Max, um tipo inesquecível
Revendo as minhas poucas fotografias de criança, concluí que se não fosse a figura ímpar do Max Holdorf, provavelmente não saberia que cara eu tinha em certos momentos da infância.
Nós éramos vizinhos de cerca. Minha casa, a carpintaria do meu pai no mesmo terreno e, depois da cerca, a casa do Max e da Iracema.
De profissão, mecânico de mão cheia. Daqueles que, igual aos médicos de antigamente, usavam os cinco sentidos para fazer um diagnóstico correto. Como hobbies, a fotografia e a construção de barcos. Caçadas eventuais no inverno.
Quando chegava da oficina no centro da cidade, à tardinha, alguns metros antes da casa tocava a buzina do carro. A Iracema corria para abrir o portão. Então ele entrava, estacionava no abrigo, jantava e se entregava aos barcos no pequeno galpão de madeira junto à moradia. Sempre estava construindo uma embarcação de verdade ou de brinquedo. Presenteou-me com a miniatura de um veleiro.
Às vezes deixava os barcos por uns tempos, para recuperar algum carro comprado a preço de ocasião. Desmontava tudo. Deixava novo e então vendia o antigo e passava a usar o reformado. O círculo ia se repetindo. Por isso não ficava muito tempo com o mesmo veículo.
Lembro-me com saudade do passeio em um Studebaker bordô, conversível, de oito cilindros, possivelmente do final da década de 1930 ou início da de 1940.
Madrugada de inverno, domingo. Saímos o Max, a Iracema, meu pai, minha mãe e eu rumo à casa dos meus tios Jacob e Miloca, em Piraquara. As mulheres ficaram com minha tia. O meu tio juntou-se a nós e seguimos para a colônia Santa Maria, onde moravam os pais dele. Fui a tiracolo porque não queria perder nenhuma oportunidade de andar no carrão. Logo que chegamos, os três se embrenharam no mato para caçar e eu fiquei esperando na casa. Demoraram a vida toda.
Aguentei firme, pensando no prazer da volta. Iria curtir mais uma etapa do passeio com o potente...
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Max, um tipo inesquecível
Revendo as minhas poucas fotografias de criança, concluí que se não fosse a figura ímpar do Max Holdorf, provavelmente não saberia que cara eu tinha em certos momentos da infância.
Nós éramos vizinhos de cerca. Minha casa, a carpintaria do meu pai no mesmo terreno e, depois da cerca, a casa do Max e da Iracema.
De profissão, mecânico de mão cheia. Daqueles que, igual aos médicos de antigamente, usavam os cinco sentidos para fazer um diagnóstico correto. Como hobbies, a fotografia e a construção de barcos. Caçadas eventuais no inverno.
Quando chegava da oficina no centro da cidade, à tardinha, alguns metros antes da casa tocava a buzina do carro. A Iracema corria para abrir o portão. Então ele entrava, estacionava no abrigo, jantava e se entregava aos barcos no pequeno galpão de madeira junto à moradia. Sempre estava construindo uma embarcação de verdade ou de brinquedo. Presenteou-me com a miniatura de um veleiro.
Às vezes deixava os barcos por uns tempos, para recuperar algum carro comprado a preço de ocasião. Desmontava tudo. Deixava novo e então vendia o antigo e passava a usar o reformado. O círculo ia se repetindo. Por isso não ficava muito tempo com o mesmo veículo.
Lembro-me com saudade do passeio em um Studebaker bordô, conversível, de oito cilindros, possivelmente do final da década de 1930 ou início da de 1940.
Madrugada de inverno, domingo. Saímos o Max, a Iracema, meu pai, minha mãe e eu rumo à casa dos meus tios Jacob e Miloca, em Piraquara. As mulheres ficaram com minha tia. O meu tio juntou-se a nós e seguimos para a colônia Santa Maria, onde moravam os pais dele. Fui a tiracolo porque não queria perder nenhuma oportunidade de andar no carrão. Logo que chegamos, os três se embrenharam no mato para caçar e eu fiquei esperando na casa. Demoraram a vida toda.
Aguentei firme, pensando no prazer da volta. Iria curtir mais uma etapa do passeio com o potente conversível.
Nas lombas, o Max acelerava forte na subida e desacelerava no topo, só para provocar aquele friozinho na barriga quando a posição do auto se invertia e ele começava a descer. Acho que o Max, na época com uns quarenta e cinco anos, era mais criança do que eu. Ríamos muito com as suas travessuras. Mais nesse domingo, fazendo parceria com o meu tio Jacob Brunetti, outro brincalhão inveterado, e contando ainda com o suporte do meu pai, que não se cansava de colocar lenha da fogueira. Diversão garantida. Bom para mim.
No papel de fotógrafo, como em tudo que fazia, o Max caprichava. Escolhia o fundo com cuidado, a posição do modelo ou objeto, media a intensidade da luz com o fotômetro, regulava abertura e velocidade da Agfa alemã e clicava como um mestre. Depois, era só dominar a ansiedade e esperar o resultado. Sempre em preto e branco. Fotos coloridas eram muito caras e laboratório para revelação desses filmes ainda não existia em Curitiba. Os rolos tinham que ser enviados para São Paulo. Assim, era melhor contentar-se com a ausência das cores. Sem elas os filmes podiam ser revelados e copiados aqui mesmo. Bem mais rápido e menos dispendioso.
O Max era amante das novidades. Uma noite mostrou maravilhado para mim, meu pai e minha mãe um pote de pasta. Tratava-se de uma base para caldo, com a qual se podiam fazer sopas saborosas. Importada não sei de onde. Talvez da Alemanha.
Em outra noite, vi seus olhos brilharem ao nos apresentar a sua nova radiola, para tocar a novidade do momento. Um discão denominado long play, fabricado em vinil e que suportava até 20 minutos de gravação de cada lado. Geralmente seis faixas. Portanto, 12 músicas num único disco, graças ao ciclo de apenas 33 rotações por minuto em vez de 78 dos discos produzidos até então em goma laca ou resina sintética quebradiça, e que comportavam no máximo quatro minutos de cada lado. Não me lembro de qual foi o primeiro LP que ouvimos. Certamente um de música alemã. Se o Elvis Presley já tivesse gravado Wooden Heart, versão inglesa da canção folclórica alemã Muss I Denn, certamente teríamos começado com ela, pois era a preferida da Iracema. Entretanto, a mais bela voz do rock’n’roll de todos os tempos só brindou seu público com esse estrondoso sucesso em 1960, como parte da trilha sonora do filme G. I. Blues (Saudades de um Pracinha, na versão nacional).
O Max e a Iracema aparentavam ser um casal feliz. Por esta razão causou grande estranheza no bairro a separação, numa época em que os desenlaces de casamento eram raros, principalmente pelos anos de vida em comum que somavam, com a filha e um dos dois filhos já casados e alguns netos. Mais estranho ainda foi o fato de ele ter-se afastado sem se despedir de nós. Simplesmente sumiu para ir morar sozinho em um pequeno apartamento no centro da cidade.
Ficamos muito tempo sem ter notícias dele. Um dia reapareceu para conversar com o meu pai e pedir espaço e horas de máquina da carpintaria para fazer um barco. Nessa altura ele já estava aposentado por invalidez, porque passara a ter problemas de coluna que o impediam de exercer as atividades de mecânico. Fechara a oficina. Submetera-se a uma cirurgia e achava que poderia encarar a nova empreitada, desde que respeitasse seus limites, não se arriscando demais ao erguer pesos, cuidando da postura, essas coisas.
A tarefa na verdade constituía-se em transformar o casco de um barco comum em uma lancha com cabine. Encomenda do Fredi Johnscher, dono do Grande Hotel Moderno, que tirou o modelo de uma revista estrangeira. Com base nas fotografias, o Max teria que transformar o desejo em realidade, usando unicamente seu talento, pois não havia nenhum projeto para seguir ou orientá-lo.
A façanha durou alguns meses. Como não podia deixar de ser quando o Max estava metido em alguma coisa, cada fase era devidamente fotografada. O resultado final deu numa bonita lancha, igualzinha à da revista, com motor de centro, cabine e sofás que se transformavam em cama.
Depois que a lancha foi lançada ao mar, o Max precisou fazer uns ajustes para melhorar a segurança e o desempenho. Convidou-me para ir com ele a Guaratuba num fim de semana.
Com o jipe do hotel, descemos a estrada da Graciosa. O único mar que eu conhecia até então era o da Baía de Paranaguá. Nunca tinha visto nem pisado nas areias de qualquer praia. Na tarde daquele sábado, finalmente tive o meu primeiro contato com uma. Na Praia de Leste, o Max abandonou a estrada e tocou para a areia.
Confesso que esse primeiro contato não me empolgou, talvez porque nesse ponto o litoral do Paraná seja apenas areia, o mar e o infinito. Nada mais. Sem recortes nem qualquer outro acidente natural próximo. Todavia, momentos de emoção não demoraram a chegar.
Como estávamos fora da alta temporada, e àquela hora a maré estava baixa, o Max resolveu fazer a maior parte do trajeto até Matinhos pela praia. A certa altura, decidiu novamente soltar a criança que vivia permanentemente dentro dele, sempre pronta para aflorar e dar o seu recado.
- Agora você vai ver o que é um jipe fazendo força – ele disse.
Embicou defronte um trecho de barranco quase tão alto quanto o carro. Acionou marcha reduzida e tração 4 x 4. Engatou a primeira e avançou firme, mas devagar, contra o obstáculo. Valente, em poucas patinadas com muita areia espirrando o danado do jipe venceu o barranco e nos vimos passeando pela restinga. Descemos. Um pouco adiante o Max, divertindo-se como um petiz no seu carrinho de brinquedo, repetiu o feito outras vezes.
Entre Caiobá e o porto de passagem para Guaratuba surgiu a paisagem que valeu a pena e uma das minhas preferidas até hoje. No alto da estrada fiquei deslumbrado com a vista da entrada da baía. Do outro lado, o morro de Caieiras, a pequena praia à esquerda e a casa dos Johnscher incrustada na mata. Um pequeno paraíso aonde iríamos nos hospedar.
No ferryboat, o Max pediu ao timoneiro que, ao passar em frente à casa, acionasse a buzina. Esse era o sinal usual para o caseiro ir nos buscar de canoa no porto. Na época, o único acesso à casa dos Johnscher era por mar. A estrada da praia de Caieiras somente seria aberta muitos anos depois.
Quando chegamos ao outro lado, um grupo de pessoas espantadas aguardava o ferryboat com ansiedade. Um baixinho de quepe branco, de marinheiro, perguntou ao timoneiro o que estava ocorrendo com a embarcação. Ele respondeu que não havia nada de anormal. Estava tudo nos conformes.
Foi aí que presenciei a maior bronca dada por uma pessoa em outra, em toda a minha vida. O baixinho bufava embaixo e o rapaz lá em cima, na cabine, não conseguia nem responder. E eu não entendendo nada.
O Max então me explicou que era praxe solicitar ao condutor da embarcação para acionar a buzina ao passar pela casa. O caseiro então saberia que alguém estava chegando e iria buscar no portinho com a pequena canoa. O erro do timoneiro inexperiente foi buzinar não uma, mas três vezes em seguida. Na linguagem da marinha isto significa SOS, ou seja, um pedido de socorro. Por esse motivo, as pessoas estavam com as caras apavoradas e o baixinho urrando de raiva, após ter o coração quase saindo pela boca, como ele mesmo disse, e apesar de ter constatado que tudo se encontrava na mais perfeita ordem. Em suma, estava furioso porque houve um SOS em vão. Um falso alarme. Graças a Deus!
Ainda chegamos a tempo para um banho de mar. Trocamos de roupa e descemos por um caminho aprazível até a praia que, em razão de não ser acessível por estrada, era praticamente particular. O Max, com a sua Agfa, registrou então o meu primeiro banho em água salgada, aos quatorze anos de idade, tendo ao fundo e bem longe a bela praia mansa de Caiobá e o novíssimo edifício do Parque Balneário Caiobá.
A casa dos Johnscher era muito agradável, tanto interna quanto externamente. A mulher do caseiro preparou um bom jantar. Na hora de dormir, o gerador foi desligado e tudo ficou escuro. Dadas algumas observações minhas a respeito do ambiente, o Max acrescentou que em casa de hoteleiro tudo é de primeira, das refeições até as camas. De fato, parecia que estávamos num hotel, tamanho o conforto e o tratamento cortês que o casal de caseiros nos dispensava.
No domingo, fomos lidar na lancha estaleirada na casa de um pescador à margem da baia. Na segunda-feira, ao nos levantar, demos com um cacho de banana-maçã amarelinho pendurado na varanda, que o caseiro havia colhido no quintal. Iniciamos o desjejum desse segundo dia ali mesmo. Após o café, o trabalho continuou. Depois do almoço, vim embora de ônibus, enfrentando mais de quatro horas de viagem em estrada de areia, saibro e macadame, porque não queria perder aulas à noite. O Max ficou mais alguns dias, até deixar lancha e motor tinindo.
Depois da lancha do Fredi, o Max ainda construiu mais duas pequenas embarcações. Entregou as encomendas e sumiu de novo.
Alguns anos mais tarde, ele apareceu para uma visita. Foi embora e nunca mais voltou. Já casado e o meu filho com uns quatro ou cinco anos, fiquei sabendo que ele estava trabalhando na administração do Iate Clube de Guaratuba. Aproveitando uma temporada de praia, fui até lá para visitá-lo. Queria que o meu filho o conhecesse. Perdi a viagem. Informaram-me que ele havia sofrido um acidente e fraturado uma perna. Estava em Curitiba recuperando-se, mas não sabiam dizer onde.
Um dia, muitos anos após a tentativa de vê-lo em Guaratuba, alguém me informou que ele tinha falecido. Tarde demais. Não houve tempo para ir ao enterro nem à missa em sufrágio da sua alma.
Por tudo o que ele representou na minha infância, pelo muito que me ensinou e, sobretudo, pela pessoa singular que era, o Max ocupa lugar de destaque na galeria dos meus tipos inesquecíveis, fazendo parte das minhas melhores lembranças com enorme saudade.
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Na ilustração, o autor aos três anos de idade, fotografado por Max Holdorf.
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