na frente da minha casa era o mar, aquele areado. Aí mamãe fez a casinha dela e atrás passava a maré. Pra gente atravessar, pra dentro da ilha mesmo tinha que atravessar de barco. Muitas casinhas tudo de tauba, cobertinha de palha. E a gente morava naquele areado ali, minha mãe comigo, pequenininha. Aí foi quando eu tava com uns oito meses, aí apareceu, né? Mamãe conta pra gente, ele também contava. Aí eu chamo meu pai, porque ele me criou. Meu pai verdadeiro era separado da minha mãe. Aí veio esse, eu tava com uns oito meses de idade, e se engraçaram da minha mãe lá, né? Namorou. Aí ele trouxe a gente, eu com oito meses, pra aqui. Essa casinha de junto aqui. Vim morar aqui. Pronto, com oito meses. E o pai que eu conheço é esse que me deu essa bandeira maravilhosa, essa barra de ouro, que é a cultura. Foi que me deu o mamulengo, o pastoril, o acorda-povo.
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Foi seu pai?
R:
Foi meu pai. Quando eu nasci meu pai já fazia Acorda Povo, fazia Pastoril e coco de roda. E esse acorda povo que a gente chama, não sei se você conhece. Você já conhece Acorda Povo?
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Pode contar pra gente como é.
R:
Pronto, o Acorda Povo era assim. Porque Coco de Roda, como estava, olha, maio, junho e julho. Esses três meses era de coco pra valer na nossa rua aqui. Entendeu? Coco, meu pai fazia Coco, agora a comunidade... Muita gente já morreu, esse povo todo desse tempo já morreu. Tem alguns que são filhos, mas os mestres quase todos foram embora. Então, papai fazia o Coco, mas a gente não tinha luz, não tinha luz elétrica. A gente era com candeeiro e cantar com o nosso gogó. Ninguém tinha microfone. Toda vida eu tive uma voz maravilhosa que papai do céu me deu. Eu pequenininha, com três aninhos já cantava. Não dizia as palavras certas, mas cantava. Então aí papai fazia assim, quem vai ficar no meu lugar quando eu for embora é essa menina. E tinha um homem que era também mestre de coco, chamava-se Benedito Grande. Eu tava já com os oito aninhos, ele dizia, deixa a menina aqui, que não tinha uma criança que cantasse e nem sambasse no coco, no meio dos pessoal mais velho. As crianças, ninguém queria que cantasse, não. Aí minha mãe falou assim, não pode cantar, só pode cantar os pessoal adultos, às sete horas, não é mais pra criança, sete horas, oito horas. Naquele tempo, você sabe que era uma rédea maravilhosa, né? De os pais com os filhos. Então, cada um... Aí ela fazia assim, vamos fazer um cocozinho pras crianças? Meu pai fazia. Bata o bumbo aqui. Aí a gente batia o bumbo. Aquelas mocinhas que eram todas comigo, novinhas, assim, abaixo de 13 anos. A gente era muita mocinha da comunidade. Aí começou a cantar. A gente fazia isso. Aí chamava o matinê. Aí a gente fazia. Vamos logo lavar os pratos. Vamos logo fazer as coisas para o matinê. O coco de roda na cadeira vai começar. Aí pronto. De tardezinha começava o coco para as crianças. Aí quando dava 5 horas para 6 horas. Pronto. Cada um para suas casas. E agora vai ser cuidado de fazer os cocos dos adultos. Isso tudo era nas salas das casas, não era na rua. Hoje o coco tá na rua, né? Mas era tudo dentro de casa. Seja pra criança, como adulto, era tudo dentro de casa.
Todo coquista fazia as salas grandonas, as salas casinhas de taipa, mas com as salas grandes. E o dono da casa ficava na porta. Pra quem chegar, entrar, se for gente decente, entrar. Se não for, rua. Aí ficava na porta. Aí eu era pequenininha, com minha mãe, assim, eu queria ficar acordada pra poder eu entrar naquele coco. Aí eu ficava assim já com oito aninhos. Aí eu comecei a responder Seu Benedito Grande, que ele era um mestre de coco maravilhoso, deixa a menina responder. Aí eu fui crescendo, né, crescendo. Quando eu dei uns 13 anos, eu já ficava perto dele pra ninguém botar pra dormir. Minha mãe, menina, não pode ficar aqui com criança no meio dos adultos. Mas eu era ansiosa, queria ficar. Porque tem criança que você ensina hoje o Coco de Roda, Pastoril, você sabe que aquela criança quer ser uma mestra mais tarde. Porque ela cuida de prestar atenção, pergunta como é, se dedica naquilo. Tem outras que brincam por brincar. Tem outras que dançam pastoril porque tá vendo as outras dançarem, mas tem outras que dançam com aquela intenção de quando crescer fazer aquilo que a gente tá fazendo. Porque o meu entendimento era esse. Quando crescesse. Aí eu fui crescendo dentro de 14 anos, aí eu já ia cantar. Isso aí é uma mestra de coco, ele dizia. Aí o meu pai cantava coco. Tinha uma moça que morava em Buíque. Aí ela veio de Buíque pra cá com 16 anos, ela contava que a vizinha minha que criou terminou de criar ela. Ela veio de Buíque, era enorme, não passava nessa porta, ela era sertaneja. Então aí ela já trazia, já trouxe aquele ritmo de coco da terra dela, que a terra dela era em Buíque, e Buíque é interior, né? Ela era de Buíque. Aí ela já cantava coco, aí com o meu pai ela viu o coco e se juntou o meu pai também com ela e pronto. O papai era um mestre de coco, ela também. Aí o coco quando chegava em maio, era maio, junho e julho, coco só era três meses. Agora só para o ano. Mas coco agora não é assim não. Coco agora é em casamento, coco agora é aniversário, coco agora é o carnaval. Vieram me buscar pra fazer coco pelo carnaval, há uns 10 anos atrás, assim, eu disse não vou não, porque coco não dá pra ser no carnaval. O carnaval é frevo. Mas que, pagando! Né, cultura? Vamos embora. Mas eu achava que era como meu pai fazia. Só maio, junho e julho. Mas coco hoje, agora, é pra toda vida. Quem quiser levar coco, leva pra fazer coco, mas antigamente... Mas por quê? Porque eles preparavam. Os mestres, meu pai, faziam um vinho de jenipapo. O que ele fazia, pegava um jenipapo, cortava, botava de infusão. Aí eu dizia, o que é isso, meu pai? Aí ele cavava o buraco, aquela vasilha bem tampadinha, enterrada, pra quando chegar o São João, no mês de maio, tira aquela botija dali, aí vai passar no moinho, que não existia liquidificador. Aí passava no moinho, mas não me lembro mais como é, o que ele botava dentro, era muito pequena. Aí eu sei que minha mãe coava, aquele jenipapo passado no moinho, aí botava numa toalha de prato e torcia. Aí ia botar dentro. A pitú, que não era a pitú, a pitú do camarão. Botava aquela pitú, aí fazia. Botava mais líquido de jenipapo do que pitú. A pitú passava mais longe. Mas o dedicamento do coco de roda, a pitú raiava. A pitú tinha que estar no meio do coco de roda, porque o pessoal, quase todos, era pescador. O pescador tomava muita bebida. Essa mestra minha, eu ainda peguei ela bebendo. Ela tomava... era pitú. Ela não queria bolo, não queria nada. Ela tomava uma pata de pitú e o coco rolava. E ela só cantava com o ganzá na mão. Se o bumbo não prestasse, ela mandava parar. Vai aprender a ler pra poder tocar a zabumba, que esse bumbo tá errado. Ela era assim, era uma mulher com aquele dom de mão dobrada, as pessoas, tá entendendo? E aí pronto, ela tocava com aquele ganzá. Aí meu pai foi dando mais, ficando doentinho, tinha pobrema do coração. Aí a gente já saía, eu e ela, pra gente cantar. O pessoal chamava pelo Sanzbon. Aí eu ia cantar lá no Xanga, lá no Tururu. Esse lugar é tão longe, nem tinha ônibus e nem tinha carro pra ir pra lá, que era dentro dos coqueiros. A casa de pescador lá, a gente ia, chamava a gente, aí ela me levava. Aí ia eu, mais umas cinco pessoas daqui, a gente ia tudo de pés pra cantar. Quando terminava o coco, o dia raiava.
Aí era a casa de pescador. Aí botava aqueles peixes fritos, peixe de coco, muito peixe a gente comia. Aí a minha mestra ia todo ano pra lá. A gente ia. Aí terminava o coco aqui, aí ia fazer lá. Aí chegou lá, ela não sabia ler nem o A, essa mestre, a dona jovem. Ela não sabia ler nem o A, porque depois que meu pai adoeceu, morreu, aí ela ficou com a gente, com o coco. Tá entendendo? Minhas irmãs tinha uma voz belíssima, mas eram dominadas por marido. Só não deixou o coco porque era noiva e eles não gostavam de coco de roda. E dizia que pra casar com a moça no meio daqueles pescadores cantando, tocando, eles não queriam. Olha, veja só. Aí elas não deixaram, não cantaram porque casou, vai obedecer o marido, né? Aí elas, as duas obedeceram, tudo mais mais velha cada voz linda, mas tinha que casar com ele, não podia casar porque ele não queria casar com moça que fosse cantar coco, pastoril, essas coisas, não queria. Mas a minha, eu nasci, parece que eu sou filha verdadeira do meu pai, que ele me criou, mas eu nasci para o coco, pastoril e o acorda-povo, porque depois que meu pai me ensinou, não larguei mais nunca. Quatro casamento. Ele pode ir. O meu coco eu não deixo. O meu acorda-povo eu não deixo. E vai embora os anéis e ficam os dedos. Eu novinha, 13, 14 anos, cabelo assim. Eu quero saber de casamento. Quero fazer coco, cantar. Eu cantava muito sem microfone. A minha voz era muito maravilhosa. Acho que o papai do céu já tinha me dado, porque nos colégios já me botava pra cantar. Nas escolas. No Orfeão eu já tinha aquele dom de cantar. Nos colégios, quando tinha festa, tudinho. Então, aí, eu continuei, foi que eu vim morar com ele. Eu digo, olha, eu não deixo o meu corpo de roda. Aí, ele ainda, como é assim, eu digo, se quiser ficar fixo, se não quiser, vá, que eu fico com o meu coco de roda, meu acorda-povo. Aí, ficou comigo, vai fazer 49 anos que eu moro com ele. Mas sempre quando eu ia cantar, ele sempre ia tocaiar. Sempre ficava nos cantos tocaiando, tudo isso.
R:
A menina fazia, ué, teu marido tá lindo, deixa ele ali que ele tá vindo com o ganso na mão e cantando, né? Aí saí mais da da jovem pra cantar na Rua da Palha, que é perto do Alto da Sé, aí me chamaram pra gente cantar lá. Muitos anos eu tinha É, eu tava com uns vinte anos, já. Tava com vinte e nove. Aí fui cantar lá. Quando ele tava cantando lá, ele chegou. Aí, bora! Aí eu disse, olha jovem, tá chamando a gente pra ir embora. Começou agora? Não vou, não. Começou agora. Aí, dona jovem, não vai, não. Ela só vai quando a gente for, a gente leva ela em casa. Aí que quando ele sai, aí tá certo. Aí ele foi embora pra dormir, pra trabalhar. Aí eu fiquei ali o coco de olho até o dia amanhecer. Aí quando ele sai, ela fez assim, Ana Lúcia, diga dona Jovem, que ela era parada. Diga. Isso dá um coco. Eu digo, Jovem, como é que dá um coco que eu não saí com a senhora pra cantar esse coco? Como é esse coco? Ela disse, não, eu vou cantar e você responde. E a gente tinha que responder mesmo, porque ela era assim. Aí, quando ele saiu, ela foi assim:
Galo cantou/cantou, mas não é hora/Vai dizer pra meu amor/que eu não vou pra casa agora.
Ela não sabia ler um A, mas ela fazia coco. Fui sair com ela, aí ficou um rapaz querendo paquerá-la, que ela era bonita. Aí ela disse assim, vou tirar um... Olha, tá passando isso e se dá um coco, viu? Mas, Dona Jovem, tu já vai tirar um coco sem a gente saber? Não, a resposta é pequena. Tu te lembra dessa coisa? Ela era pequenininha, mas tava com a gente. Ela tava com as mocinhas. Aí ela disse assim, Jovem, o quê? Ele tá me paquerando, ele quer que eu vá lá? Não. A resposta é essa: Oba, oba, quer vir ou quer que eu vá? Vai, responde! Oba, oba/quer vir ou quer que eu vá?/Quem imagina cria medo/e quem tem medo não vai lá. Mas oba, oba/quer vir ou quer que eu vá? Ela tirava a coco, olhava pra você e fazia coco maravilhoso. A gente foi pra essa casa também, ela também fez um coco muito bonito. Quando chegou lá, o rapaz tava chorando, que a moça, ele era coquista também, mas a esposa tinha ido se embora, ele ficou só. Ele fazia coco de roda na casa dele, aí ele conversando com ela, aí chorou. Aí ele fez assim. Aí ela disse assim, por que você tá chorando? Aí ele contou que ela foi-se embora, ele ficou com a mãe dele, tudinho. Aí ela tirou logo esse coco:
"Ô Lia, Ô Lia, por que você me deixou?/Meus olhos ficam chorando/meu coração sente a dor". Aí ficou até de manhã. Não faltava coco, porque ela fazia, ela não sabia ler nada, ela mandava eu escrever. Aí a gente escrevia e ficou os cocos dela, mais de meu pai, porque o dela só era mais de rebate. E o coco de rebate, nem todos coquistas sabem, que dizem que é coquista, mas não sabem nem que é o coco de rebate. O coco de rebate é aquele que vai e volta, vai e volta. E o coco de embolada demora muito pra poder, então, você responder. Como meu pai tinha esse: "Ô Niterói, capital do rio/ali vem um navio/vem muito galante, mas vem longe/ninguém não conhece/minha baiana parece/ o Benjamin Constant/Ai Baiana, ai Baiana, adeus, amor/Quando eu cheguei na usina/eu vi a bobina parar de repente/Seu gerente, tome mais cuidado/que o ano passado morreu muita gente/Ai Baiana, ai Baiana, adeus, amor/Baiana, quem foi que te disse/ que bala de rifle não mata ninguém?/Só mata bala de revólver/pancada de automóvel/e batida de trem/Ai, baiana, ai baiana, adeus, amor/Baiana, se você quiser, /eu faço chalé Feito de pedra e cal/ladrilho de marfim, varanda bordada a ouro/Só parece um tesouro no meio do jardim/Ai baiana, ai baiana, adeus, amor". É o coco de embolada que o coquista passa muito tempo para poder ver a resposta. E assim ele foi me ensinando e eu fui crescendo nesse ritmo, pronto. Quando eu dei, mais ou menos assim, uns 14 anos, eu já estava pegando o ganzá e cantando.
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A senhora lembra o primeiro coco que você compôs, que você criou?
R:
O que eu fiz? Primeiro coco que eu fiz... Acho que foi de “Cadê a Luciana”, não foi? Eu fazia coco, mas para a gente cantar assim mesmo, eu fiz um que a gente foi em uma casa, a mulher mandou chamar a gente, pra cantar lá. Mas ela não tinha recebido dinheiro. Aí ela disse, ah, mas a gente vai fazer o coco amanhã, porque eu tô sem dinheiro. Eu disse que nada, botava água no angu, a canjica, açaí, um chá torrado e vamos se embora. Um apito para os homens e vamos embora. Ela disse, e é, bora. Aí:
Eu estava lá, eu estava aqui,/você estava lá/eu só vim pra cá/e foi para cantar. Morenaê, vamos vadiar/Morenaê vamos vadiar/Morenaê, vamos vadiar/Morenaê, vamos vadiar.
A gente foi pra lá, não ia ter fogo, mas tinha que ir pra lá que eu queria cantar. Então a gente cantou até o dia amanhecer. Que eu disse, quando eu fui pro prefeito daqui de Olinda, que eu fui pra ele dar uma ajuda a gente, no cachê, pra gente fazer um acorda-povo, um coco de roda. Ele disse que não tinha, eu fui pra ele. Tá certo, não tem o que é que nós vamos fazer. Mas essa bandeira que eu carrego é de três anos de idade e eu não vou deixar. Aí eu disse pra ele: sem dinheiro e sem pandeiro, meu amor, eu brinco. E botei o evento na rua. As meninas, tudo de papel crepom, pastoril. Tudo de papelzinho crepom, areia prateada, ficaram lindas as pastoras. Porque ninguém queria cuidar da cultura. A cultura antigamente, misericórdia. A gente fazia pelo amor. Agora você vai fazer uma coisa, pergunta logo, quanto é? Vai ter dinheiro. Se não vai ter dinheiro, o negócio não vai dar bom. Porque eles não querem ir. Se vai três ou vai dois, vai muito. Ninguém quer ir. Porque hoje é tudo pelo dinheiro. Mas antigamente, a comunidade todinha fazia coco até o dia amanhecer. Mas era pra mostrar aquele trabalho maravilhoso das irmã, dos avós, dos pais. Era uma coisa maravilhosa, não tinha dinheiro, não tinha guaraná, não tinha cerveja. Era batida de maracujá, batida de caju, batida de cajá, vinho de jenipapo e a Pitú, que não deixava de raiar a Pitú. E o coco amanhecia o dia. Meu pai botava pamonha e canjica, outro vinha com arroz doce, outro vinha com milho cozinhado. A comunidade era assim, muita comida. Muita bebida, mas não existia aqui no coco da gente antigamente não tinha nem cerveja, nem Guaraná. As mulheres que não bebiam, tomavam suco, porque a casa de meu pai era um sítio. Tinha pé de sapoti, tinha pé de caju, tinha pé de tudo, tinha tudo. E o jenipapo, meu pai comprava, porque não tinha o pé aqui. O jenipapo era o vinho que ainda hoje é tradição no coco de Roda, o vinho de jenipapo. E o acorda povo que meu pai fazia era assim. Você começava o coco de roda, assim, por volta de oito horas da noite. Começava o coco, todo mundo cantando, pra o acorda povo sair de meia-noite. Agora, esse acorda povo é o quê? Um andor bonito. O santo, o São João Batista, em cima do andor. Um todo enfeitado de flores. E a gente pegar aquele andor, colocar nas costas e sair cantando. Até lá onde era o rio. Uma lonjura que eu acho que bem... Eu não sei nem dizer quantos metros. Quando eu terminar de contar a história, eu vou mostrar pra vocês pra onde a gente ia. Vocês conhecem Rio Doce? Rio Doce aí, Casa Caiada? Pronto, o acorda povo ia pra lá. Então, quando chega lá, a pessoa sai cantando aqui. São João Batista, dê-me a sua proteção. Jesus Cristo foi banhado, batizado no Rio do Jordão. Aí a gente, o Acorda Povo, a gente tava fazendo, mostrando o pessoal que São João Batista, quem batizou Jesus, no Rio de Jordão. A gente levava as meninas tudo bem vestidinhas, as meninas vestidas de anjo, as mulheres tudo com aquele chapéu, com rosa, tudo vestido de chitão, tudo cantando, a comunidade todinha cantando. Meia-noite já tava a gente saindo, meia-noite em ponto o Acorda Povo saía. Chegava na beira do rio, arriava o andor, Aí você aí vai cantar os louvores, né? Você vai cantar os louvores pra São João, o santo fica ali, aí pronto, você entra no rio, as meninas, as novinhas pediam era casamento, as pessoas de idade pediam saúde, trabalho, e os homens lá na frente no rio, mais adiante pra tomar banho, fazer os pedidos deles. Quando terminava ali, faziam o coco na beira do rio, botava o andor, tomava aquela batida, aquelas coisas, bebia, botava o andor e saía:
"São João Batista/dê-me a sua proteção/Jesus Cristo foi banhado/batizado no Rio de Jordão". Essa música é de meu pai.
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Um segundinho, mestra… Pois então, mestra, a senhora estava contando do Acorda Povo.
R:
Aí o pessoal que era de idade pedia saúde, trabalho, as moça pedia casamento e era realizado. Aí pronto, agora vamos se aprontar para o outro ano que vem. Aí, esses três meses era de coco pra rolar. E muitas mulheres que, quando chegava o tempo de coco ficavam todas contentes, porque só viviam ali de cuidar de marido, cuidar de filho, não tinha dança, não tinha brincadeira, e mesmo que tivesse uma dança, não podia, que era casada, os maridos não deixavam. E dava graças a Deus, quando chegava o coco de roda pra ir brincar. A noite todinha, porque eles também cantavam, eles eram zabumbeiros, né? E elas iam, acompanhavam, e era uma maravilha. Agora, aí, se não saía dinheiro, nadinha. mas a gente todo ano já se aprontava para o ano fazer o Acorda Povo.
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E qual foi uma dessas festas que foi marcante para a senhora? Uma que marcou muito a sua história?
R:
O Pastoril para mim é tudo. O Acorda Povo também foi um ato muito maravilhoso, muito bonito porque aquilo ali a gente chegava na beira do rio com aquelas músicas para tomar aquele banho e a gente pedir as coisas e quando vinha pra casa, se tiver doente, ficar boa. Aquilo marcou, né? Eu era muito nova ainda, mas me lembro mesmo que a música era bonita, o pessoal fazia que ele saía com aquela caminhada pra dentro daquele armado que só tinha coqueiro, matagal, não tinha carro, não tinha nada, só tinha coqueiro e carroça e cavalo. E a gente saía com aquele andor cantando pra beira do rio. Hoje não tem mais rio. E a gente faz, a gente representa, faz um andor, sai cantando, mostrando como era o Acorda Povo, mas rio não tem mais.
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O que aconteceu com o rio?
R:
Os rios poluíram, voaram, invadiram, as matas foram invadindo, fazendo casa, aí bota o negócio da privada, bota a parada dentro do rio, voa lixo dentro do rio, não é mais aquele rio limpo, limpo. Porque antigamente só era matagal, não tinha casa. Em tudo rio foram fazendo casa, aí foram tampando o rio, botando lixo ali dentro. Mas o rio antigamente era maravilhoso, porque não tinha ninguém morando. Só era mata e o rio.
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E ele fazia parte da festa, o rio?
R:
O rio, claro que a gente ia sair por aquele rio pra fazer, pra gente tomar banho e representar como Jesus foi batizado no rio de Jordão. A gente com aquela fé que Jesus foi batizado no rio de Jordão, a gente mergulha, três mergulhos, faz os pedido e tudo é realizado.
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E aí com a poluição do rio, vocês...
R:
Agora a gente sente tristeza porque não tem mais rio. Aí a gente sai com um andor de uma casa pra outra. E quando termina a procissão, naquela casa a gente tem um balde de água grande, com aquela água limpa, com perfume. Se quiser botar a pétalas das flores, bota. Se não quiser, só bota o perfume. E pra quem acompanhou, dá aquele banho. Entendeu? Todo mundo vinha. Bota pra mim, mestre. Bota em mim, bota em mim. Todo mundo foi ficar, faz fila pra botar, pra dar. Não podemos mais levar para o rio. A gente dá o banho com a água que a gente levou caminhando para o Acorda Povo.
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A senhora lembra a primeira festa que não teve mais o rio? Quando que parou de ir para o rio?
R:
Não, mas faz muitos anos. Faz muitos anos. Eu era nova, não era mãe, não era casada, novinha. O rio já tava o pessoal invadindo. Aqui tudo que é matagal, não tem, não tem nada de... O rio é corrente. Só tem aquele matagal. Casa nenhuma perto. Aquele rio é maravilhoso, né, Nil? A gente tomava a água dele. Botava as... afastava as folhas e tomava. Eu fui criada dentro do rio. Minha mãe e o pessoal daqui tudinho. A gente foi criada dentro do rio. Teve um rio que a gente... Ainda fez um acorda povo, que é onde Salustiano morava. Aí que tem o rio Piaba de Ouro, que ele tem um maracatu chamado Piaba de Ouro. Que esse rio tinha o nome de Piaba de Ouro. A gente lavava roupa lá, saía daqui pra lavar, que aqui não tinha água, só tinha cacimba. Aí, mamãe era lavadeira, três trouxas de roupa pra lavar não podia carregar pra lavar essa roupa toda em casa. A gente saía de madrugada para o rio para lavar roupa. A comunidade quase toda, era pouca gente que morava aqui. Não era essa a quantidade de gente que tem hoje, não. Era menos. Mas saía todo mundo. Quatro horas da manhã. Quando dava três horas a gente já tava pegando a roupinha, dobrando pra vir pra casa. Aquilo ali a gente já tinha chupado tanto caju, tanta manga na beira do rio, macaíba, azeitona, era tanta, tanta fruta. A gente tinha uma vida sofrida, mas alegre e contente, porque não é brincadeira você sair com uma trouxa de roupa daqui pra lapar pra Piaba de Ouro, e a gente saía porque mamãe era lavadeira, e a gente já tava tudo novinha, mocinha, levava as trouxa com ela pra ajudar ela a lavar. Mas era um dia de amor, a gente dentro d’água. A lavadeira fazia assim. Agora não entra ninguém pra tomar banho. Deixava a gente de enxaguá roupa. Quando a lavadeira terminava, já era meio-dia. Aquele rio era pra gente, era da gente. Tome banho, mergulhe aí, pum, pum, pum. Mamãe dizia, sai daí menina, que vocês almoçaram agora. Não tem almoço certo, aí terminaram de almoçar, tibum dentro do rio. Era uma maravilha, a gente passava o dia todo em ônibus. A gente era uma vida sofrida, mas a gente era alegre, contente, satisfeita, porque tudo era da natureza. Não tinha nada como botar nas comidas essas coisas que colocam hoje, né? As frutas botam no carbureto? Não. Aí pegava as frutas com a mão. Uma maravilha. Hoje as frutas botam no carbureto pra adolescer a pulso, né?
Agora aqui em casa era um sítio. Manga rosa, manga espada, sapoti, tudo tinha aqui. Mamãe, às vezes, chamava a gente pra almoçar, a gente nem queria almoçar, porque tava comendo sapoti lá atrás no pé, a gente tirava, caía no pé, a gente... Manga catei em pé, as mangas. A gente nem queria almoçar, mas mamãe já sabia que a gente tinha chupado manga, porque as mangas daqui eram baixo o pé dava muita galha, assim. Eu subia no pé de manga até no olhinho, tirava manga com a mão. Mãe dizia, menina, sai daí pra não quebrar um pé, um braço. Mas, gente, era aquela vida maravilhosa, muito, muito boa, muita moça, comunidade, tudo contente, tudo alegre. E a casa da gente, e a casa do meu pai aqui junto era assim. Moça, rapaz e tudinho. Parecia que era tudo irmão, mas era uma vida tão maravilhosa aqui nesse alto. Era uma vida que a gente era sofrida, não tinha gás, não tinha luz, era candeeiro com gás. Ao coco de roda meu pai botava um bocado de lampião, assim, com essas luzes. Mas as luzes que ele fazia eram de carbureto e eu não aprendi. Quando ele botava o carbureto e fazia que acendia, ficava mesmo assim. O vento não apagava aqueles lampiões grandes que meu pai fazia na frente de casa e no quintal, pra o coco de roda rolar. E a gente com a garganta pra cantar.
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E a senhora disse que era sofrida a vida. O que era sofrido?
R:
Sofrida porque não é como agora, né? Que agora tudo é fácil. As donas de casa, tudo, como é que diz? Pra criar filho, e tinha que pegar, lavar aquelas fraldinhas todinha bem lavadinha pra botar nas crianças. Hoje você, mulher hoje não lava mais as fraldas. Mulher hoje não faz mais mingau. Pega as coisas, balança, bota dentro do leite e bota os sustagem, balança e dá à criança. Antigamente era ir pra beira do fogo fazer aquela papa de maizena bem cozinhadinha com leite, ou de gado, ou leite ninho. Meu pai trazia muito leite de cabra. Meu pai gostava muito do leite de cabra. Era uma vida sofrida, agora nós todas de casa vivemos numa boa, porque compra fralda descartável, bota na criança e joga fora. E antigamente não. Você tinha que pegar aquelas fraldinhas todinha, lavar e estender todinho, pra não botar nenhuma daquelas de xixi na criança. Era uma vida sofrida, né? Pra lavar bem lavadinha, aquelas fraldinhas, esquentar água quente, ferver a roupinha. Minha mãe ensinava a gente a fazer isso. Quando nascia uma criança, a gente ia lavar a roupinha, a gente botava pra ferver água quente, fervia a roupa. As aguinhas dele não tinha bebedor. Fervia a água, botava numa quartinha de barro pra aquele recém-nascido. Não tinha história de água mineral, não. Então, não tinha bebedor, não. Era pra ferver a água pra gente tomar da quartinha. Hoje tá uma maravilha. Vai ali, compra água mineral. Só que tá mais ruim porque acabaram com o rio. A gente não tem mais aquele rio que saía de manhãzinha, de quatro horas da manhã já saía pra ir caminhar, pra ir pra dentro do rio, pra lavar roupa, tomar banho. Hoje não tem mais rio. Aqui não tem. Eu não sei nem onde é que tem rio mais. Não sei onde é que existe rio. Só se for nesse do interior, longe. Acho que ainda tem, né? Eu até tenho o sonho de levar um acorda-povo para o rio. Eu tenho o sonho na minha vida de levar um acorda povo para um rio. Pegar um ônibus, Botar o andor, o pessoal todinho louvando a São João e a gente para o rio. Para relembrar a minha infância. Tenho muita vontade de saber onde é que tem um rio maravilhoso para fazer esse acorda-povo.
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O que mais a senhora sente que essa destruição da natureza atrapalhou na sua cultura? Além da coisa do rio, teve mais coisa que destruiu a natureza e atrapalhou a cultura?
R:
Como assim você quer dizer?
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Esse desmatamento...
R:
Do rio?
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É.
R:
Ah, foi triste, né? Pra gente que foi criada trabalhando e fazendo esse Acorda Povo, em homenagem a São João Batista, lá na beira do rio. Isso dá tristeza de a gente querer fazer não existir mais o rio. Mas como a gente tem essa cultura verdadeira, não pára. Leva banho perfumado e joga nas pessoas em louvor a São João Batista, que no Espiritismo São João é Xangô. No catolicismo, é São João Batista. Não é isso?
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Aproveitar que você falou o nome de Salustiano, ia falar pra senhora contar como foi que você disse que cantou Ciranda uma vez...
R:
Cantei, eu tinha uns 13 anos e cantava aqui na casa de Dona Generosa, com o Salustiano, na rua da Macaíba. Quando ele vinha pra cá, eu acho que ela não era coquista, mas ela gostava de trazer os eventos pra casa dela, maracatu, Ciranda. Ela chamava, não pagava, mas ela fazia aquele banquete, Salustiano vinha pra casa dela. E eu cantei ciranda com o Salustiano aí na casa dela. Aí depois que eu não vi mais o Salustiano, aí apareceu o Salustiano. Aí eu fui fazer um evento no Eufrásio Barbosa, no Varadouro. Aí ele foi também com o maracatu dele. A gente foi fazer esse evento pela bilheteria. Ele fez o maracatu e eu fiz o coco de roda. Aí ele ganhou vinte reais naquele tempo. Eu também ganhei vinte, que ele tinha sido pela bilheteria. Aí ele fez pra mim, “mestra, o que é que eu vou fazer com esse dinheiro, com esse pessoal todinho? Quase cinquenta pessoas aqui”. A senhora ainda vem, mestra? Eu digo, mais nunca. Aí o meu dinheiro, os vinte, eu dei pras menina, né? Dividi com elas. Nem eu quis dinheiro. Salustiano não podia dar os vinte reais que era muita gente. O meu era umas dez pessoas. Aí digo fica pra vocês, porque vai dar quanto pra cada um? Fica pra vocês. Aí a gente vai comprar a carteira de cigarro. Aí foram comprar o cigarro e Salustiano disse não recebeu, porque pra dar a um e ao outro não, vinte reais, o que era, porque com maracatu é muita gente. Foi a última vez que eu cantei com ele, com o Salustiano. Foi no Eufrásio Barbosa. Ele era animado, mas era pobrezinho. O Salustiano sofreu, morava de quartinho alugado e tudo. Aí esses pessoal vão, se muda pra longe, né? Mas assim mesmo eu ainda fui pra lá fazer um evento de coco de roda lá. Lá na casa da Rebeca. Que agora eu chamo a Casa da Rebeca, né? Mas eles me convidaram pra eu ir cantar lá e eu fui. E eles pagaram. Na Casa da Rebeca.
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O seu coco tinha rabeca também?
R:
O Carnaval que eu fui cantar lá. Coco de Roda. Aí chamaram pra gente fazer o evento lá.
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E o seu coco tinha a rabeca?
R:
Não. Tinha não. Já teve uma vez que um rapaz me pediu pra entrar com a flauta. Aí eu disse, meu filho, pra você entrar com a flauta vai dar trabalho, porque nem todo coco vai de flauta. Com o coco de rebate não vai. Aí foi quando eu disse pra ele um coco que era de uma amiga minha, que era de Dona Célia. E ela cantou. Ela cantava esse coco que eu cantava na casa de Betty com ela. Aí eu dei esse coco pra ele cantar no meu evento. Aí ele cantou. É... Quando eu... É... Tá vendo? Quando eu... “Quando eu deixei a mulher/Comi um bocado amargoso/Travessei um rio perigoso/Que eu lá não tomava pé/Aí ele cantou com a flauta: Deixei a mulher, deixei a mulher/Perdi a mulher, perdi a mulher/E embarquei de pajé/Quando eu deixei a mulher, comi um bocado amargoso/travessei um rio perigoso/que eu lá não tomava pé/Aí, perdi a mulher, perdi a mulher/embarquei no pajé”. Aí ele cantou no meu coco com flauta deu, porque é descansado. Mas o coco de rebate não dá pra ele fazer com flauta. Como assim, como esse coco assim. “Camarão é peixe bom/camarão quando leva seu tempero/camarão, azeite doce, vinagre, camarão”… Isso é um coco de rebate pra animar o salão. Mas não é aquele coco… Ele é muito velho esse coco. Mas coco assim, de história, é mais bonito. Um coco de rebate. Eu canto coco de rebate quando a gente vai para uma festa que não tem ninguém para responder. Aí eu digo, minha gente, a resposta é camarão. Todo mundo responde e o coco rola. "Camarão é peixe bom/Camarão. Camarão". Aí o coco rola, porque não tem aqueles backing, aquelas pessoas para responder. Porque agora, gente, eu tinha esse coco de roda como um brinquedo. Entendeu? Que a gente fazia para mostrar os trabalhos de meu pai, o Acorda Povo, o pastoril, tudo isso a gente fazia por uma brincadeira. Mas hoje eu tenho o coco de roda como um trabalho. Porque a gente tem que pegar as meninas, ensaiar, ir para o palco, fazer bonitinho para todo mundo ver. E hoje coco tá rolando. Que coco antigamente era… Alguns. E assim mesmo já tá acabando. O Pastoril mesmo, todo mundo tinha Pastoril. Não tem. Pastoril tá se acabando. Aqui dentro de Olinda, aqui não tem um Pastoril. Aqui, nessa redondeza do Amaro Branco, só eu tenho um Pastoril.
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Quer contar um pouco sobre o pastoril? O que é o pastoril?
R:
O Pastoril é o nascimento de Jesus que a gente representa. Quando Jesus nasceu. Porque Pastoril eu só faço de ano em ano, porque é muito gasto. E as crianças são crianças de comunidade, não tem condição, já a gente sozinha pra botar, a gente só faz todo ano, todo Natal, todo dezembro a gente faz, 24 até o 25, a gente vem fazendo no mês de dezembro, a gente começa a fazer no começo de dezembro, aí quando encerra é no dia 6 de reis, que é janeiro, aí encerra o pastoril que a gente queima a lapinha, aquela fumaça daquela lapinha a gente oferece ao menino Jesus. E quem tem fé, pede saúde, pede trabalho e alcança. Porque o médico, esqueço o nome dele, ele acompanhou o meu pastoril e ele pediu que ele, aquela fumaça, aquele defumador, que ele tava com tanta fé que ele queria ganhar a questão da casa dele. E ele ganhou, hoje ele tem a casa dele. Porque tudo é fé, né?
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E como era o pastoril, você acompanhava na infância? Quem puxava era seu pai?
R:
É. Quando eu nasci, já tinha pastoril. Coco de Roda, aqui em casa já era uma cultura. Só não tinha dinheiro, mas era uma cultura viva, verdadeira, que trabalhava e mostrava o trabalho a todo mundo, sem dinheiro. A comunidade também gostava. Aí, você sabe, né? Andorinha só não faz verão. Mas três, quatro dias juntas, o evento tá na rua.
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E como foi que a senhora foi de acompanhante pra começar a puxar, se tornar mestra, você mesmo?
R:
Eu com 3 anos de idade já cantava. Com 3 anos. Ali eu fui criada naquele ritmo. Quando deu 13 anos, Dona Jovem botou pra eu cantar pra ela responder. E me ensinou o ganzá.
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Ela botou você pra cantar e ela respondeu?
R:
Agora quem vai cantar é você. A gente fica acanhada, né, de cantar. Porque a gente respondendo, é muita gente respondendo, mas pra gente cantar sozinha, né, a gente fica meio acanhada, porque aí ela dizia: você vai cantar só, que vai ter uma oportunidade de você botar um grupo e você ser uma mestra de coco. Aí ela botava pra mim pra cantar. Pronto, só duas vezes que eu cantei, não tive mais vergonha, pronto, eu tinha a voz. Aí cantava o coco. Quando os mestres de antigamente, já de idade, já estavam cansados, aí eu pegava, com tanto que o coco não acabasse. E eu dizia assim, quando o coco tava bem bom mesmo, no bom aí, ia cantar, aí fazia assim... Agora, a gente saía da casa da gente pra fazer o coco também em outra casa. A gente fazia em outra casa. O coco hoje vai ser na casa da fulana. A gente fazia o coco aí, quando dava assim, meia-noite, acabou o coco. A gente tudo contente. Aquela brincadeira que a gente não saía pra canto nenhum, era tudo dentro de casa, que antigamente os meus pais tinham, tinha ordem, mas Coco de Roda, Pastoril meu pai deixava a gente brincar. Então, aí, a gente... Como é que diz a história? A gente ficava contente quando tinha o Pastoril e o Coco de Roda, que era pra gente se sair, né? Aí, quando os velhos, os coquistas já tavam de idade, que cantavam os três ou quatro cocos, eu pegava. Eu pegava. Quando o coco tava na coisa boa, aí dizia assim, acaba, que amanhã vai trabalhar. Eu ficava, possessa, acaba o coco. Acabou. Cantava: “adeus, adeus/oh meu povo/ adeus que eu/vou embora”… Aí, pronto, terminou o coco, eu digo, eu vou me catar. E eu vou fazer o coco até amanhecer o dia. E fiz a casa de palha aqui, o coco amanheceu o dia. Eu digo, oxe, quando eu tiver minha casa, eu faço o coco de roda. E fiz. Todo ano eu fazia aqui. Agora isso era sem dinheiro, sem nada, só a gente fazia pra mostrar os trabalhos, essa cultura maravilhosa que não deixa morrer, não deixa cair, porque tá morrendo.
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E como foi, a senhora criou o grupo, chama Raízes do Coco?
R:
O meu grupo é: Mestra Ana Lúcia Raízes do Coco.
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Como foi que você montou esse grupo?
R:
Porque eu digo, vamos fazer o grupo, tá esse nome, porque vocês são minhas filhas, e esse coco só tem mais família, então é a nossa raiz. Aí eu botei Raízes do Coco.
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E aonde foi que você já se apresentou com esse grupo?
R:
Todo canto que a gente vai.
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Você pode falar alguns lugares que você já andaram?
R:
Brasília, Petrolina, Goiás, Belo Horizonte, Minas Gerais, é…Petrolina. Pra onde a gente vai. Quando a gente vai, vai e vai subir no palco. A Mestra Ana Lúcia e a Raiz do Coco. Então, daí a gente já sabe. Fiz CD também. O CD, o nome do CD é... Aqui eu tenho um CD que ele canta assim... “Na praia tem pedras finas/Onde o ferreiro trabalha/Ferreiro na oficina/coqueiro Só tem na praia”... Aí pronto, a gente fez o CD e a capa do CD era... Na praia tem pedras finas. Me leva, canoeiro. Porque esse canoeiro é assim: “Me leva, canoeiro, me leva/me leva pro lado de lá/Eu quero estar bem distante/da ilha de Itamaracá”. Esse coco é a hora que vai terminando. Aí, você canta. “Me leva, canoeiro/me leva, me leva pro lado de lá”. Aí a resposta: “Eu quero estar bem distante/da ilha de Itamaracá”. Aí vem... “Adeus, adeus/oh meu povo/adeus que eu vou embora. Adeus, adeus, oh Ana/por que você vai agora?”. É muita, muita coisa bonita. E essa cultura só deixa o meu papai do céu me levar.
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A senhora podia contar o nascimento de Totoca, que você tava contando?
R:
Sim. É... Rio de Janeiro. Rio de Janeiro? Ah, conto sim, conto sim, que eu tive uma casa aqui, da comunidade da gente aqui, que queria fazer um coco na casa dela. Ela não era mestra de coco, mas ela gostava de coco. O marido também gostava, me chamou pra fazer o coco. O coco foi muita gente, muita gente. E eu tava com a barriga bem perto de ter nenê, já bem perto. Aí ela disse Ana, eu vou convidar você pra cantar na minha casa, mas eu sei que você tá com uma barriga assim. Não, eu vou. Vou sim, vou! Aí cuidei das coisas cedo, logo quando deu, assim por volta de nove horas a gente começou o coco. Aí ela disse assim: mana, você tá sentindo alguma coisa? Não, to numa boa. Porque só tinha eu e o Dona Jovem pra cantar. Não tinha mais ninguém, zabumbeiro tinha um. Tinha zabumbeiro, cantador no ganzá, mais gente pra cantar coco, tem muito pra responder. O coco rolou, e ela dizia assim, Ana, será que essa menina não vai dar tempo pra você cantar? Essa menina vai nascer, a barriga tá muito baixa. Eu digo, nada, ela vai esperar. Vai esperar. Cantei o coco, deu uma hora da madrugada, duas horas, aí coco, aí gente, gente, gente, gente. Aí quando deu cinco horas, a gente cantou a despedida. Aí cantou a despedida, conversei com ela, ela me agradeceu, aí fui pra casa. Eu disse, agora eu vou botar batata no fogo com charque e torrada, que eu tô com vontade de comer. Aí cheguei em casa, botei a batata, torrei a charque. Aí, aquela dorzinha, aquela dorzinha. Aí tomei banho. Tomei banho, aí minha mãe fez assim, o que tu tá sentindo? Eu tô sentindo umas dorzinhas lá longe. Mamãe disse, então vamos logo pra maternidade. Que pode ser que essa menina nasce em casa e não tenha parteira. Não tinha mais parteira por aqui. Parteira daqui tinha morrido. Aí eu saí andando, eu e minha mãe. Aí a casa da moça que chamou a gente pra cantar. Já vai, né, Ana, pra maternidade? Tu tá sentindo muita dor? Um pouquinho, dona Benedita. Eu não disse a você. Aí já começou a batata e a charque. Que batata nem charque tá lá. Eu vou-me é embora. Aí, minha mãe me levou. Quando cheguei na maternidade, ela nasceu na maca. Na maca ela nasceu. Precisou nem parteiro, ela nasceu sozinha. Não deu trabalho nascer. Já nasceu brava, que só um sininho na lata. Precisou nem apanhar. Ela vem com toda a energia do coco, ha ha ha.
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Que história maravilhosa. Você teve quantos filhos? A senhora teve quantos filhos?
R:
Dez.
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Dez filhos. E como a senhora fazia para criar os filhos? Você teve algum trabalho, além da cultura?
R:
Trabalho? A cultura não. Quando meus filhos nasceram, não ganhava nenhum tostão, não. Quando eu vim ganhar dinheiro de cultura, eu tinha 40 anos. Esse pessoal entrou na cultura agora chupando melzinho com leite. Melzinho da chupeta. Porque eu trabalhava pelo amor. Quando eu vim ganhar dinheiro, já tinha 40 anos. Fazia coco de roda, pastoril, acorda povo, tudo isso, mais nada tinha. Então, às vezes, nas entrevistas que eu faço, eu falo: gente, vocês… Nas entrevistas que eu faço, eu digo, vocês, em nome de Jesus, vocês… Nas entrevistas que eu faço, vocês reconheçam essa cultura tão maravilhosa, essa bandeira que eu carrego desde de três aninhos, com meu pai. E esse cachê da gente, tão pouquinho. Faz isso tudinho, meu cachê é 8 mil reais. Gente, eu tenho 12 pessoas no grupo. Quanto essas pessoas ganham? Quanto é que eu ganho? Mas não desanimo. Mas tem hora que aí dá uma tristeza. Por quê? Não é por causa do dinheiro, é que tá vindo gente que não é mestre passando nas nossas frentes. A gente sente aquela tristeza. Não dou minha cultura. Adoro a minha cultura. Mas já que é pra pagar, olhe pros mestres que tem trabalho de tantos anos. E tirando da comida pra dar às crianças, pra poder o evento sair. E aquelas crianças precisam de um dinheirinho também. Porque agora o pastoril eles estão pagando um cachêzinho. Então aquele cachêzinho que ele paga pra mim. Aí, daquele cachê meu, eu pago. Quando é maiorzinho, eu pago duzentos a cada uma pastora. Quando é menos, eu pego cem reais a cada uma. E tem gente da cultura, um evento de crianças e disse pra mim, eu não pago não, mestre, eu não pago não. Mas elas não vão para o palco? Elas dançam, precisa. Você tá vendo como é a história? É por isso que eu me sinto tristeza de ver a cultura pagando esse pessoal que pega o dinheiro das crianças, não pagam. As crianças não vão para o palco, têm direito a receber o dinheirinho, não é isso? E a gente vendo a situação daquelas crianças, não é nada demais você tirar o seu pedacinho e dê um pedacinho a cada uma. Agora que elas não tiveram trabalho, porque roupa, tudo, a gente compra e dá. Mas elas não vão, elas não são, como é que diz, tudo certinha no palco, dançam, cantam para todo mundo ver, merecem um cachêzinho. Quem não tiver cachê, eu tiro do meu e dou a elas. Por isso que eu não tenho primeiro andar, por isso que eu não tenho nada de riqueza, porque o meu pão de cada dia eu divido com todos eles.
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Mas, entendi. A senhora, no começo, a cultura fazia por amor, né?
R:
Pelo amor, nada tinha, meu filho. Nunca teve.
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E a senhora trabalhava com o quê?
R:
Pastoril, Coco de Roda.
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Não, trabalho pra ganhar dinheiro.
R:
Ah! Trabalhei... Ah, meu filho, trabalhei na SELP. Serviço emprestado da SELP. Trabalhei na SELP. Trabalhei na... no São Luís, supermercado. Trabalhei de faxina, trabalhei de doméstica, trabalhei de lavadeira pra criar meus filhos. E quando for de noite, trocar de roupa pra cantar coco. Não existia cansaço. E nem meus filhos. Os que tava grandinho, ficava tudo acordado. E os que era pequenininho, que não podia tá andando, que ainda era de berço, eu boto um berço aqui. Tá vendo isso aqui? Eu botava um berço aí. Um berço. O coco era aqui. Botava água tudo aqui pro pessoal, daqui ninguém passava pra lá. Eu botava o berço deles aqui, eles tudo novinho, o bumbo rolando, aí eles vinham, já tinha tomado banho, já tinha comido papinha, já tava na hora de dormir, o bumbo rolando. Ah, tô com o bumbo novo que o meu filho vai dormir. O bumbo zoa, eles ficam olhando a gente sambar, tudo ali no bercinho. Daqui a pouco tá tudo dormindo e o bumbo comendo solto. Nunca disse, ah, não vou fazer coco, nunca, porque meu filho não pode. Não. Ele dormia no... Quando cantava: “meu bumbo é gemedor, é do bojo da Macaíba/Quem me deu foi a Ceci/quem me trouxe da Paraíba”. E eles ali olhando no berço, três. Eu tive criança que parecia gêmeo. Um com um ano, um com dois anos, um com três. Garradinho no berço, o berço parecia uma cama patente. grande, que quando eu botava eles no chão, quando eles saía do berço, já saía andando. Eu digo, minha mãe, venha ver, o menino tá andando, porque o berço grande, ele já pegava naquelas gradezinhas, né? Aí, com nove meses, o meu filho tava andando. Agora, não era andar, correr, andar, mesmo assim, cambaleando, mas já saía, eu ficava bem, chamava “mãe, o menino já tá andando”. Porque eu não tinha tempo de estar com eles, deixar eles assim, porque eu trabalhava. Quando eu trabalhava, eu trabalhava às vezes de meio-dia às dez da noite. Ela já era mais velhinha, ficava. Eu deixava tudo com a barriguinha cheia e ia embora trabalhar. Chegava dez horas da noite. Minha mãe dava uma olhadinha neles. Pronto. Chegava, ia tomar banho, vamos pro coco. As grandinhas iam pro coco. Os outros, minha mãe dava uma olhadinha. Ficava dormindo.
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Trabalhava de faxina no mercado, você fazia o que?
R:
No mercado eu trabalhava na parte de serviços gerais. Aí depois passei pra fazer lanche na copa. Fazer o lanche pro pessoal que trabalha na loja. Aí que o rapaz disse a mim, mestra, ele dizia pra mim assim, mestra, eu vou lhe botar a senhora pra fazer lanche, que a senhora não para. E eu quero que a senhora pare, que elas estão todas escoradas na senhora. Aí botou lá pra cima pra fazer lanche. Eu também não parava, ele dizia, ô que bom. E a senhora vai fazer o lanche da gente. Pronto, eles viam que eu era... Graças a Deus eu tive sorte com meus patrões. Graças a Deus todos eles me queriam bem. Eu trabalhava numa casa de família, no dia que eu não ia, eles vinham saber se... O que foi que aconteceu? Se eu tava doente. O pessoal fazia questão de eu trabalhar. Porque, além de eu trabalhar, eu cantava. Trabalhava cantando.. No São Luís, no supermercado, no São Luís, eu tava... A gente tem uma hora de almoço, né? Aí, naquela hora, o rapaz disse: Dona Ana, eu vi a senhora cantando. Eu digo, aonde, menino? Ele viu mesmo. Aí, canta Dona Ana uma música pra gente aqui. Aí ele tinha violão, aí na hora da gente... Tinha a hora do almoço, aí tocava. Aí, o gerente fazia assim, quem tá cantando? Aí a gente ia levar carão. Lá atrás que a gente ficava. Aí, foi eu, seu Valtenor, foi eu que estava cantando. Que as meninas estavam com medo. Não, a sua voz é tão bonita. Não, não, Dona Ana, a senhora dança? A senhora me ensina a dançar? Digo, ensino! Todos os meus patrões, o pessoal que trabalhava comigo, me botaram para trabalhar no outro São Luís. Só trabalhei só lá dois dias. O gerente lá veio me buscar, que estavam tudo me mandando me buscar pra ir pra lá, porque eles gostavam muito de eu ir lá trabalhar, que animava. Quem tivesse tristezas tinha que se animar. Era muita aperreio, muita criança pequena, mas a gente trabalhava, os aperreio deixa atrás da porta. E lá a gente quer, né? A gente quer lá, porque é o trabalho da gente, vamos cantar e trabalhar animada. Todo mundo tem problema, eu dizia. Elas diziam, Ana, tu é tão animada, nem parece que você sofre tanto. E eu disse, mas a gente tem que deixar o aperreio atrás da porta. Elas faziam assim, Ana, o gerente gosta tanto de tu, vamos fechar essa porta, pede a ele pra fechar logo essa porta, pra gente fazer logo o serviço pra largar cedo. Aí eu pedia assim: Valtenor, já que já tá umas sete horas, o movimento tá mais fraco, dá pra fazer isso? Passa, dona Ana, passa. Aí ela dizia, Ana, se tu sair daqui, a gente tá perdido aqui, esse gerente gosta muito de tu. Aí quando dava 9 horas já estava tudo pronto, 10 horas a gente largava.
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Porque a senhora trabalhava cantando, por isso que...
R:
Cantando, eu trabalhava cantando. Quando a gente cantava mais alto que na hora da... Que a gente tinha aquela... Uma hora de almoço, não era duas, era uma hora. A gente cantava. Aí Carmira ficou comigo gritando, ele vai passar carão que a gente está cantando. Aí quando chegava e perguntava, quem é que está cantando? Aí ela falava, a gente vai levar... Não, foi eu, seu Valtenor, foi eu. A senhora canta, dona Ana? Canto. Eu canto coco de roda. Cante um coco aí pra mim, aí eu cantava. Aí ele ficava mas mestra… Mas ele via, eu não parava. Na hora do serviço, era serviço, balde na mão, fazendo as coisas, e ele... A senhora disse, a senhora não para nem um minuto. Cadê as outras? Eu disse, num sei. Tudo no banheiro, sentada, escondida. Com preguiça de trabalhar, né? Aí ele fazia, a senhora sabe onde é que elas estão? Digo, não, mas eu vou ver onde é que elas estão. Aí eu ia... Estão perguntando por tu, vai-te embora logo, pra tu não levar carão. Só viviam mais eu ali. Era difícil ficar lá no banheiro, porque elas se escondiam tudinho. Quando tinha muito serviço, uma se escorava na outra. Para que escorar? Que vai trabalhar. Vamos trabalhar e pronto. Quando terminar, terminou. Mas onde eu trabalhei, todas as pessoas eu adorava. Todos eles, eu nunca…
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E de faxina, você trabalhou aonde?
R:
Trabalhei muito em faxina. A faxina era quatro dias. E quando você era empregada doméstica mesmo, para aquele trabalho,para você soltar a folga no sábado, no domingo, você trabalhava a semana todinha. E faxineira era, por exemplo, quatro dias para você fazer. Duas numa casa, em outra casa você tinha já outra pessoa para fazer. Porque era muita criança para criar. A mestra sofreu demais, mas papai do céu me deu a vitória. Tudo que eu não tinha, eu tenho hoje dentro da minha casa. Eu me acho, eu me sinto orgulhosa. E tudo isso foi o Papai de Céu que me deu força com a cultura maravilhosa que meu pai me deu.
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E de lavadeira você trabalhou quanto tempo? De lavadeira?
R:
Lavadeira, eu comecei a lavar roupa com a minha mãe, uns oito aninhos, no rio, dentro do rio, com a mamãe. Mamãe lavando roupa, e eu pegando pra estender, ela me ensinando. Eu adorava aquele trabalho. Depois a gente cresceu, aí cada um teve que ter seu trabalho, pra ganhar seu dinheirinho para ajudar nossas mães.
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E quando lavava, cantava também?
R:
Oxente! Quando mamãe lavava roupa, tinha muita gente que cantava coco. Quase tudo gostava de cantar coco. Quando eu fiz o primeiro coco aqui na minha casa, você sabe que pra gente dar conta dos filhos da gente, né? Tem que fazer tudo ligeiro, depressa. Aí, aprontei meus filhos tudinho aí pra começar o coco. Aí, cadê o sapato? Eu tomei banho tudo, cadê meu sapato? A gente procurando o sapato dentro de casa, que os vizinhos já estavam todos prontinhos pra ver o coco. E eu procurando, aí a minha mestra chegou e disse, o que é que tu tá procurando? Meu sapato, Jove, eu não sei onde. Aí, ó, bora procurar aí, acharam meu sapato. Aí quando achou meu sapato ela tirou esse coco. “Ô lava-roupa, ô Ana/avoava no pano/Ana perdeu o sapato/chegou em casa chorando/Ô lava-roupa, ô Ana/avoava no pano”. Quem fez esse coco pra mim foi a minha mestre Jovelina.
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Ela fez em sua homenagem?
R:
Foi, que eu perdi o sapato, aí daqui a pouco achei pra gente cantar. E ela disse, essa história dá um coco. E ela botava melodia ligeiro, que a melodia é o pior. Você botar as letras, é bom. E a melodia?
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E a senhora lembra de alguma história que aconteceu contigo que cê fez um coco?
R:
Já. Muitas.
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Pode contar uma?
R:
Aqui mesmo. Fiz agora, esse carnaval passado, eu fiz. Porque tinha um bocado de... Aqui você tá vendo que é o sítio lá atrás, né? Aí aqui tinha um bocado de passarinho. Eu sou louca por passarinho. Passarinho eu sou louca, se eu pudesse, mas eu quero assim, passarinho que bote ele aqui e fique dentro de casa, ele avoa e volta, mas não tem. Passarinho só fica em casa se você botar numa gaiola. Mas pra ele ficar, a não ser que tenha um passarinho chamado. Eu não sei que a gente bota ele aqui, que eu vi a moça com ele aqui. Eu me esqueço, como é o nome dele? Calopsita, né? Parece. É, aí é um pássaro. Aí você bota ele, cria ele novinho, aí você fica com ele aqui e ele não sai, não vai embora. Cria solto. Eu queria assim. Mas pra botar numa gaiola, eu tenho muita pena. Meus filhos inventaram de criar. Uma vez eu peguei o palito, quebrei tudo e o passarinho ia-se embora. Aí, mamãe, o que foi? Cadê o passarinho? Ah, sua tia dele veio buscar ele. Mamãe, o passarinho tem tia? Tia, você não tem tia? Mas por quê? É da gaiola, eu não quero. Eles querem Jesus e os seus bichinhos pra voar, né? Aí tinha muitos ali. Mas quando eu vou chegando perto deles, eles voam. Aí eu deixava eles ali, aí eu perguntei pro marido meu. Ô Juca, e o gato? O gato em cima do tanque, desse tanque aí que vocês viram. o gato em cima do tanque, e os passarinhos todos ali, comendo arroz. Porque a gente, quando vai lavar o prato, ainda sobra aquelas comida, de arroz, eles gostam de arroz. Eles tudo comendo arroz. Eu fiquei assim olhando, aí o gato olhando pra ele, eu digo, ô Juca, o gato gosta de passarinho? Aí ele fez, gosta pra comer. E eu digo, ele não tem ligeireza pro gato, não tem ligeireza pro passarinho não. Passarinho é muito rápido. Aí ele disse pra mim, bota numa gaiola, e deixe a gaiola no baixo, que ele quebra e come o passarinho. Digo, e é? Na gaiola. Aí, na gaiola eu acreditei, porque na gaiola ele tá preso, né? Como ele pode fugir quando ele quebrar, ele pega ele. Eu disse, agora a recebida da Jove, isso dá um coco. Aí eu olhei assim, não sei quem tava aqui. É mesmo, né, Ana? Ninguém vai dar um coco que eu vou fazer agora.
Eu não sei qual foi a pessoa que eu chamei pra responder, foi tu, Tó? Foi uma pessoa que eu chamei que tava aqui em casa, respondi aí pra ver se dá certo. Aí eu cantei, eu tirei assim: Xô canarinho/sai do caminho/xô canarinho, olha o gatinho/xô canarinho/vai embora pra o teu ninho/Tu não me amola/que eu te boto na gaiola/xô, xô, xô, xô, xô, xô/Meu canarinho/foi embora/e não voltou”. No carnaval não foi, Tó? Quando o carnaval saiu esse, bom, também fiz esse pelo carnaval. A moça tava chorando. Isso foi, a gente tava no canto. Aí me lembrei que ela tava chorando tanto porque aperreada, porque marido namorador, né? É, aperreia muito a mulher, né? Aí eu digo, não, você não aperreia com isso, não. Outro que eu fiz, disse, você não aperreia com isso, não. Aí eu tirei isso pra ela e disse, se vocês têm fé no seu veneno, vocês... Não chora por causa de homem, nem se aperreia. “Deixa andar, deixa andar/mas deixa meu bem passear/se ele tiver de ser meu/ele vai tornar voltar/deixa andar, deixa andar/deixa meu bem passear/se ele tiver de ser meu/ele vai tornar voltar”. Então segura no teu veneno. Se teu marido gostar de tu e tu tem fé no teu veneno, ele vai e não mora faz o que quiser, mas volta. Agora se você não tem fé no seu veneno, ele vai-se embora de uma vez.
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Mestre, e quais são os tipos de coco? Você falou que tem o Coco de Embolada.
R:
Não, esse mesmo que eu cantei agora é de rebate.
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Rebate?
R:
É.
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Quais são as modalidades do coco?
R:
Porque ele não tem embolada. Não tem muito verso.
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Esse é rebate?
R:
É.
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Quais que são todos os tipos de coco? Quais que são? Tem o rebate?
R:
A de rebate só tem vai e volta. Por exemplo: “Deixa andar, deixa andar/deixa meu bem passear/se ele tiver de ser meu/ele vai tornar voltar”. E volta de novo: “deixa andar, deixa andar/mas deixa meu bem passear/se ele tiver de ser meu/ele vai tornar voltar”. O de embolada já não é assim.
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Como é o de embolada?
R:
O de embolada, como eu falei pra você: “A estrela do céu corre/eu também quero correr/a estrela atrás da lua/eu ando atrás do bem querer. (É prolongado). “Ainda ontem me disseram/ que ela na praia passou/foi a jovem mais galante/que as ondas do mar levou/ela era quem eu amava/a quem dei meu juramento/agora vou analisar/a quem dei meu pensamento/mas a estrela do céu corre/eu também quero correr/a estrela atrás da lua/eu ando atrás de um bem querer/ainda ontem me disseram/que ela na praia passou/foi a jovem mais galante/que as ondas do mar levou/ela era a que eu amava/a quem dei meu juramento/agora vou analisar/ quem dei meu pensamento”. Meu pai só tinha música de amor, meu pai só tinha música bonita, não tem palavrão no coco. Meu pai não tinha um palavrão, não tinha coisas feias. Eu acho que quando ele era moço, ele era namorador, teve alguma pessoa que ele amou no coração, não sei. Meu pai só cantava música, coco de roda, é assim: “A estrela dói, dói, dói, ô mulher/dói no coração, ô mulher/o amor que eu mais amava a mulher”.
P1:
Acho que pode vir.
R:
Vem pra cá. É ela que é. Foi eu e ela sozinha pra Rio de Janeiro e a gente fez o coco lá. E também na Avenida Paulista. Foi uma coisa mais linda. Vem pra cá pra contar isso pra eles. Lá em São Paulo, em Pinheiros. Eu e ela sozinha. E cheio que não, se amostrava de gente: “Dói, dói, dói/ô mulher/dói no coração, ô mulher/dói, dói, dói, ô mulher/dói no coração, ô mulher/o amor que eu mais amava, mulher/bateu asas e foi embora, mulher/dói, dói, dói, ô mulher/dói no coração, ô mulher/O amor que eu mais amava, mulher/bateu asas e foi embora, mulher/dói, dói, dói, ô mulher/dói no coração, ô mulher”. Que beleza! Tem outro também que eu fiz agora. Isso é pra uma moça que eu fiz. “O moreno é meu, é meu/e de mais ninguém/quem tiver inveja, faça como eu (Rebate). O moreno é meu, é meu/e de mais ninguém/quem tiver inveja, faça como eu/ mamãe sabe ler, papai sabe escrever/agora que eu sei a carta do ABC/o moreno é meu, é meu/e de mais ninguém/quem tiver inveja, faça como eu/mamãe sabe ler, papai sabe escrever/agora que eu sei a carta do ABC/o moreno é meu, é meu/e de mais ninguém/quem tiver inveja, faça como eu”. Arrocha zabumbeiro e vamos embora.
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Mestra, mudando um pouquinho de assunto, como foi que a senhora começou a rezar?
R:
Como?
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Benzê.
R:
Benzê?
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Benzê.
R:
Minha mãe me sentou, desde oito anos, me ensinou. “Minha filha, você tem que aprender, porque você tem muitos filhos e esse pessoal por aí tudo pede dinheiro. Cada pessoa pede dez reais”. Eu tinha muito filho, eu tinha um filho mais velho, pegava muito olhado. Minha mãe benzia e me ensinava. É por isso que eu tô mandando, vou mandar ela sentar pra ensinar pra ela, porque quando eu partir desse mundo pra outro, ela já sabe benzer. Não é isso?
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A senhora benze de quê?
R:
Eu benzo com vassourinha mansinha, mas aqui não tem. Eu pego um pinhão, já tenho um pinhão na minha casa. Pra ninguém trazer da rua. Aí eu tiro e rezo. Eu rezo o Pai Nosso, eu rezo Ave Maria, e depois a gente diz: “quando Jesus andou no mundo, muita doença Jesus curou. Olho mal Jesus curou para sempre, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aí rezava a Maria, aí diz, quando a gente vai oferecer, oferece essa reza na Senhora do Desterro para desterrar todo o mal, para além das ondas do mar sagrado.
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E a senhora sabe rezar para olhado? Cobreiro, né?
R:
O cobreiro já é diferente. O cobreiro é com carrapateira, a folha da carrapateira, o canudo. Aí você pega a folha e corta. Corta a folha e fica aquele canudo. Aí você corta seis pedaços. Três entre seis. Aí você reza dizendo “cobreiro bravo, te corto o tronco, o meio e o rabo. Com a perna de galinha… Não, é a carrapateira. É a carrapateira, reza com óleo, com azeite. O azeite de oliva, nessas alturas você não tem, esse óleo que você faz comida, pode benzer também.
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A senhora podia contar aquela história que você estava falando, da mulher que queria, que veio se curar de cobreiro, que os médicos…
R:
Foi, ela veio aqui na minha casa. Ela chegou na minha casa, por volta assim, duas, três horas da tarde, com o filho dela num carro. Aí eu disse, quem mandou a senhora? Como a senhora achou a minha casa? Ela disse, mestra. Aí eu falei pra ela, a senhora tem... A senhora foi para o médico, quando ela chegou na minha casa, que eu olhei o estado dela, perguntei, já foi para o médico? Ela disse, fui. O médico mandou eu procurar, ou uma benzedeira, ou uma casa de espírito. Que o cobreiro dela já tava, tinha tomado debaixo do seio dela, debaixo do sovaco já tava indo pras costas. E aqui da vagina dela, quando ela arriou a calça era tudo pus, tá tudo pus, o braço todo. Eu olhei e disse, Jesus, tem misericórdia, o negócio aqui tá grosso. Aí mandei ela entrar, eu benzi cinco dias ela. Benzi cinco dias. Agora tem uma coisa. Quando ela vinha, ela vinha com uma roupa. E trazia da bolsa uma roupa limpa, lavada. Quando ela termina de rezar e tomar o banho. Aí ela bota outra roupa limpa. E aquela que ela vai levando, ferve, lava e ferve pra não vestir aquela roupa. Vem só de cama dela também ferver, porque aquilo é um micróbio. E é terrível, é terrível. Nem cruzou o mato. Aqui teve um rapaz que eu benzi, ele ficou bom, mas os buracos ficou. Ele ficou bonzinho. E ficou. Que nem você levar uma queimadura? Não fica a marca? Depois ele ficou, porque ficou muito fundo. E eu ainda disse pra ela assim, pra essa moça, por que a senhora veio agora? Deixou ficar desse jeito? Ela disse, olhe, dona, não tem ninguém que benze. Eu já procurei no Face, já procurei nos Instagram, procurei tudo. Pessoa, não tem mais ninguém que benze. Encontrei a sua neta. Ela viu eu contando a minha história. Aí ela me mandou eu vim aqui, me deu o endereço e eu vim. Ela encontrou a filha dela, aí a filha disse, vovó deixa a senhora boa. Aí ela veio. Ficou boa, boa mesmo, ela é dona de restaurante. A senhora ficou toda manhã de remédio, ela jogou assim, em cima da mesa? Remédio não, o remédio que ela tava tomando. O médico deu que não tem mais jeito. O remédio passou, tanto antibiótico e ela não ficou boa! Aí ela me andou procurando. Quem mandou a senhora vir? Foi o médico que mandou eu procurar. Mas eu já procurei, já tava naquele estado terrível. Tanto foi.
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E aquela história que você falou que ela deixou um dinheiro na mesa?
R:
Deixou, 800 reais. Eu disse, venha cá, esse dinheiro? Esse dinheiro é da senhora. Eu disse, não vou receber, porque minha mãe me ensinou a fazer como ela fazia, não receber dinheiro de ninguém. Mas, mestra, eu já gastei mais dinheiro do que isso que eu estou lhe dando. Eu digo, mas leve. Quem lhe curou foi o papai do céu. Ele que me deu o dom para rezar a senhora e a senhora fica boa. Agradeça a ele e dinheiro eu não recebo. Aí ela foi embora. Passou-se, tava no mês de dezembro. Daqui a pouco ela chegou, me deu banho de natura, aqueles do rei, tudo. Boticário. Ela disse, a senhora recebe, mestra? Aí eu digo, eu recebo, né? Porque é um presente, né? Não é dinheiro.
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Vamos fazer uma pausinha aqui pra ele poder voltar. Qual foi a coisa mais difícil que a senhora já rezou, assim, uma situação difícil de rezar?
R:
Mais difícil?
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É.
R:
Nem sei lhe contar, viu… A minha vida foi muito, muito... Muito sofrida. Mas eu sou tão alegre, eu sou tão animada que no maior aperreio eu tô cantando. Vai, vai passando, porque eu não me sento pra pensar naquilo que... Naquilo que vai acontecer, o que tá acontecendo. Eu sempre pedindo conforto ao meu Pai Celestial, pedindo que Ele me ajude a carregar essa bandeira. Tanto carregar a bandeira de eu criar meus filhos, como a bandeira da cultura. Sem dinheiro, foi doze. Pra levar essa bandeira até hoje, sem dinheiro. Foi muito aperreio.
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Não, digo de reza, assim, uma pessoa doente, qual que foi a reza mais difícil que a senhora já teve de curar alguém?
R:
A reza mais difícil?
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É. Uma pessoa que tava num estado muito difícil de curar.
R:
A reza mais difícil foi quando uma mulher ia perder a perna. Que eu rezei a perna dela. E levei para um médico. O médico falou que ia... Eu levei ela para o médico, deixei ela sentadinha numa cadeira e entrei, porque uma moça que trabalhava no hospital me conhecia, disse, mestra, venha cá, aqui a gente... Aqui está entrando para a Copa no hospital… Osvaldo Cruz. Eu levei ela para o Osvaldo Cruz com uma perna. Uma ferida enorme, uma ferida. Eu rezei a ferida dela, rezei a perna dela, levei ela. Aí quando eu cheguei lá, ela já estava caminhada para aí, ela já estava indo para esse médico. E essa perna dela desse jeito. Aí ela disse assim: “isso foi uma macumba que botaram na minha perna”. Menina, todo mundo nasceu para sofrer. Um tem uma ferida, outro tem uma dor, mas como que essa história de macumba? Tem fé em Deus. Aí eu tratei a perna dela, limpei. Aí, qual é o médico que tu vai? Eu não tava indo com ela porque eu tava trabalhando no São Luís. Aí, levei ela para o médico. O médico passou medicamento pra ela. Eu deixei ela sentadinha e fui fazer lá dentro a inscrição. Se me chamar a Odete, eu corro pra vir. Vou fazer a inscrição pra ficar empregada aqui no hospital. Pra copa. Que eu já trabalhei em copa. Aí, quando eu tô fazendo a inscrição, aí a enfermeira chegou. Quem é a acompanhante de Dona Odete? Eu digo, sou eu, minha filha. O médico vai levando ela pra torar a perna, que já faz muito tempo que ela tá assim, o médico disse que torando a perna vai mais rápido, ela fica boa. Corri. Aí eu disse, e ela já tava lá na máquina. Doutor, é o quê? Ela vai torar a perna? Vai não. Vai não, doutor, ela não vai torar a perna, não. Por que a senhora diz que ela não vai? Ela não tem dinheiro pra comprar um medicamento. Torando a perna, ela vai ficar com vida e não vai sentir mais dor, vai ficar boa. Eu disse, doutor, entreguei a perna dela, é um médico dos médicos. E o senhor, mas ela não tem dinheiro pra comprar o remédio. Pra ficar colocando, né? Eu disse, doutor, aqui é um hospital. Será que o senhor não pode me dar umas amostras grátis pra ela? Umas pomadas, umas coisas que… Eu tô limpando a perna dela e as gases que eu limpo. Eu fervo tudinho pra botar no pé dela, que ela não tinha dinheiro nem pra comprar gases. Mas o senhor me dá umasamostra grátis, que eu entreguei a perna dela ao médico dos médicos. Então a gente vai glorificar o nome de Deus e o Seu nome também. Meu filho, eu sou esquecida, mas o nome desse médico eu só me esqueço quando eu morrer. Doutor Leandro. Aí ele me levou atrás do hospital, abriu a porta, gases, esparadrapo, pomada, tudo ele botou dentro da minha bolsa. Tem muita coisa dos hospitais, viu? Tem muita coisa. Aí ele botou, aí botou cinco injeções. Aí o doutor: “vou aplicar logo essa nela aqui:. Aí mandei a moça aplicar a injeção nela. E vim pra casa. Trouxe ela pra casa de volta, não deixei de fazer isso. Aí vim pra casa. Quando eu cheguei no outro dia aqui, fui lavar a perna dela, esse pedaço daqui caiu, mas ficou agarrado. Um pedaço da carne podre ficou agarrado. Ficou só aquele pedaço aqui assim. Eu temi, eu fiquei com medo que eu nunca tinha visto aquilo. Aí o senhor deve ter fé em Deus. Ela disse, tem. Eu vou cortar isso. Botei a tesoura no fogo, botei álcool na tesoura. Você tem fé em Deus, mesmo porque aqui eu vou pedir a meu Deus que bota a mão aqui, porque eu nunca tinha visto aquilo. Aí eu peguei com a gase, o pedaço da perna, daquele que tava pendurado, cortei com a tesoura. Cortei, caiu aquele pedaço na bacia. Podre fedendo. Aí a filha dela saiu gritando pela rua, gritando, porque foi horrível. Aí eu disse, menina tem paciência, não é assim não. Aí lavei a perna dela, bem lavada, com sabão amarelo, sabonete do toca, nenhum. Sabia, lavei bem lavada, tirei toda aquela gorda, coloquei a pomada pra encurtar a história com dois tratamentos. Nos três eu levei ela. Doutora, essa mulher vai torar a perna? E não tinha nem marcado pra ele. Quando eu cheguei, ele me afirmou, eu só quero que você deixe eu mostrar a perna ao médico. Aí entrou, doutor, essa menina vai cortar?. Não. A senhora é enfermeira? Nunca fui. Quem lhe ensinou? Minha mãe me ensinava a tratar, fazer curativo, e papai do céu me deu esse dom. Como é que a senhora faz? Eu digo, lavo com sabão amarelo, tiro essa nojeira todinha, passo sabão, dois sabões, acabo enxago bem enxaguada, pego uma unha esperta, boto em cima, enxugo com uns paninhos, com as gases limpinhas e boto medicamento. Ela vai torar a perna, doutor? Não. Ela ficou andando aqui pra todo mundo ver, sarou. Ela morreu porque ela fumava muito, tinha problema no coração. Mas a perna sarou, ficou boa. Só que a perna ficou... Ela era preta. A perna dela, metade da perna ficou toda cor de rosinha. Sarou, limpinha. Sarou mesmo, não tinha mais nada. Mas ficou cor de rosa. Porque ela era preta, caiu. Aí ficou cor de rosinha. Tá vendo? Mas essa foi uma que eu disse, senhor, vem cá, Jesus. Tava feia, feia mesmo.
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Sua mãe que te ensinou a rezar?
R:
Minha mãe que me ensinou.
P:
Como é que ela te ensinava?
R:
Me ensinava como eu disse a você. Do cobreiro, de mal olhado. E tem uma coisa, você conhece quando a pessoa vem pra você benzer, se é de homem, ou se é de mulher? Você conhece? Você conhece?
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Pode contar como você sabe.
R:
Quando você reza, você conhece? Que aquele olhado que vê, se é de homem ou se é de mulher, você sabe?
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É que não é pra falar na entrevista.
R:
Não, pode dizer sem medo, que eu lhe ensino.
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Me ensina.
R:
Você, quando você reza uma pessoa, que a pessoa pergunta pra você, é de homem ou é de mulher, o que é que você responde?
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Diga pra mim.
R:
Você não reza?
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É que eu vou quebrar a entrevista.
R:
Quando você reza uma pessoa que é de mulher, o olhado não é de homem, essa pessoa abre tanta boca, e até você abre a boca também. E de homem não abre a boca. Até você mesmo, que você tem olhado, você não faz isso não? Aquele corpo mole. Um olhado de mulher é terrível. O de homem, você não abre a boca. Quando vem gente aqui com um olhado. Quando a gente começa a benzer, começa logo a abrir a boca, abrir a boca. Até a gente abre a boca também. Você tá no ouvido, aprenda essa.
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Mestra, maravilha! Eu queria saber como é que a senhora começou o seu grupo de crianças no coco. Você tem um grupo pra crianças?
R:
Tenho! “As Estrelinhas do Coco”.
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Como é que é essa história?
R:
Eu botei pra ela cuidar. Vamos botar, vamos botar esse coco. Você cuida dessas crianças. Vamos botar. Aí eu fico com ela ajudando, porque também é preciso ter muita paciência, porque é muita criança. Aí os Estrelinhas, Estrelinhas do Coco. O pastor não é Estrela de Belém? Essas crianças no coco é a Estrelinha do Coco. Aí a gente já tirou a música. Quem tirou essa música toca: “Estrelinha que chegou/tá botando pra quebrar/canta coco em Olinda/quero ver você sambar/ bate palma minha gente/pra alegrar esse povão/estrelinha tá cantando/com amor no coração”.
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A senhora ensina… Tem umas crianças com deficiência?
R:
Já. Essa ficou adulta e já morreu, mas ela tinha uns oito anos quando dançou aqui, não foi? Ela pedia pra dançar, que ela não falava e nem ouvia. Mas a gente fazia. Você quer dançar? Fique aí. Aí o pai dela veio e disse “deixa ela dançar, dona Ana”. Aí eu digo, ela não fala, não escuta. Traga, mande ela vir. Ela dançou até o pastoril terminar. Tudo que a gente fazia, ela fazia. E ela gostava do azul. Ela gostava do azul. Aí a gente cantava. As moças são deliciosas, belas e formosa, é linda como a rosa. Ela não falava, mas ela fazia com a mãozinha. Eu ainda tenho o retrato do pai dela aqui, tudinho. No dia que foi o último dia do queima da lapinha, corta o coração, dá pra chorar. O coco de roda não tem tanta emoção como tem esse pastoril. O pastoril, quando termina, dá pra você chorar. Porque acabou, só para o ano. Ninguém sabe se a gente tá vivo ou se não está. Aí pronto, muita gente, tem muita gente no queima. Quando vai levando o andor do queima da lapinha, que a gente bota o menino Jesus na casinha, na manjedoura, ele faz o andorzinho, faz pastora levar, chega na igreja, tira a imagezinha do santo, tira os bichinhos que botou ali na manjedoura, tira todos os bichinhos, guarda, só deixa, somente ali os capinzinhos e a casinha. Aí bota dentro, mirra, mirra, os incensos, que quando os três reis magos levou pra Jesus, foi presente, que levaram ouro, mirra, não é, Marluciane? É. E levaram ouro? Levaram ouro, mirra e incenso. Aí você compra os incensos no mercado, aí bota alfazema, bota naquele, ali dentro daquela casinha e toca fogo. Naquela hora que tá tocando fogo, o pessoal diz assim, peraí, mestra, peraí, não toca fogo agora não. Eu tô escrevendo meus bilhetes. Todo mundo escreve os bilhetes e bota ali dentro. Quando a lapinha pega fogo, aquele incenso vai subindo com aquele cheiro, mas é mirra, que é para levar essas coisas para fazer o defumador, para o menino Jesus.
Mirra, incenso, e a alfazema, aí volta, quando toca fogo, aquela fumacinha, seus espíritos estão tudo ali dentro, aí você vai, aproveita para tomar o defumador. Você toma aquele defumador pensando no que você quer. Aí a casinha tá pegando fogo e você fazendo seus pedidos. E as músicas, as músicas são bonitas. Quando as músicas saem, a gente gasta muito mais do que um coco de roda. Gasta muito. Porque cada música é 80, 100, é... 150, 120. Porque é pra mim. Cada músico pede duzentos reais, mas eles vão tocar pra mim cento e vinte, às vezes setenta cada um. Eles sabem que eu não tenho quem ajude, é eu sozinha mesmo. Aí sai a lapinha pra ir queimar lá na igreja do Carmo. Vocês sabem onde é o Carmo? Pronto, aí bota a lapinha, a casinha, pronto, a igreja, bota seus pedidos ali dentro, toca fogo, aquele fogo vai pra homenagem a Jesus. Pronto, aí aqueles pedidos tá ali, aqueles pedidos que você faz com fé pra alcançar, sejam doenças, seja trabalho, o que for. Bota ali. E quando elas vão saindo daqui, já vão cantando. ”Ajuntei mais flores/já são horas já/a nossa lapinha/já vai se queimar/de cravos e rosas/já vai se queimar”. Você sai cantando, né? Quando chega da sua casa um pedaço, aí você já vai... “Brilha no céu/como o farol/brilha na terra/a luz do sol/brilha no céu/como o farol/brilha na terra/brilha toda a beleza/brilha na terra/e brilha toda a natureza”. Até na igreja cantando, elas tudo vestidinha assim, aí é o último dia. Queima lapinha, vem pra casa pra comer e dar o dinheirinho delas. Só para o ano agora. Aí onde a gente passa e elas ficam. Já tá perto? Já tá perto, mestra? Quando é que vai ter o pastoril? Eu vou dançar, viu? Essa daí tá toda moça já tá em tempo de casar e ainda tá dançando. Isso aí é o Pastoril..
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Mas pra gente não passar esse assunto em branco, você podia contar como que você trabalhou com mamulengo também, quem que cê ajudava?
R:
Essa moça que me viu trabalhando com pastoril, ela era do Rio de Janeiro. Ela viu, aí ela teve aqui na minha casa, aí ela pediu, você tem pastoril? Isso é uma coisa tão maravilhosa. Tem coco de roda também, né? Tem. Aí ela viu eu fazer o coco e pastoril, ela me levou pra... Ela fazia mamulengo, e fazia bonecos também, bonecos gigantes, pra dançar. Aí, quando ela ia pro mamulengo, eu ia. Quando terminava o mamulengo, a gente entrava no coco de roda. A gente fez o teatro. Ela apresentou os bonecos dela, o mamulengo, e depois eu com o coco de roda. Ela cantava, me ensinava tudo dos mamulengos pra também ajudar ela. Foi o tempo que ela disse assim pra mim: “agora eu vou levar isso aqui pra... para a prefeitura de Olinda. Isso merece, esse evento maravilhoso que a senhora faz tem que ser pago”. Não, não paga não, eu dizia ela. Não, papai fazia sem dinheiro, é para mostrar as cultura de antigamente que meu pai fazia. Não, mestra, tem que ter dinheiro, vamos lá. Chegar na prefeitura, ela e o evento dela, o trabalho dela é bonito, o trabalho é verdadeiro, o trabalho é maravilhoso, vocês vão levar. Trouxe a Globo pra aqui, trouxe a reportagem, não foi? E me levou pra lá e comecei a ganhar um trocadinho do pastoril. Mas eu dizia, não, não tem não, ninguém vai pagar isso não. A gente faz esse trabalho pra todo mundo ver, mas a gente não recebe... “Recebe sim, isso aqui vai ser pago, vamos embora”. Foi tempo que ela adoeceu, faleceu, eu fiquei sozinha. A outra também cantava com a gente. Também morreu. Aí eu tô nessa batalha carregando essa bandeira. E, papai do céu e meus filhos. Mas sinto muito, que se ela tivesse viva, eu não estaria assim. Estaria lá em cima. Porque ela era uma pessoa maravilhosa, honesta. Não gostava de enganar ninguém. E trabalhava na cultura com mamulengo e bonecos gigantes. E eu também trabalhava com ela no mamulengo.
P1:
A senhora já passou alguma discriminação por ser mulher nesse meio e puxar? Alguma dificuldade relacionada a isso?
R:
Se já tive o quê?
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Alguma discriminação por ser mulher e puxar grupo de coco?
R:
Não. Me chamo guerreira.
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Mais valorização, né?
R:
É. Me chamo mulher guerreira. Com aqueles filhos, tudo iam criando e não deixar coco de roda, pastoril, acorda povo. Isso é uma guerreira. Uma trouxa de roupa na cabeça pra lavar, trabalhar, e quando é de noite fazer os trabalhos. Isso é uma guerreira. Essas menina tudo vestida da rua, coisa linda, né? Tudo bonitinha assim, pra sair, o homem esperando. Eu cantei... cantei em Goiânia. Levei esse pastoril pra Goiânia. E levei pra onde o Roberto Carlos cantou. Onde ele tá, também tô. Mostrei a ele que também tenho raça. Cultura da gente é uma cultura verdadeira, é uma cultura bonita. Boto tudo no bolso, porque pra trabalhar com isso aqui, e com a acorda povo e pastoril, é preciso ser uma guerreira, porque se não for, não vai. Porque as crianças são carentes, não tem. Principal. E as mães são ignorantes, que é mal da mãe daquela criancinha, não quer deixar a criança dançar porque é de mal daquela. Eu digo, olha aqui, é um pastoril, é homenagem ao menino Jesus. A gente vai fazer tudo isso pra gente ter força e poder de Deus, pra gente pedir a Deus e ver, mais arengano e maldade aqui não pode ser. Essas crianças têm que se unir. Não pode. Como é? Se Jesus perdoou, por que nós não pode perdoar? Ainda fazer o coração das mães, pra poder aquelas crianças dançarem com a outra que é animada. É, sou eu. Ela, eu acho que ela nem vai querer, se eu morrer. É muito trabalho.
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Qual que foi a coisa mais bonita que a senhora já viu dentro do coco?
R:
A coisa mais linda que eu já vi dentro do coco?
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É.
R:
Eu nem sei lhe dizer, porque é tanta coisa maravilhosa. É tanta coisa bonita. O que eu assim, mais bonito, foi quando eu cantei com Alceu, Alceu Valença na Praça da Preguiça. Ele cantou e eu também subi com o meu grupo e cantei. Mostrei que ele era cantor e eu era mais do que ele. E minhas pastoras, as minhas backings também cantou com ele. As minhas crianças cantou com ele, com Alceu.
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Cantaram junto?
R:
Subiu pra cantar, pra dançar as músicas dele. E elas subiram pra tocar e dançar o Coco de Roda. E ele pediu pra mim pra deixar aquelas crianças, cantar ali com ele. Aí eu fiquei com aquela emoção de ver um cantor de alta classe que Alceu é. Não é isso? E parada não é isso. Mas que eu fiquei emocionada de ver ele cantar ali naquele palco, bonito, maravilhoso. Eu também subi, as crianças também cantaram. E chegou na hora, chegou minha irmã do Rio de Janeiro para me ver cantando. A emoção foi grande. Aí eu pedi que parasse um minuto e mandasse ela entrar para a minha história, como é verdadeira. Olha, eu mandei eles parar, parou. Mandei minha irmã subir e vou mostrar pra vocês que a minha família tudo é coquista. Ela tava no Rio de Janeiro, ela veio ver, veio apreciar que ela nunca foi pra um palco, cantava assim em casa. Então agora eu vou mandar ela subir e ela vai cantar. Ela subiu e cantou, a minha irmã. Não foi? Ela subiu e disse, eu tô tão orgulhosa de ver você num palco, Ana, assim. Tô orgulhosa. Ela morreu, dizia da mim. Graças a Deus. Eu tô tão contente, tão contente, mas ela chorou. Tô tão contente. Quem era você? Uma casa de palha, nada tinha. Um banco, um cachorro pra botar uma planta, uma cadeira pra sentar não tinha. Eu batalhava para eu comer. Não batalhava pra móvel, eu batalhava pra meus filhos não passarem fome. Mas as minhas patroas, uma me dava uma cadeira, uma me dava uma mesinha. Eu sofri muito. Se eu contar minha história, dá uma novela. E muita gente queria meus filhos, mas eu não tinha coragem de dar. Eu dizia, se eu for dar um, eu dou todos. Então, o pão de Santo Antônio vai dar pra todo mundo. Sempre aparecia uma coisa que eles não passavam fome. Jesus nunca deixou, nunca desamparou. E nessa luta...
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Como assim as pessoas pediam seus filhos?
R:
Pra levar pra elas. Me dá pra mim, Ana. Você não aguenta criar tanta criança. E eu disse, se eu der uma, eu dou tudo. Então eu não vou dar, vou criar tudo. O papai do céu vai me dar força. Deus vai dar força pra me criar e não dei ninguém. Essa daqui, uma mãe que trabalhava, aí uma moça que mamãe, bem dizer, criou ela. Ela tinha mamãe como mãe. Ela tinha dinheiro, um monte. Aí, ela já tava grande, ela tava com uns oito anos, não. Uns seis anos, era? Ia fazer seis anos. Ia fazer cinco anos, quatro aninhos. Ela era muito bonita, o cabelo aqui. Aí ela pedia, "Ana, me dá essa menina". Eu sou doida por menina. Eu tenho mais homens e só tenho duas meninas. Tive três meninas. O resto homem. E eu tinha muito amor. A minha, eu gostava de menina. Pra isso, você vê, eu gosto tanto de menina que o meu pastor. E agora que tá tendo pastor, tanto que eles pedem, pedem, pedem, eu boto pastor. Mas eu gosto muito de menina. Aí, ela pediu, pediu, pediu. Ana, aí mamãe, minha filha, deixa ela levar. Porque ela vai educar essa menina, vai dar pra essa menina inteligente. Aí eu deixei. Deixei levar e senti que aquilo ali foi... Que aquilo ali eu tive força, que não chorei nem nadinha pra levar ela pra lá. Minha filha é tão bonita nesse sofrimento, contando. Aí o pai, quando chegou de noite, perguntou por ela. Aí eu falei a verdade. Aí a moça, quando a menina, quem queria criar ela... Ela só passou um dia, quando a menina chegou no outro dia, a menina chegou de laço, brinco de ouro, tão bonita a menina chegou. Ele foi buscar, o infeliz bebia cachaça de manhã, meio-dia e de noite, não tinha coragem de criar filho e foi empatar a vida da menina. Aí ela disse, Ana, não posso fazer nada, porque ele é o pai. Ele é o pai. Mas a moça queria ela e ela já era, ela era muito sabida, muito sabida. Ela pequenininha, ela fazia para o meu pai assim. Papai, eu quero pipoca. Aí o papai dizia, quanto é, minha filha? Porque o meu pai foi quem ajudou a criar eles. Quanto é, minha filha, a pipoca? Ela já estava na ponta da língua. É 30, papai, 30. Ela já vinha pedindo pipoca, já vinha dizendo quanto era o preço. Pequenininha. Sabida toda, sabida, sabida. Me ajudou muito a criar os irmãos. Me ajudou muito a criar os irmãos. Tudo dela era pra dentro de casa. Tudo dela, ela criou os irmãos. Os irmãos não precisou pagar ninguém pra ficar. Ela mesma cuidava. Só tinha uma coisa, ela não batia. Aí, quando era de noite, o pau comia quando eu chegava. O que errou, vai levar pau. Levanta pra apanhar. Pra não fazer mais. Não muié, deixa.... Dizia, vai agora, apanha agora. E criei todos eles. Já estão homens, ainda apanha. Depois que eu dou, depois que eu dou, ainda digo “se estiver achando ruim, vem em cima de mim”. Não, não, minha mãe. Ah, tá. Apanha. Pode ser. Todo dia eu to dizendo a eles. Pode ser pai. Já vai ser avô. Mas errou, apanha. Errou, apanha. E ainda achei pouco. Ainda criei uma dos outros. Ainda criei uma. Essa hoje, a filha dela, é coquista. Não é? Tá cantando com esse homem que estava aqui. Como é o nome dele? Eu chamo ele... Ulisses. Ele, o irmão dele é casado com a minha neta. E a bisneta também canta. E a Bisneta tá no mesmo caminho. A minha história é grande, minha filha, é grande. Mas eu digo, gente, eu não cheguei de Rio de Janeiro pra aqui, não. Eu nasci e me criei aqui. Minha história não pode ter mentira, porque todo mundo me conhece. Ah, a minha filha tá mentindo? Eu não posso contar nada de mentira, porque eu nasci. Nasci na ilha. Vim com oito meses. Uma criança com oito meses tá botando o peito na boca dela. Tá botando comida. Sabe nada. Pra isso você vê que eu tava grande, já tava já mãe de meus filhos, e a mulher fez assim, “seu Severino não é teu pai não”. Disse, é o quê? Aí eu vim correndo e contei a meu pai. Meu pai, por que você tá se aprontando, minha filha? Tão correndo assim. Eu já tava com 20 anos. Vou dar parte dela, meu pai. Porque ela não pode uma coisa dessa. Ela não tem prova. Aí meu pai olhou pra mim, minha mãe também, aí me sentaram e me contaram. Da parte da mulher, a mulher disse que ele não era meu pai. Mas ele não era. Ele me criou. Mas o que ele fazia com as três filhas que minha mãe criava dele, o que ele fazia comigo? Ele morreu me ajudando. Aí foi mais do que um pai, né, minha filha? Eu não tive a proximidade de meu pai, não. Mas a família de meu pai, tudo vem pra aqui. Mas eu não sou muito assim não. Mas como a gente é humana, a gente tem que ter educação, né? Elas me procuram como irmã, né? Elas me procuram como irmã. Mas me perdoe, Jesus. Amor? Não. Não posso ter amor à família que ele não me criou. Não é isso? Eu tenho amor à família de meu pai. Aí eu tenho amor. Mas eu não chamo pai, eu chamo meu pai. Desde pequena que eu chamo meu pai, meu pai. E as minhas irmãs me adoram, porque diz que eu... Que meu pai é tudo pra mim. É tudo. Meu pai foi tudo pra mim. Tudo. O que me criou. É tudo. Tudo que eu digo. Eu tenho aqui essas coisas, foi meu pai. Primeiramente, Deus foi meu pai que me deu essa barra de ouro. Foi meu pai. Foi meu pai. Até a caçula, quando eu cheguei, a caçula era eu. Elas já eram tuda mocinha. Aí depois mamãe teve dois, que era filho dele mesmo, mas eu não sabia que ele não era meu pai não. Não deu pra entender que ele não era meu pai, porque ele fazia tudo pra mim. O que ele comprava pra uma, comprava pra todas. Aí ela chamava pai, eu só chamava meu pai. Eu quero bem a minha mãe, mas eu acho que o amor mais eu tenho é ao meu pai. Eu quero muito bem a minha mãe, que me criou, né? Mas eu acho que eu tenho mais amor por ele. Não sei. Eu, assim...
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Na sua comunidade, você cresceu aqui, né?
R:
Aqui, meu filho. Quando eu cheguei, com 8 meses.
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E qual que é a diferença do quando você era criança, da comunidade, pra hoje?
R:
Não, não tenho...
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Na comunidade, assim, como era naquela época?
R:
A comunidade era uma maravilha. Era uma maravilha. Era pouca gente e todos os vizinhos eram irmãos. Eram os irmãos. Meu pai, meu pai contava muita história. Aí quando meu pai saía pra casa do senhor que tinha ali, aí dava dez horas, onze horas. Mãe, cadê meu pai? Menina, teu pai tá conversando. Bora ver onde é que ele tá. Quando eu chegava lá, minha mãe me levava. Veja como eu sentia a falta dele. Aí minha mãe tava: guaraná, bolo e meu pai contando história. Ele não vai agora, não. Aí meu pai fazia, fica aqui, Aninha, deixa ela aqui, Maria. Aí eu ficava junto do meu pai e ele contava aquelas histórias, bonitas histórias. Ele contava histórias, ele contava uma história que eu não sei ela todinha, que o pessoal chorava quando ele contava histórias. Muito bonita.
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História de quê?
R:
História, história de... O pessoal não contava, não tinha contador de histórias antigamente, dos foletes, de antigamente, dos escravos. Aí ele contava. Quando ele terminava de contar a história, muita gente chorava. Eu não ficava muito interrompida naquele negócio, porque tinha muita criança pra gente brincar. Mas aí, às vezes, eu ficava olhando as pessoas e ele contando a história.
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Teve alguma história que você lembra que te marcou?
R:
Tem, mas todinha completa não tenho, porque não me dediquei. Só me dediquei mesmo à cultura.
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Só qual história era?
R:
Mas eu me lembro que ele tinha uma história que disse que ele estava contando que uma moça, que era filha do rei, aí foi pra uma... Foi pra uma festa. E você sabe que naquele tempo os pais eram quem dava as moça ao casamento. Aí meu pai contava que ela foi pra uma festa e encontrou um príncipe lá. E ele falou o casamento a ela. Mas aí ela disse que tinha que falar com o pai dela. Aí quando ela trouxe ele pra casa do pai pra mostrar o pai dela que ele tava namorando com ela, Aí o rei perguntou, porque essas moças não saem de casa, a não ser quando vai para uma festa com as mães, né? Aí ele perguntou assim, como foi que você... Aí ela mostrou esse moço aqui e pediu a casamento. Aí... E você aceitou? Aceitei, mas ele veio falar com o senhor, se o senhor aceitava. Aí ela fez assim… Aí quando meu pai contava a história, meu pai fazia assim. Menina, onde tu arrumasse esse moço Dom João?" Aí ele fazia... Quando eu fui à Romaria, na igreja de Dom João Aí ela fazia assim... Eu jurei, ele jurou, eu tomei por testemunha Jesus Cristo salvador. Ele contava a história, depois ele cantava a história todinha. Aí eu não ficava muito atenta. A história de João Grilo era um menino que era muito desesperado, ele contava. Aí o padre... O padre veio pra casa dele, o padre ia confessar o pessoal no interior. Aí quando chegou lá, o padre pediu água. Aí ele pegou... Era aí que o povo chegou a água. Aí trouxe a água numa coité. Aí o padre disse assim... Aí ele deu a água ao padre e o padre fez assim... Menino, que água boa, água maravilhosa. Em vez de ele dizer que a água tinha sido da cacimba, ele fez assim: Ah, essa água é boa, mas essa coité é a coité que minha mãe mija dentro. O padre se encrespou. Aí ele tinha a história todinha. Quando ele foi se confessar, que João Grilo foi fazer a primeira comunhão, tinha que se confessar. Quando chegou lá, que ele se ajoelhou, disse assim: “menino, conta a sua história”. Ele se ajoelhou e contou. Seu padre me dê, me dê perdão, porque eu pequei. “Ah, quem é você?” Ele falou, eu sou o João Grilo, da coité, que odiava o senhor. Então se levanta daqui que eu já sei você quem é. Era muita história que ele contava, já sabia, o padre já sabia que aquele menino não era menino bom, era menino desesperado, fazia as artes, né?
Ele contava muita história bonita. Ele contava que… Ele contava uma história que essa era verdadeira. Ele disse que era pequenininho, aí a mãe dele criava muita cabra, aí saía de noite pra pescar, porque eles plantavam feijão, arroz, tudo, mas não tinha carne. Aí a mãe saía pra pescar. Aí ele dizia assim, minha mãe me deixou, deixa a gente, meus três irmãos dentro da casa da cabra, pra gente não ficar aqui só. Ele queria ficar na casinha, onde estavam as cabras todinhas ali pra ficar com os irmãos. Até ela vinha do rio, pescar de rio. Aí quando ela vinha, eles estavam todos acordados esperando. Veja que vida sofrida, né? Aí, quando ela vinha, ele dava graças a Deus, quando já via a pisada nela. Aí, isso já era meia-noite, aí ela vinha com muito peixinho do rio que ela pegava, os vizinhos. Aí pegava pra ir tratar e fazer pra eles comerem. E ia e deixava a porta fechada e ia com os irmãozinhos pro roçado pra pegar o feijão, pra pegar arroz e, às vezes, plantar, que quando ele chegava a porta estava aberta e a comidinha não tinha não. Que o filho da cigana, os filhos... Cigana não tem acampamento, né? Não tem aquelas cabanas. Os filhos da cigana tirava tudinho. As comidas e levava pra casa. Porque tinha um buraco, a casa de taipa, mas tinha vara até um pedaço. Aí ele pulava ali. Aí meu pai amassou o barro. Meu pai disse que já tinha uns 13 anos. Aí amassou o barro, tapou tudinho, foi na casa da mãe dele fazer queixa. Ele tirou as coisas de lá e a vizinha disse que viu quando ele tirou. Ele fez: “vem cá, seu menino, vem cá”. Quando o menino chegou, ela fez assim: “menino, você tirou as coisas da casa desse menino? Não, tirei não. Se você não tirou, debaixo d'água fria você vai ser queimado”. Aí o papai que veio pra casa, pensou, não vai d'água fria? Eu comecei queimando, porque ela rogou a praga, né? Que debaixo da água fria o menino ia ser queimado. Aí meu pai disse que era garoto, mas que? Esse negócio, essas conversas dele, porque cigano tem muita mentira. Elas saem para ler a mão do pessoal, umas falam a verdade, e outras falam mentira, não é? Você conhece, você sabe que cigana reza a mão? Não é? Tu não sabe isso. Cigana pega a mão das pessoas. Mas é verdadeiro, do Egito, né? E todos que não são. Aí meu pai tapou. Aí meu pai fazia as comprinhas com a mãe dele no interior. Encontrou tudo no mesmo cantinho, porque meu pai tapou de barro. Que o pai dele tinha ido simbora, ficou ele e a mãe dele e quatro irmãos. Aí meu pai contava que quando ela vinha de noite, aí já tinha os peixinhos pra fazer de manhã. Na hora do almoço eles comiam. E feijão, arroz eles pegavam na horta e eles iam atrás do quintal, aí pegavam feijão, feijão verde, arroz. Ele gostava tanto de plantar que ele fez um sítio aqui atrás de casa. Quando ele morreu, deixou o pé de sapoti, pé de manga, pé de goiaba, de coco.
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A pessoa se queimou na água fria? A pessoa se queimou na água fria?
R:
Hein?
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Ah, porque eu achei que aconteceu alguma coisa… E não queimou na água fria?
R:
O quê?
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A praga na água feia.
R:
Aquilo era mentira, debaixo da água fria vai ser queimado? Ela ia rogar praga ao filho dela?
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Ô, Mestra, pra gente fechar, ia falar como é que foi que você teve esses reconhecimentos de título Notório Saber, Patrimônio de Pernambuco, como é que você recebeu esse título e como você se sente com isso?
R:
Eu me sinto triste. É maravilhoso, né? A pessoa receber aquele dinheirinho, se você cantar, você tem aquele dinheirinho. E se cantar... Se não cantar, você tem. Se cantar, você tem aquele dinheirinho. Mas esse dinheirinho é muito pouco pra todos os meus trabalhos que eu já fiz. E o tempo de serviço que eu passei trabalhando de graça. Não era pra eu receber dois mil. É quanto, menina? 2.400. Só de remédio eu gastei 1.700. Uma injeção. Veja só. E quando vem dar o patrimônio, as pessoas já estão velhas. Já estou com 81 anos. Eu sentia mais, eu sentia alegre. Quando eu recebi o patrimônio, eu estava com os... Tá vendo? Ele já dão um patrimônio, já tá perto da pessoa já tá velhinha. Dê novo, dê novo, que é pra eles cuidarem do evento, botar pra frente, pra sair bonito. Não é que eu queira o dinheiro, é que eu quero fazer, eu não quero que acabe. Pastoril, coco de roda, acorda povo, eu não quero. Então esse dinheiro é muito pouco pra quem trabalhou tantos anos de graça. E o meu cachê que eu recebo, onde a gente vai cantar, é 8 mil pra 10 pessoas, 11. É isso que eu quero que eles entendam, que esse dinheiro é muito pouco pra quem trabalhou tantos anos de graça. Quem chegou agora tá recebendo 10 mil. Que é isso? Me sinto triste com isso. Quem vai chegando agora receber 10 mil? Eu já tô na quarta geração. E o meu pastoril já tá dançando nas netas das minhas pastoras. E é trabalho, porque quem entra aqui, que tá trabalhando, diz assim, vixe Ana, é muito ruim não ter dinheiro pra tu trabalhar, tirando do teu. Aí, toda vez que eu faço, que eu vou pra uma reunião que tem qualquer coisa, sempre eu falo, gente, repare quanto tempo eu trabalhei. Esse dinheiro tá muito pouco. E já vem pagar a gente. A gente já tá com 81 anos. Pague, pague ao patrimônio vivo, as pessoas novas ainda, que tem força pra trabalhar. Não vai pagar já perto de morrer, não.
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A senhora tem quantos anos de coco?
R:
69 anos. Vou fazer 70.
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70 anos de coco.
R:
Eu tenho muita história, meu filho. Quando eu conto, eles ficam assim. Porque minha história não pode ter mentira, que eu moro aqui desde que eu nasci.
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E o que você achou de contar um pouco sua história hoje?
R:
Maravilhoso, porque você fica sabendo e diz. Aí eu estive com a mestra, eu participei com ela, ela contou as histórias dela e eu vi a verdade, poque eu fui na casa dela. Porque teve um homem que eu ainda estava conversando, aí ele fez assim... Oxente, como é que tu sabe que tu não conhecesse nem a mestra dela? Aí o rapaz disse, conheci. Eu sou novo, mas conheci a mestra Jovelina. Olha aqui. Mostrou. As história da mestre é verdadeira, que eu estava lá. Participei de muitas coisas dela. Aí ele disse que ele não acreditou que ele conheceu Dona Jovem, que era a minha mestra. Aí o rapaz disse, eu fui lá e eu era muito novinho. Esse fotógrafo que eu to dizendo.
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Mestra, quer botar um coco pra gente fechar a entrevista?
R:
É, qual coco que eu canto?
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Escolhe um que seja importante na sua história.
R:
Como?
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Um que tenha uma importância dentro da sua história.
R:
O Homem é rei do Império. Meu pai cantava muito: “O homem é rei do império/ e tem a força de Sansão/A natureza reina no tempo de Salomão/Vamos brincar no salão/Vamos brincar no rojão/ O homem é rei do império/e tem a força de Sansão/A natureza reina no tempo de Salomão”... Isso também, vou cantar pra você: “Na praia tem pedras fina/onde o ferreiro trabalha/ ferreiro na oficina/coqueiro só tem na praia”. Aí tem essa: Me leva, canoeiro, me leva/me leva pro lado de lá/eu quero estar bem distante/da ilha de Itamaracá/Me leva, canoeiro, me leva/me leva pro lado de lá/Eu quero estar bem distante da ilha de Itamaracá.“Adeus, adeus/ó meu povo, adeus, que eu vou embora/Adeus, adeus, ô Ana/porque você vai agora”.
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