Angélica e Cristina
Morávamos em um ponto muito bom, podíamos apreciar a vista da cidade, do alto apreciamos as pessoas subindo e descendo o morro, as crianças alegres e felizes, os fortes e saudáveis em passos ligeiros e firmes, as grávidas cautelosas, os velhos arqueados pelo tempo.
Este ponto privilegiado havia sido escolhido pelo avô que fora um dos primeiros a chegar no local e tivera a visão de escolher muito bem aquele local. Morara ali por muitos anos, casou-se e constituiu a família e gerara muitos filhos.
Esta casa construída ao longo de anos foi aumentada em várias direções inclusive para um segundo piso nas mãos fortes e calejadas do patriarca da família, no princípio ajudado pela minha vó, depois pelos filhos e netos. Ali estava reunido todo o esforço de gerações com muitos natais, festas e aniversários, muito trabalho e sonhos.
Quando não estávamos estudando ou fazendo as tarefas diárias esta era a diversão maior da família: Observar as pessoas que iam e vinham entrando e saindo da favela, agora segundo falava meu pai “comunidade”. Era engraçado e ao mesmo tempo bonito dizer essa palavra nova cujo significado não entendia direito mais que dava um certo élan ao ser pronunciada.
A televisão tinha sua importância para divertir as crianças e informar os adultos, porém tinha a sua hora, sempre após o lanche das 4 horas da tarde.
Pela manhã estudar e depois até o Sol esconder-se, passando para trás de nossa casa, ficar na janela da sala apreciando o vaivém era essa a nossa maior diversão.
Nossa família era minha mãe, uma negra forte de corpo e temperamento, meu pai, um homem preocupado com as coisas da comunidade e com seu trabalho que lhe tomava todos os dias de sol. Ele costumava sair de casa assim que o sol nascia, bem cedinho e voltava sempre que o sol se escondia.
Acho até hoje que eles não tinham muitas afinidades. Aos finais de semana quando ele poderia curtir melhor, quase sempre chovia ou...
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Morávamos em um ponto muito bom, podíamos apreciar a vista da cidade, do alto apreciamos as pessoas subindo e descendo o morro, as crianças alegres e felizes, os fortes e saudáveis em passos ligeiros e firmes, as grávidas cautelosas, os velhos arqueados pelo tempo.
Este ponto privilegiado havia sido escolhido pelo avô que fora um dos primeiros a chegar no local e tivera a visão de escolher muito bem aquele local. Morara ali por muitos anos, casou-se e constituiu a família e gerara muitos filhos.
Esta casa construída ao longo de anos foi aumentada em várias direções inclusive para um segundo piso nas mãos fortes e calejadas do patriarca da família, no princípio ajudado pela minha vó, depois pelos filhos e netos. Ali estava reunido todo o esforço de gerações com muitos natais, festas e aniversários, muito trabalho e sonhos.
Quando não estávamos estudando ou fazendo as tarefas diárias esta era a diversão maior da família: Observar as pessoas que iam e vinham entrando e saindo da favela, agora segundo falava meu pai “comunidade”. Era engraçado e ao mesmo tempo bonito dizer essa palavra nova cujo significado não entendia direito mais que dava um certo élan ao ser pronunciada.
A televisão tinha sua importância para divertir as crianças e informar os adultos, porém tinha a sua hora, sempre após o lanche das 4 horas da tarde.
Pela manhã estudar e depois até o Sol esconder-se, passando para trás de nossa casa, ficar na janela da sala apreciando o vaivém era essa a nossa maior diversão.
Nossa família era minha mãe, uma negra forte de corpo e temperamento, meu pai, um homem preocupado com as coisas da comunidade e com seu trabalho que lhe tomava todos os dias de sol. Ele costumava sair de casa assim que o sol nascia, bem cedinho e voltava sempre que o sol se escondia.
Acho até hoje que eles não tinham muitas afinidades. Aos finais de semana quando ele poderia curtir melhor, quase sempre chovia ou nublava, o que impossibilitava a dupla desta convivência.
Naqueles fins de semana que juntava sol e tempo bom, ele, meu pai sempre tinha algo para fazer que de tão importante jamais pôde ser adiado. Meu pai era um negro alto e forte parecia ser aqueles frequentadores de academia acostumados a “puxar ferro, ” mas pelo menos dentro de casa era um cara doce e carinhoso fazia todas as nossas vontades, sempre alegre costumava fazer minha mãe sorrir.
Acho que a profissão dele tinha algo a ver com segurança de lojas em shoppings. Ele estava sempre de terno escuro e minha mãe esmerava-se em manter limpo e bem cuidado aquilo que parecia ser o uniforme de trabalho dele.
Eu tinha dois irmãos mais velhos, o Lucas de 6 anos e que era muito chorão, não podia ser contrariado que abria o berreiro e apelava pela atenção de minha mãe chamando-a insistentemente de modo engraçado: - Mãe Elza, como se houvesse outra que era indisponível para acorrer em seu socorro.
Meu outro irmão, mais velho, tinha 12 anos e era o xodó da nossa família, era sem dúvida o orgulho do nosso paizão conhecido por todos como Senhor Orlando, que a mim parecia muito pomposo.
Meu irmão era muito estudioso e sempre estava às voltas com deveres escolares e gostava de jogar futebol no campinho que ficava próximo a nossa casa. Neste local os meninos estavam sempre juntos ao longo do dia e invariavelmente jogando bola, o que a mim parecia ser a única coisa que sabiam fazer.
O nome dele de batismo eu nunca soube, os amigos o chamavam de “Telha” acho que era porque o cabelo dele era muito ondulado pelas pranchas quentes que minha mãe fazia na cabeça dele para tentar alisa-los como os dela.
E por fim, eu! Pequena criança de 4 anos cuja nome era Angélica, chamada por “ Lica ” – alcunha que carregaria para sempre. Gordinha para minha idade, era bonita e cheirosa e meus pais sempre me carregavam nos braços chamando-me de docinho, eu não sabia o que isso seria, mas que com certeza era muito bom ser, tendo em vista o olhar carinhoso que eles mostravam ao pronunciar isso.
Íamos vivendo cada dia de uma vez, sem muitos sonhos e da forma que Deus permitia. Contratempos e contrariedade sempre existiram, mas nós os filhos jamais saberíamos avaliar.
De tempos em tempos surgiam propostas de compra para a casa, porém minha mãe sempre conseguia convencer papai a rejeitá-las. Com certeza poderíamos ter ido morar em lugares mais bonitos, mas eles eram apaixonados pela vista e pela estória da família da qual participaram e então sempre rejeitavam as investidas.
Ali estavam todos os seus amigos, irmãos e familiares. Cada um dono de seu espaço e moradia. Poderia jurar que todos estavam bem segundo o ponto de vista de uma criança bem cuidada como eu.
Estes seriam no futuro meus amigos e familiares também, assim íamos em frente. Lembro-me de churrascos e festas no quintal com muitas brincadeiras e alegrias. Primos e primas espalhados pela casa e com Dona Elza correndo de um lado para o outro para que tudo desse certo.
Quando estávamos já cansados e os adultos pareciam estar sonolentos e sem paciência para as nossas brincadeiras íamos para a janela do quarto de meus pais dar nome ou adivinhar o nome das pessoas que subiam ou desciam as escadarias da comunidade, como aprendemos e dizer com os mais velhos.
Olha lá! “Seu” Agenor, alguém identificara o Senhor que alquebrado pelo tempo e apoiado em sua bengala subia com dificuldade. Outro apontara: - vejam “Dona” Florinda identificada pela bunda enorme que carregava além das trouxas de roupa que conseguira captar na cidade e trouxera para lavar garantido o sustento de sua família. Graças a Deus e a meu pai, minha mãe não precisava fazer esse sacrifício que parecia interminável para aquela Senhora.
Aquele feioso que descia de olhar duro, ninguém conhecia, mas nós o apelidamos de “prego” porque ele era alto, magro e tinha um chapéu que parecia uma cabeça boa para dar umas marteladas. Ríamos muito e cada um tentava imitar o jeito das pessoas que estávamos nomeando inocentemente.
Um certo dia começaram a aparecer em nossa porta alguns homens feios e mal-encarados, que me causavam arrepio de medo, procurando por meu pai e tentando intimidar minha mãe com palavreado grosseiro que nunca havíamos ouvido em nossa casa. Ela os atendia, porém, jamais falava com meu pai sobre aquela conversa a porta da casa.
Ela temia preocupá-lo e achava que poderia contornar a situação. Mais tarde soube que eles queriam comprar a nossa casa e que ofereciam muito mais do que ela valia para conseguir fechar o que chamavam ser um bom negócio.
Vários meses se passaram e o assédio estava sempre aumentando, as vezes de forma limpa e correta, mas, quase sempre de forma intimatória e mal-educada.
Teve uma vez que meu pai chegou em casa muito nervoso e preocupado, havia sido cercado por muitos homens na entrada da comunidade e ofendido sem nenhuma razão aparente. Os agressores não tocaram nele, não bateram fisicamente, mas o ofenderam chamando-o de “corno manso”, de viado e outros nomes feios que depois eu saberia amargamente o significado.
As agressões não ocorreram porque ele, meu pai, não havia reagido, tal era o número de ofensores que participaram do que mais tarde soubemos ter sido uma emboscada programada para que houvesse uma reação que justificasse os meios de agressões a serem empregadas.
E convenhamos que ninguém em sã consciência queria ser o primeiro a se aproximar daquele homem enorme para dar o primeiro soco arriscando-se a levar a primeira “bordoada”. Tinha que ser muito macho, coisa que ali naquela hora não tinha.
As conversas na porta de nossa casa não surtiam efeitos e eles estavam ficando nervosos e agitados com a recusa de minha mãe em levar adiante o assunto que para eles parecia ser Super urgente resolver.
Naquela noite meus pais tiveram uma conversa muito séria sobre tudo que estava ocorrendo, que as omissões de minha mãe foram questionadas, ela jurou que isso jamais voltaria a ocorrer para evitar esse tipo de surpresa dolorosa que “Seu” Orlando havia passado.
Mas nesta noite também combinaram que houvesse o que houvesse jamais venderiam a casa para estes marginais, que fechariam a questão e notificariam a polícia qualquer nova sugestão de ameaça ou intimidação.
Que pena! Assim resolvendo assinavam suas próprias sentenças de morte, de seus filhos e nossa desgraça.
Uma semana após o fato ocorrido com meu pai começamos a assistir o fechamento da passagem através de um portão de ferro colocado no início da subida da escada. Meus pais questionaram os dois moradores que em casas paralelas permitiram tal colocação para a entrada e a saída dos moradores deste lado do morro. Ambos declararam que o portão tinha a intenção de melhorar o acesso selecionando e permitindo apenas que os moradores fizessem o uso evitando a entrada de pessoas indesejáveis, que os mecenas desta obra não queriam ter seus nomes divulgados.
A partir daí a família começou a observar movimentações cada vez mais próximas e barulhentas em torno da nossa casa. Motos e carros com escapamento aberto passavam de um lado para o outro durante todo o dia e principalmente à noite. As vielas de barro e as ruas de pedra deixavam de ser seguras e pareciam amedrontar as pessoas, principalmente as mais velhas que já falavam com saudade dos tempos em que se podia sentar a porta para um papo de fim de tarde.
Sentia-se que a marginalidade acompanhada pela covardia da vagabundagem começa a tomar conta do lugar.
Mas como o mal começa pela acomodação das pessoas de bem, todos achavam que era uma espécie de modismo dos novos tempos e que em breve as coisas voltariam ao lugar certo.
Meu pai começava a achar que estava sendo seguido e quando estava no serviço alguns tipos mal-encarados passavam por ele rindo, debochando ou encarando-o de forma ostensiva, era com certeza uma situação de constrangimento. Na cabeça de meu pai ficava uma dúvida de qual caminho tomar. Se procurasse o Chefe imediato para falar sobre o que estava ocorrendo duas coisas poderiam ocorrer:
Na primeira hipótese ser aconselhado a procurar a polícia e relatar o que estava ocorrendo, mas sem provas e baseado apenas em seus sentimentos e premonições dificilmente alguma atitude poderia ser tomada.
Na segunda, que o Superior em questão preocupado em afastar qualquer tipo de arruaça nas dependências e envolvimento involuntário do cliente e consequentemente denegrir a imagem da empresa de segurança, tudo por causa de um só funcionário, pudesse demiti-lo ou transferi-lo para outro local muito mais distante de casa do que ele gostaria de trabalhar o que fatalmente o levaria a ficar desempregado.
Resolveu então ignorar os fatos e deixar que os acontecimentos falassem por si só. Apenas ficar atento para que se provocado pudesse reagir dentro dos padrões aceitáveis e tomar as medidas corretas que o caso viesse a requerer.
Um certo dia foi procurado por alguém que se dizendo “amigo” e policial civil responsável pela área onde nós morávamos, sem apresentar qualquer identificação, porém, deixando propositalmente a amostra a arma que carregava na cintura começou uma conversa de que o melhor a fazer seria procurar um novo local para nossa família mesmo que fosse dentro da comunidade deixando que a ciência aos interessados fosse feita quando tudo estivesse acertado e aceito entre ele e meu pai, momento em que todos se identificariam. Meu pai disse que voltaria a conversar com a esposa e que na proxima semana eles voltariam ao assunto desta vez em uma conversa definitiva.
E assim meu pai o fez, conversou mais uma vez com a minha mãe sobre o assunto sair da casa que era o mimo da família e procurar outro ponto dentro da própria comunidade para morar com os filhos. Todavia, chegaram à conclusão que não haveria local adequado estando toda a favela completamente utilizada em suas infinitas direções. Na necessidade de desocupar o imóvel em que moraram a cresceram, onde criaram seus filhos e amigos a única alternativa seria procurarem dentro do bairro um outro local para viver.
E assim resolvido deixaram passar o tempo para comunicar ao policial que o havia procurado que realmente não tinham interesse em sair daquela casa da qual tanto gostavam e que se acostumaram a viver.
O “amigo” que se chamava Raul, na verdade deixou passar duas semanas inteiras e voltou a procurá-lo de uma forma agora nem tanto amistosa exigindo uma resposta afirmativa de que nossa família deixaria o local brevemente. Meu pai com certeza considerava um tremendo absurdo ser despejado de sua própria casa para satisfazer desejos obscuros da marginalidade. Os caminhos começavam a tornar sinuosas as intenções daqueles interessados.
Tiveram então uma conversa em que meu pai deixou claro que não queria deixar a casa e o diálogo entre ambos ficou ríspido.
- Bom dia! “Seu” Orlando, como passou a semana? Vamos conversar?
- ‘Dia! Raul. Vamos, mas gostaria de adiantar que pesquisamos dentro da nossa área e não encontramos nenhum lugar que nos agradasse e que tendo em vista a necessidade de manter as crianças no colégio aqui perto não temos nenhum interesse em sair da casa e tão pouco vende-la para quem quer que fosse.
- Orlando, pense bem em sua decisão. As pessoas querem aquele local com muita vontade e não hesitarão em tomar medidas extremas para conseguir os objetivos.
- Sua cabeça, sua sentença, não vamos sair principalmente sob ameaça, temos toda a documentação necessária, é nossa propriedade e vai continuar assim.
- Bom! Você escolheu e terá que arcar com as consequências e eu fiz a minha parte. Tentei avisa-lo, eles estão dispostos a dar uma grande oferta em homenagem ao seu velho pai, fundador da Associação de Moradores.
- Entendo que você deveria demove-los dessa ideia. Essa seria a atuação correta para um homem da lei que se diz meu amigo. Não enxergo a importância de minha casa para eles. Com o dinheiro que estão dispostos a gastar poderiam comprar qualquer casa na nossa comunidade e até reforma-la colocando piscina e outras modernidades. Talvez desistindo da minha casa fossem embora para outra favela nos deixassem em paz.
- Se essa é realmente a sua última palavra, um velho ditado se faz presente “sua alma, sua palma” Sinto apenas que sua família, mulher e filhos poderão sofrer por essa decisão.
Mais uns dias se passaram e o portão finalmente estava no lugar pronto e funcionando dando a falsa impressão de segurança dentro do morro.
A bandidagem estava sob controle, dentro do morro reinava a obediência ao tráfico. Mais uma vez por omissão ou covardia os homens de bem falhavam. As vendas e as transações, chegadas e saídas de mercadorias eram feitas bem longe de nossas vistas. Tínhamos notícias de breves relatos e ações pelo correio de voz, a boca a boca das comadres e dos “frouxos” de ocasião.
Na cabeça de meus pais o mundo voltava ao normal e não se voltaria a falar no assunto vender a casa.
Naquela noite após um dia muito quente onde a temperatura havia beirado os 40 graus o portão de ferro tinha uma aparência ameaçadora, muito grande e alto parecia separar o mundo pobre e suas necessidades da classe de pessoas ricas ou com maior poder de aquisição de bens. O portão era iluminado por fracas luzes que ficavam dentro do terreno pobre, nosso lado da comunidade, assim quem de fora estivesse se sentia ameaçado caso tivesse a pretensão de adentrar ficando a impressão de que coisas ruins aconteceriam a quem se atrevesse a tentar.
Visto de cima, ou seja, de nossa casa a rua asfaltada lá fora deserta parecia um ponto distante e sem vida.
Meus irmãos já haviam terminado seus deveres de escola, eu já tinha esgotado meus desejos de assistir o sobe e desce das vielas e da escadaria, minha mãe já ligara a televisão e aguardávamos nosso pai para jantar e fazer a oração de agradecimento de mais um dia vencido e a renovação de esperança em outros que estavam por vir.
Meu pai subiu as escadarias como sempre trazendo na mão uma sacola que com certeza vinha com algo gostoso para se comer depois do jantar. Ele sempre trazia algum tipo de doce, “sonho” da padaria ou um complemento delicioso para as crianças se deliciarem. As vezes fazíamos apostas para adivinhar o que poderia ser. Não me lembro de nenhuma vez que ele tivesse chegado de mãos vazias.
Fizemos as orações normais de agradecimento e renovamos nossos desejos de ser melhor a cada dia. Jantávamos felizes ouvindo as estórias que meu pai contava e falávamos invariavelmente sobre o nosso dia e o que tínhamos presenciado.
Me lembro que ainda não havia chegado ao fim nossa refeição quando a primeira sacola de um liquido incolor atravessou a janela e explodiu bem no centro de nossa mesa. Mais tarde de forma muito dolorosa viria a saber que era o que chamam de coquetel de álcool. Todos levantaram os braços surpresos e sem a mínima reação assistimos uma chuva de sacos explodindo em diversos locais da sala e em fração de segundos labaredas de fogo surgiram de várias direções transformando em um inferno aquela sala que minutos antes era um altar de paz e amor familiar.
As roupas de minha mãe ficaram vermelhas e ela gritava sem parar, meu pai atingido em cheio por uma daqueles sacos tentou correr para fora da mesa mais caiu ao chão sendo atingido pelas chamas. Meus irmãos ainda conseguiram levantar-se mais também gritavam e se contorciam em dores e queimavam como alguém queima no inferno segundo o terror pregado por Padre Nestor. Em poucos minutos nossa casa ardia em todos os cômodos e uma chuva de garrafas e plásticos incendiários caiam como que do céu sobre os moveis, mesas e televisor.
Eu, miúda, tive a cadeira empurrada por minha mãe que em seu desespero se debatia, e por obra do destino me vi parar berrando como um animal acuado embaixo da mesa, sobre mim caiam restos de comida e garrafas de suco e agua que estavam sobre a mesa.
O fim do mundo em chamas que estava previsto pelo Padre Nestor havia chegado naquele momento, de repente como se uma mão me ajudasse a levantar, abriu-se em minha frente um corredor sem fogo e corri para tentar sair daquele lugar maldito. Sem direção e sem saber o que estava fazendo mesmo tonta vislumbrei o tanque de roupas cheio de água onde diversas vezes minha mãe havia me banhado nos dias de calor intenso.
Tentei pular para dentro mais minha pouca altura não permitiu e vendo que as bombas de fogo não cessavam abaixei-me e entrei embaixo do tanque ficando encolhida tendo minha cabeça batido em algo plástico mais ainda inteiro e frio.
Depois muito depois, já crescida fiquei sabendo que o tal portão de ferro havia sido trancado pelo lado de dentro o que dificultou a passagem dos bombeiros e de qualquer ajuda que pudesse salvar nossa família. Soube ainda que verdadeiros marginais armados e completamente drogados impediam qualquer ato de ajuda que interrompesse aquela ação provocada por eles.
Que rindo e até mesmo se deliciando com nossos gritos se divertiam e faziam piadas chamando-nos de “churrasco de crioulo” como se qualquer um deles fosse branco ou filho de branco.
Acordei horas mais tarde já dentro de um hospital público de emergência sem qualquer tipo de queimadura pelo corpo e completamente molhada pela água que vazara do sifão plástico que pelo calor intenso havia derretido e colara como um chapéu no alto de minha cabeça. Com certeza aquelas dores intensas me haviam feito desmaiar o que com certeza me fez ficar parada naquele lugar e salvo minha vida.
Os médicos haviam cortado o couro cabeludo deixando uma forma arredondada sem nenhum cabelo no alto de minha cabeça, era visualmente parecido com a imagem que eu já tinha visto de São Francisco de Assis e do próprio Padre Nestor de nossa paróquia a diferença era o “pretume” de carne queimada e as cicatrizes de veias secas dentro do círculo.
Fui levada para casa de pessoas que desconhecia e soube que em princípio jurada de morte por bandidos, meus tios e tias tinham medo de ficar comigo e que acontecesse com eles o mesmo que acontecera com minha família naquela noite de terror.
Meus parentes me esqueceram, a família que me acolhera também tinha medo de retaliações e faziam questão de demonstrar que não havia respeito ou compaixão com aquela menina. Mas involuntariamente eu era grata, afinal ter um teto de abrigo, uma tigela de comida e onde ficar desde os dias em que a morte rondou nossa casa e destruiu nosso lar por si só era um alento.
Mais aqueles animais transvestidos de gente não tinham mais como nem porque se preocupar comigo. Pequena criança sem noção do ocorrido e com muito medo jamais voltaria para reivindicar qualquer coisa ou pedir punição de quem quer que fosse.
A polícia rapidamente encerrara qualquer investigação atribuindo covardemente a um descuido de meus pais o início do incêndio que sobre nossa família se abatera.
Consideraram que o fechamento do portão fora fruto de uma fatal coincidência e que a presença de homens armados que impediram a ajuda de amigos e vizinhos jamais ocorrera tendo tudo acontecido muito rápido não dando tempo para qualquer ação dos comunitários.
Angélica havia morrido no incêndio, em seu lugar surgira agora “Lica Careca” uma pequena criança criada por pessoas de parcos recursos e menos ainda educação moral. Vestida de trapos e com aparência de abandonada, alimentava-se de sobras de outros adultos, trabalhava para sobreviver a maus tratos e seus serviços nunca reconhecidos não incluíam tempo para estar com outras crianças. Considerada uma pária dentro do morro, subia e descia milhares de vezes a escadaria.
Diversas vezes foi hostilizada por quem nem sabiam do que ocorrera e chamada de nomes e apelidos que jamais saberia o significado. Em cada ida e vinda foi conhecendo novas pessoas, o nome e sobrenome passou a ser “Lica Careca”.
Começou a conhecer pessoas e a esquecer de outras e em sua passagem pelas vielas e escadaria surgiram amigos que de nada sabiam e outros que preferiam esquecer o que ocorrera.
As pessoas trabalhadeiras que saiam de casa bem cedo e somente retornavam a noite pouco a conheciam. Os vagabundos, os desocupados, ou seja, a ralé aprendeu a gostar da menina que sempre sorrindo passava sem culpa ou remorso. O Morro sim tinha uma dívida para com aquele ser cujo nome se perdera.
O tempo passava e por baixo daqueles panos fedorentos um corpo de menina se formava e ninguém notava.
Dona Clotilde a mulher que acolhera aquele ser abatido pelo fogo, assim o fizera porque vendo o abandono dos demais membros da família, ela trabalhando no Hospital como servente se compadeceu daquela criança em respeito à memória de Dona Elza que quando soube da chegada daquela família vinda do Norte sem nenhum amparo trazendo somente a roupa do corpo a ajudou a se estabelecer com a família inclusive tendo conseguido o emprego que agora possuía.
Havia então uma gratidão, porém, as agruras da vida pobre não permitem grandes arroubos e consequentes atos de benemerência. Era preciso viver e desde cedo a menina sem a infância que até os quatro anos se avizinhava precisava trabalhar para manter-se e fazer justiça a acolhida.
Mais uma vez subia aquele morro cheia de sacolas que mal podia carregar, muito pesadas para aquele corpo pequeno e em formação. Então era obrigada a parar de vez em quando para descansar e aproveitava para cumprimentar e conversar com as pessoas que com ela cruzava.
Seu parceiro de conversa mais comum era um menino franzino mais de forte personalidade de nome Teodoro ou ‘Téo”. Ele era um “olheiro” do pessoal do tráfico, sua missão era vigiar a entrada ou o portão de ferro observando quem entrava ou saía incumbido de dar tiros para o alto em caso de avistar pessoas em atitudes suspeitas que pudessem pôr em risco a quadrilha da qual era parte ou soltar uma “pipa” vermelha quando os avistados fossem policiais.
Com certeza ele era o maior e melhor achado da bandidagem, ele estava sempre atento as suas funções e por diversas vezes seus avisos deram chance a retiradas estratégicas ou a ações fortes dos chefões do crime.
“Olheiros” anteriores haviam posto em risco o poderio daquele bando pela falta de atenção e todos agora estavam muito satisfeitos com o Téo. Ele possuía uns dois anos a mais do que Lica, nada sabia sobre o que havia acontecido realmente naquela noite de horror e a chamava de “Lica Careca” apenas por imitação.
Ele sempre entregava para ela alguns trocados e pedia que que trouxesse algum tipo de pão doce, sonho ou o que o dinheiro desse para que os dois pudessem comer juntos enquanto ela descansava da subida.
Ele franzino parecia não aguentar o peso da arma que carregava e ela brincando dizia que soltar pipa já era um esforço e dar tiro para o alto era impossível para aquele menino. Mas ele tinha suas convicções e queria um dia poder ostentar aquelas roupas de grife que ele assistia os meninos maiores e mais fortes usarem.
Aos nove anos sua primeira menstruação. O susto de quem já espera é grande, imagine para uma menina para quem nada se disse e que nada espera. Viu-se apavorada achando que estava seriamente doente e que iria morrer. Escondeu de todos e de todas as formas e até que as “regras” se estabilizassem naquele corpo frágil que rumava para a puberdade viveu então momentos de medo e terror.
De uma forma transversa, errada e muito dura foi descobrindo e se moldando as lutas que a vida lhe dera. As vezes podia jurar ouvir a voz de sua mãe ou sentir as fortes mãos de seu pai. Nestes momentos se enchia de força e continuava a viver. Esse talvez fosse a sua missão. Viver para alegrar aqueles que não a viram renascer literalmente das cinzas.
Foi descobrindo aos poucos o significado de ser feminina, de ser de um gênero diferenciado daquele que julgava ser, dos encantos de ser mulher.
Os meninos que jogavam bola já não pareciam tão bobos assim. No subir e descer as escadarias já conhecia todo mundo e todos a conheciam. Alguns se dispunham a ajudar dando roupas e alguma comida, doces não faltavam e soube depois que alguns conversando com a mulher que a criava convenceu-a a colocar em um colégio público aquele “bichinho” mal-ajambrado que vivia na comunidade.
No Colégio descobriu que a leitura era seu maior presente, aprendeu a viajar para lugares distantes, lugares mágicos. Fez amizades com bichos que falavam e com piratas de terras distantes. Conheceu histórias e estórias de gente de cor branca e da sua cor negra, aprendeu coisas que muita gente grande não sabia. Fazia contas e aprendeu a orar.
Falava com todos, e sempre sorrindo, não se considerava feia, apenas maltratada pela vida e pelos dias de fogo e incêndio que na sua pequena memória ainda morava. Tinha um pavor monumental de fogo e nas festas juninas e de final de ano vivia seu maior terror.
Não sabia explicar mais aquilo a afetava de tal maneira que ela se transformava em um casulo e encolhida ficava horas e horas esperando tudo passar.
Aquela casa queimada havia sido parcialmente reformada e muito mal pintada ainda exalava o cheiro de madeira queimada e “Lica” não chegava nem perto porque tinha sensações terríveis e um medo enorme só de olhar para aquelas paredes sujas de fuligem.
A Fortaleza do Churrasco como era conhecida passou a dar nome a Comunidade que passou a ser conhecida e até constava nos mapas da cidade como “Favela do Forte”. Na prática, ela, a Fortaleza, se transformara no maior e melhor ponto de observação da bandidagem. Os traficantes haviam conquistado sua maior pretensão que era poder observar do alto a chegada de bando rivais e da própria polícia dando tempo para reações e até fugas estratégicas evitando o confronto direto.
Naquele lugar, palco no passado de muita felicidade e alegrias transformara-se em um local de difícil acesso onde somente os “parças” entravam, os inimigos quando entravam era apenas para morrer.
Mas o tempo é um santo remédio, mesmo quando não cura, ele cicatriza e os Chefões daquela época já não são mais os mesmos. Ninguém morreu de velho, sempre de forma violenta, tal qual haviam praticado contra nossa família, eles morreram de tiro, queimados ou mesmo apunhalados por rivais. Não existe lugar para idoso no meio da violência. Jovens morrem e deixam os mais jovens, seus filhos, para pasto da miséria.
Aqueles que cinco anos atrás comemoraram a morte de uma família, hoje pagam no inferno da existência eterna pelos crimes que cometeram ou que ajudaram a cometer.
E ela continuava crescendo, transformando-se em uma linda garota, com um bonito corpo e um rosto digno de seu nome, olhos pretos, boca torneada. A natureza parecia querer compensa-la pelos horrores que havia passado. Mas para que jamais esquecesse dos acontecimentos vividos aquela “careca” a obrigava a utilizar um boné da qual ela fez sua marca registrada. Sua inteligência a destacava no colégio e no meio dos de sua classe.
Já não era mais o bichinho fedido da família, todos acreditavam que ela um dia seria alguém de peso e destaque na favela. A vida miserável do início da vida sem os pais a ensinaram de forma dura a necessidade e a forma de viver.
Todos a conheciam e gostavam dela, muitos daqueles que tinham a mesma idade chegaram depois dos acontecimentos e os antigos moradores da mesma idade não tinham noção do que acontecera e tudo virou lenda.
Os olheiros do tráfico, os “soldados” de confiança da Chefia, os próprios Chefes que atualmente comandavam eram na época garotos que jogavam bola com seu irmão mais velho e nunca tiveram a noção exata do que havia acontecido. Para eles os antigos comandantes haviam conquistado aquela Fortaleza e isso bastava. Era todo o conhecimento que se fazia necessário.
Subir e descer lhe dera pernas grossas e torneadas, carregar embrulhos e compras lhe dera força e vontade para terminar uma tarefa.
Na verdade, eram falsos homens fortes e viris observados por uma, mesmo que inconscientemente, fera que surgiria naquele lugar.
Um dia de verão onde a luz do Sol fazia brilhar cada pedra daquela escada e secava a garganta dos homens obrigados a permanecer no front das lutas pela eterna posse daquilo que fora conquistado. Onde o portão de ferro pintado de preto agora não metia medo em mais ninguém e que fora esquecido aberto para sempre desde o dia da tragédia, tendo cumprido seu papel conforme fora programado pela marginalidade da época.
“Lica Careca” descia mais uma vez aquelas escadas em busca de algo para sua família, quando inesperadamente viu-se frente a uma mulher de vestido em véus azuis carregada de pulseiras douradas e brilhantes adornada por vidros lapidados que refletiam a luz com brincos enormes que pesavam em sua orelha deformando o feitio, o que para ela parecia bem natural.
A mulher parecia cansada e apoiando no chão o embrulho enorme que carregava disse: ‘Dia, linda menina, pode por favor me ajudar?
A menina respondeu: - Com certeza, diga o que precisa, alguma informação? Conheço todo mundo neste lugar!
A Senhora então falou: - Procuro a casa de Dona Bela, preciso entregar a ela essa imagem de Maria do Cruzeiro das Almas. Você conhece?
- Dona Bela? Com certeza. Ela mora um pouco mais acima. Posso ajuda-la?
Esse embrulho parece grande e pesado? Como é seu nome?
- Meu nome é Maria, e o seu?
- Todos me chamam de Lica. Muito prazer! Vamos subir?
E sem esperar resposta a menina pegou o embrulho no chão e pôs-se a começar a caminhada na escadaria íngreme ajudando a Senhora.
Dona Maria então começou a subida e ia explicando a menina: - Essa imagem tem muito a ver com você, não foi por acaso que nos encontramos. Ela traz um drama muito grande acontecido neste lugar e espera poder ajudar a superar todos os medos e dar-te o lugar merecido. Quatro almas nos ajudam agora e elas parecem felizes em reencontra-la.
- Você sempre foi muito boa menina e suas agruras em vida te levarão a vitória e ao descanso daqueles que te amam. Estão todos aqui a serviço da caridade, da luz, do amor e da vontade do Criador.
Lica, sem entender muito bem o que a cigana falava, reparava que a Senhora muito bem vestida em roupas azuis parecia brilhar na luz do Sol irradiando uma aura de bondade e pureza. E Lica pensava: - Quero ser assim! Linda, Maravilhosa!
E como se ouvisse seus pensamentos a cigana respondeu: - E será!
Mais alguns metros de subida passaram pela Fortaleza e o embrulho se desfez revelando a imagem carregada pela menina. Era de uma cigana com as mesmas roupas da Senhora Maria e trazia no semblante a tranquilidade daquela mulher.
Nervosa, Lica se preocupava em não deixar cair no chão a mulher de louça porque se espatifaria em mil cacos se assim acontecesse.
Quando conseguiu se reequilibrar salvando a imagem procurou a Cigana para pedir desculpas pelo susto passado e não viu mais ninguém.
Estava só naquela caminhada carregando algo que não sabia explicar.
Ficou muito nervosa mais agarrada na figura em seus braços, pensou: - Sei a quem entregar e vou leva-la talvez Dona Maria já esteja lá e não viu o que aconteceu.
Subiu mais um pouco virou três vielas e chegou em uma casa amarela onde na porta uma vela apoiada em uma base de cimento tendo ao meio um castiçal de ferro ardia levemente tocada pelo vento.
- Dona Bela! Gritou a menina...
Colocando a imagem no chão próximo a base, bateu palmas gritando mais uma vez: - Dona Bela!
Surgiu então saindo da casa uma Senhora toda de branco com colares coloridos sorridente dizendo: - Eu sabia que você vinha trazer a imagem de Maria do Cruzeiro das Almas. A muitos anos espero por esse momento. Fui avisada, não quis acreditar que receberia essa honra. Mas enfim o dia chegou e fico muito feliz em receber e poder ajudar.
Dona Bela abraçou a menina dizendo: - Liberada a sua hora, daqui para frente tudo serão flores e vitórias.
A menina perguntou: Você viu Dona Maria, a cigana? Ela vinha uns passos na minha frente quando de repente ela sumiu...passei um susto quando a imagem que ela me pediu para carregar quase caiu e quando me virei para explicar não pude mais vê-la.
Dona Bela retrucou: - ela não veio na sua frente, você a trouxe consigo. Quando ela balançou em seus braços foi apenas para abençoa-la. Que Deus nos ilumine e guarde.
Passados dois dias Dona Bela foi procurar aquela família acolhedora de “Lica Careca” e ofereceu um emprego de doméstica e faxineira no Centro de Umbanda para a menina. O local que era frequentado por muitas pessoas, inclusive por aquela que fizera o bem ao dar-lhe um teto. A família representada por Clotilde, mulher forte e boa de briga que tinha fama de haver até desarmado bandido que ousara desafiá-la tinha também suas crenças e julgava ter um lugar reservado no céu por haver ajudado aquele ser e querendo garantir ainda mais a feliz morada concordou que a menina fosse trabalhar conquanto ela tivesse lá também sua nova morada, haja visto que ela e seus parcos recursos e muita gente para morar no barraco já reivindicavam o local onde a menina podia dormir.
Dona Bela: - E aí Clotilde, como vai? Precisamos de você mais vezes em nosso terreiro. Sua força parece impedir que os garotos do mal estejam em nossa Casa. Eles só vão lá quando estão com medo de algo ou quando estão a fim de perturbar o ambiente. Nessa hora você faz muita falta.
Clotilde: - Aqui tudo dentro dos conformes, esses “melequinhas” que vi nascer não tiram onda comigo não. Dou uma palmada bem forte e eles voltam chorando para o colinho da mamãe. E a mãe de cada um deles me conhece e sabe que se fui grossa algum motivo eles deram. Mas o que te traz em nossa casa? Tempo para um cafezinho com bolo de milho que eu mesma fiz?
Oba! Com bolo ralado em casa, não posso perder! Quanta energia boa se pode esperar desta gente, Meu Deus!
Vamos entrando! As pessoas que eu amo sempre são benvindas.
E entrando e sentando para o café as duas conversam.
Dona Bela: - A menina Lica foi lá em casa me entregar uma imagem de Dona Maria do Cruzeiro das Almas. Para falar a verdade, eu já esperava a muito tempo esse dia, mas como assinalou o meu “caboclo” eu tinha que esperar para que isso somente acontecesse no caminho correto determinado pelo “Pai de Todos” - estou eu aqui pedindo então para que você permita que a menina trabalhe conosco não só no campo espiritual como tenha uma acolhida de emprego e trabalho remunerado em nossa casa de caridade.
- Bem! Disse Clotilde, fico feliz que ela possa caminhar com suas pernas para seu próprio futuro. Aqui em casa você sabe as coisas estão ficando mais difíceis. Os meninos estão crescendo e ocupando cada vez mais espaços. Trazem até namoradas! Já querem me empurrar noras e genros goela abaixo. Eu acho muito engraçado! E dá uma boa risada.
- Se você me der sua palavra que ela terá um salariozinho que permita ter uma vidinha própria e um cantinho para descansar e dormir melhor do que ela já tem aqui, me sentirei feliz e quites com a mãe dela que me acolheu juntamente com meus filhos pequenos em tempos lá atrás.
- Muito triste o que aconteceu com a Elza, seu marido e filhos. Muita covardia! Ela não sabe nem a metade do que passou. Aqueles espíritos maus ainda caminham nesta terra procurando redenção, mas só encontrarão se puder salvar e devolver tudo a essa criança.
Dona Bela embevecida por aqueles sentimentos disse: - Pode ficar descansada, para mim será como ter uma nova filha. Tudo será feito para que ela consiga trilhar o melhor caminho.
E assim as duas amigas selaram o futuro daquela criança.
Dona Bela então arrumou as pequenas coisas de Lica e ajudada por Clotilde levaram as tralhas que não eram muitas para a nova casa. Quando a menina voltasse em mais uma das subidas da escadaria conheceria sua nova morada e as tratativas entre as duas vizinhas e amigas.
Era Deus escrevendo a nova estória daquela garota. No coração da pequena ficaria a eterna gratidão da vida conquistada pelo acolhimento, embora a duras penas suportada, tendo todas as mazelas servido de lição e alerta para a nova vida.
Agora com doze anos completos comemorados em data incerta tendo em vista o total desaparecimento de sua certidão ou documentação naquele fatídico incêndio provocado pelos marginais ansiosos em possuir o local como posto de observação da bandidagem ela possuía novas funções e procurava sempre fazer o melhor e dentro do possível visitar aquela que a amparara no início tirando-a da rua que seria seu fim trágico.
Dona Bela utilizando-se da frequência sempre alta do Centro Espirita e a boa vontade daqueles que eram os frequentadores em busca de paz de espirito e conselhos das entidades começou a pedir ajuda para regularizar a situação e a documentação daquela criança. Ideias começaram a surgir e um velho advogado prontificou-se a tomar todas as providencias necessárias ao bom e fiel cumprimento das ações que se fizessem necessárias.
Dona Bela queria em principio apagar de vez aquela imagem e o nome de “Lica – Careca” que sendo pejorativo jamais permitiria aquela criança avançar no mundo comum e cheio de preconceitos materiais. Não se importava sobre herança do casarão queimado já que os marginais jamais permitiriam que alguém pudesse abalar seus postos de observação conquistados no passado.
Assim uma das providencias foi fazer uma “vaquinha” para arrecadar dinheiro para a compra de uma peruca própria para pessoas de cor que ela pudesse usar sem receio de pedirem que retirasse o boné como algumas vezes foi obrigada a fazer atendendo a pedido do Padre, do Diretor da Escola ou por pura “zoação” dos agora donos do morro.
O advogado entrou com a papelada junto aos órgãos públicos, reuniu provas dos acontecimentos e comprovou que a única sobrevivente sem documentos e sem familiares havia dado entrada no pronto socorro local e que tendo recebido alta com nome desconhecido havia sido retirada não se sabe como por desconhecidos tomando rumo ignorado. Agora encontrada precisava receber um nome e ter como certa uma data de nascimento.
Dr. Hugo como era conhecido o velho advogado, esmerou-se na obtenção da documentação e consequente regularização da vida daquela menina e chegou no impasse da escolha do nome. Sabia-se que Lica não deveria ser e se o objetivo era apagar vez o passado criando uma nova pessoa livre das terríveis mazelas do passado seria necessário um novo nome. Assim surgiu Cristina Fortaleza.
Cristina, adolescente de grande beleza e olhos brilhantes, de inteligência e cultura acima da média destacava-se naquele meio de necessitados de amparo e de boa vontade.
Sem o velho e surrado boné, ostentando uma bonita cabeleira afro, brincos e colares coloridos a outrora menina feia se transformara por completo.
Os meninos queriam estar perto dela, queriam sua atenção e “Téo” agora elevado a Chefe do bando era aquele que melhor desfrutava das atenções da menina. Frequentavam juntos as aulas sobre temas africanos e de umbanda, sabiam todos os pontos cantados em rodas e na mesma escola do bairro estudavam na intenção de obter meios e conhecimento suficiente para sair da favela e da vida de lutas que viviam.
Na Escola, na presença dela, ele era uma pessoa calma educada e extremamente gentil, um menino como deveria ser. Ela mal notava a presença de seguranças do tráfico em volta do rapaz. Ele fazia questão de andar desarmado, embora para ele fosse uma temeridade, precisava que para ela, ele fosse a imagem de um menino bom.
Ele era acompanhado sempre por um séquito de moleques que aguardavam sempre um olhar ou gesto de simpatia que poderia significar a ascensão dentro do grupo. Mas ele aparentemente não via ou não os ouvia. Na presença de Cristina ele era outro. Ela não compactuava muito com aquelas presenças, lhe dava uma sensação de estar cercada e que a qualquer momento bolas de fogo apareceriam voando no ar.
Mas a molecada era fiel e em busca de um gesto amigo andavam ao redor do casal até a porta da Escola. Ela sabia e via que mesmo dentro da sala de vez em quando um daqueles garotos passava na porta da classe e olhando para dentro onde a professora ministrava os conhecimentos se certificava que tudo estava sob controle. Eles tinham livre acesso ao Colégio e suas dependências, pareciam e eram os donos do ambiente. Assim o tempo passava e consolidava a posição de Chefia de Téo e seu amor por Cristina.
Os “boyzinhos” da cidade subiam o morro sempre vigiados pelos “olheiros” para comprar a droga e pequenos distribuidores completavam seus negócios sob a supervisão de Téo. A polícia parecia ignorar as atividades dos garotos e a comunidade dentro do possível se julgava segura. Um deslize de qualquer dos comparsas era punido com a morte e ninguém tinha coragem para desafiar o líder.
Nos finais de ano na festa da praia de Copacabana era o ponto alto do tráfico para os adolescentes, era quando mais se trabalhava na distribuição das drogas e no atendimento aos “riquinhos” da Cidade. Todos se empenhavam a fundo para fazer a festa dos envolvidos quer seja financeiramente ou mesmo no atendimento as necessidades dos viciados.
As boates estavam cheias de turistas e a mulherada vinha de fora para ganhar dinheiro na esperança de voltarem ricas para suas cidades de origem. Na madrugada as viaturas da Policia Militar tinham sempre prostitutas circulando de um lado para o outro pagando “boquetes” no banco de trás dos carros. Viva a vida na Zona Sul! Feliz Ano Novo!
Assim era o grito do povo contente e esperançoso de fazer um grande final de ano.
Se a droga circulava livremente, o dinheiro em vários tipos de moeda era seu maior impulsor, vendia-se a alma neste período, em nome do nascimento do Salvador tudo era permitido e tolerado. Beijavam-se bocas e chupavam-se “paus” não necessariamente nesta ordem.
Téo tinha o maior cuidado com a sua bela morena, ela era intocável e qualquer abuso ou má intenção poderia ser punido com a pena máxima.
Ela linda glamorosa e muito sexy circulava nas noites como uma espécie de garota propaganda dos produtos oferecidos pelos meninos. Muito vigiada pela tropa, era quase uma deusa dentro do bando e nem os policiais tinham coragem de expor pensamentos ou ações que desagradassem o terrível Téo.
Ela circulava dentro das residências e mansões com a desenvoltura digna das mais lindas e ricas mulheres. Sua chegada avisava a todos que as drogas estavam liberadas e a disposição de quem pudesse pagar.
As orgias se acumulavam e neste fervor iam sempre até o Carnaval, onde o morro se vestia de festa e muito colorido se preparava para a festa maior. Téo já um homem feito e no comando da favela financiava desde o samba enredo até a última fantasia. Os brancos vinham comprar de tudo, de drogas a roupas temas.
Era sempre um verão de fartura, Téo não queria ninguém fora das festas e do ganhar dinheiro neste período. Se você é morador e quer participar, seu ingresso está garantido.
O morro fervilhava de atenção. O serviço, a distribuição e tudo estava dentro das melhores pretensões. Cargos eram criados e sabia-se exatamente a quem prestar contas. Neste período, todos queriam estar próximos a Téo que deixava abertamente de ser malvadeza para ser o bom rapaz.
Téo era também um rapaz bonito. De pele morena e cabelos pretos, alto e magro como sempre foi despertava nas meninas um desejo de ser a musa de cada verão. Sua fama de apaixonado pela bela Cristina e as lendas que circulavam sobre seu espirito mau é que freavam as mais ousadas pretensões.
No período entre o Natal e até o Carnaval o morro fervilhava a grande escadaria virava um caminhar sem fim de embrulhos de panos e roupas coloridas acompanhada por um ir e vir de pacotes de “ervas” e drogas. Foi com certeza a era de ouro dos meninos da Fortaleza.
A outrora menina feia e careca a muito tempo deixa de existir, em seu lugar reinando na Fortaleza e nos salões da Sociedade Carioca brilhava Cristina.
Passaram-se dezesseis anos daquele maldito dia e hoje aquela “gata” não tinha nada dos tempos e das mazelas que havia experimentado. Diziam até que quem comandava tudo na verdade era ela com mãos de ferro e a aquiescência do seu amado Téo.
Os mortos não falam e aqueles que haviam tomado tudo de sua família, já não estavam mais no morro. De uma forma ou de outra já haviam deixado o espaço para a ascensão daquele jovem casal.
Naquele final de ano ela descobriria o amor em sua plenitude. Estreava um vestido muito mini de lantejoulas prata. Olhada e invejada por todas as meninas circulava exibindo o corpo bem tratado e com as curvas desejadas por todos.
A festa no Hotel, um réveillon de alto estilo patrocinado pelo despejar constante de altas drogas e muito “fumo” fazia com que a gringalhada, os boys e as garotas brancas se deliciassem em orgia pelo abandono do corpo e da alma nas mãos do Criador.
A polícia garantia a segurança do local revistando as pessoas que entravam, era proibido entrar com qualquer tipo de bebida, droga ou arma. Tudo que você precisasse já estava lá dentro. Aqueles que ousaram trazer algo comprado fora tiveram seus bolsos revirados e materiais apreendidos. Aqueles que reclamaram foram presos e enquadrados conforme manda a lei. Quem pacientemente se deixou na mão dos “tiras” - jamais se arrependeria de estar dentro da festa.
O casal reservou uma suíte especial para aquela noite com uma ceia Padrão Diamante para depois dos fogos e nas primeiras horas do ano seguinte. Para os dois, aquela tinha que ser a primeira e verdadeira noite de amor.
Nenhum deles tinha a experiência falada pelo cinema e pela televisão. Ele com a vivência das trocas de carícias dos adolescentes e ela sem qualquer visão do sexo, embora sabendo de tudo que fosse possível acontecer. Orai a Deus Pai pela inocência dos jovens e da vida.
A festa nos salões do Hotel transcorria às mil maravilhas, as drogas, os entorpecentes e a maconha faziam sucesso no meio dos jovens. Meninas lindas e esculturais ofereciam produtos e espaços para discreto consumo e os mais afoitos nem esperavam a sua vez. Consumiam ali mesmo nos salões sem nenhum pudor. E assim todos ganhavam dinheiro, e assim seria até o Carnaval se tudo fosse neste mesmo ritmo. Vários quartos estavam reservados para oferecer conforto, discrição e prazer aos frequentadores naquela noite. O lema era “seu pedido é uma ordem” desde que bem remunerada.
A queima de fogos já havia terminado quando os dois pombinhos resolveram oficializar entre eles a conjunção dos corpos e das almas. Um simples olhar e estavam prontos para abandonar a festa e começar uma vida a dois no melhor estilo vamos viver e deixar viver.
Entraram no elevador rumo ao andar da suíte já se atropelando em “pegações” que revelavam anos de desejos e de paixões contidas. Ao chegar a porta, ele cavalheirescamente a segurou no colo e empurrou suavemente a porta com os pés deixando exalar um clima do que seria aquela noite entre os amantes.
- Quando nos demos conta notamos que nossos corpos estavam arrepiados e que o brilho dos em nossos olhos era a expressão pura de nossos sorrisos e da nossa alegria. Nos abraçamos e nos beijamos de forma intensa aquecendo nossos corpos para o que estava por vir.
Nossos corpos não podiam e não queriam desgrudar-se estávamos inebriados entre risos abraços e beijos. Este momento parece que jamais chegará ao fim, ele é magico.
Nosso nervosismo era latente e nós dois queríamos a mesma coisa, pertencer um ao outro. Tentávamos em meio ao turbilhão nos acalmar para poder transformar aquela nossa primeira noite em algo inesquecível. Era um misto de amor, paixão contida e enfim uma explosão de desejos.
Fomos aos poucos nos livrando das roupas do casório que se lindas a minutos atrás, agora era um estorvo e a certeza temporária de que jamais a vestiríamos outra vez.
Trocávamos caricias contornando todas as partes do corpo que conseguíamos desnudar. Estávamos nos explorando e nos conhecendo por inteiro.
Começamos a nos tocar nas partes mais íntimas e a respiração foi ficando cada vez mais ofegante desejando-nos por inteiro. Nos livrávamos das roupas e em cada momento nossos corpos mais se juntavam procurando não se sabe como um ao outro de maneira tremula fundir-se como se um só ali houvesse.
Assim se fez mulher, amante e parceira.
Ficamos calmos e descansamos. Estávamos exaustos e felizes ao mesmo tempo. Nos servimos das comidas, frutas e bebidas que estava sobre a mesa do lindo quarto que havíamos reservado, namorávamos olhando um para o outro, admirando o corpo nu do parceiro que juramos ser para sempre donos e de quem jamais haveríamos de nos separar.
Mais uma vez pulsávamos de tesão e estávamos prestes a recomeçar. Queríamos estar ali, estávamos ali e só nos restava aproveitar cada momento obrigando-nos a fazer um ao outro feliz e completo.
Muita coisa ainda poderíamos fazer juntos, muito poderíamos descobrir em parceria e a disposição própria da juventude nos levaria a isso.
E mais uma vez nos completávamos e um cheiro de sexo pairava no ar. Estávamos arfando em uma noite louca de desejo.
Acabados fisicamente porem satisfeitos e apaixonados um pelo outro. O dia pedia permissão para chegar. Um novo ano e um novo ciclo de vida se iniciaria. O café da manhã no quarto era o que queríamos e precisávamos.
Reverenciada na favela, amada por seus súditos ela reinava. A Fortaleza foi limpa e repintada. Um arquiteto cuidou para que tudo ficasse dentro dos caprichos de Cristina e ela reconquistava o bem que sempre fora seu e de sua família. Eles saiam semanalmente para desfrutar das coisas boas da cidade. Viviam em Hotéis, viajavam para outros Estados e Países retornando sempre que necessário fosse manter o comando das atividades conquistadas.
Ela queria mandar retirar o portão que lhe trazia más recordações e uma sensação estranha de abandono e tristeza. Mas, Téo não concordava porque via naquele traste a proteção necessária a manutenção do comando e habituado a isso promovia sempre que ela insistia no assunto demolir o “Monstro” como ela o chamava, uma verdadeira limpeza restaurando e trocando a cor de forma a faze-la esquecer dos maus momentos vividos.
Mas o Carnaval agora era a prioridade do bando e estavam se preparando para o fim daquela temporada. Era necessário uma freada na moçada, impor algumas condições de trabalho e “molhar” a mãos de muita gente para que os trabalhos não enveredassem para a desorganização. Havia muita euforia e era preciso impor limites.
Téo então teve a ideia de promover uma caçada aos antigos chefes e comparsas, aqueles que tivessem participado diretamente do incêndio da residência dos pais de Cristina. Embora tivesse se beneficiado dos fatos e ascendido dentro da Organização, ele precisava dar exemplos de autoridade e como sempre disse: - é preciso fazer mãe chorar para que a comunidade saiba quem manda nessa porra toda.
Mais de cinquenta por cento das pessoas daquela época já não estavam no morro, quer seja por desistência pontual e mudança de vida enquanto foi possível e consequentemente fora das ações e do local, ou por morte em brigas de facções, brigas por acessos ou comandos dentro do próprio grupo ou na pior das hipóteses em confronto direto com a polícia quando a coisa esquentava de vez.
Existia ainda aqueles que presos “cismavam” em dar ordens através de bilhetes e advogados pagos como se ainda tivessem algum tipo de poder. Sendo então imperativo silencia-los para não perder o comando.
Utilizando então as estórias contadas pelos antigos moradores e por parentes de Angélica- A Lica Careca - que haviam sido silenciados pelo medo. Téo começou uma carnificina justificada pela vingança, mas que tinha como objetivo real a manutenção do poder dentro do morro.
Em semanas que antecediam a festa do Carnaval as mortes se sucederam de uma forma veloz e violenta fazendo do luto na comunidade uma constante e transmitindo terror e obrigando muitas mães a enterrarem seus filhos e calando um número muito grande de pais. Como sempre os homens de bem se escondiam sob diversos argumentos para não reagir e assim permitir a mudança de comando no mundo que a miséria reinava.
Nova ordem se agiganta estabelecendo funções e comandos sujeitos aos caprichos de Téo conhecido agora como Téo-terrível:
GG - Cargo de confiança direta administrava a Boca.
GB - terceiro escalão responsável pela venda da cocaína.
GP - terceiro escalão responsável pela venda da maconha
Outros escalões ainda se fazem presentes e tem a importância justificada:
RA- Cuida das armas, da compra manutenção e aluguel a grupos parceiros.
SL- Faz a segurança, participa do confronto entre os rivais. Seu recrutamento se dá entre os maiores que possam haver servido ao exército.
VP- (avião) encarregado da entrega dentro da boca ou a leva para clientes conforme orientados pelos Gerentes, são meninos entre 12 e 17 anos.
OLHEIRO – antigo cargo de Téo, destinado a se manter alerta para avisar qualquer entrada de estranhos ou de policiais na favela. Também conhecido como Zé fogueteiro.
Eles não participam muito da vida fora do morro e tem sua manutenção garantidas pela fidelidade que possam demonstrar para com a Chefia, neste ramo de vida não existe moleza é necessário inspirar confiança e obediência.
O principal é que não tenham medo de morrer e que suas pretensões dentro da hierarquia não sejam de uma subida muito rápida, é necessário ter um bom conhecimento sabendo o exato momento de faze-las se apresentar a cada comando. A inveja e o temor estão sempre presentes em todos os níveis.
Mesmo Téo – Terrível tem suas limitações uma vez que para manter-se em condições de “dono do morro” deve sua vida hierárquica ao Comando que o designou e aqueles que o protegem em todas as situações. Assim se pode entender as necessidades de limpeza impostas, disfarçadas pela falsa vingança que se faz em nome de “Lica – Careca.
A polícia começa a ficar impaciente e pede o fim das caçadas, é impossível manter-se longe dos noticiários quando os jornais querem dar ênfase a cada assunto e a cada morte. O já velho Raul hoje policial aposentado e vivendo em Rio das Ostras em uma belíssima casa comprada a custas de muitas mortes e tendo os filhos criados, vivendo em relativo luxo é convocado para em nome de uma antiga amizade com o pessoal da comunidade pedir e fazer cessar as operações desencadeadas pela ala jovem do Morro do Forte.
É apalavrado um encontro entre o Dono do Morro e seu pretenso padrinho para elaboração de um acordo de convivência e selamento da paz pondo fim ao tema de fim das mortes. Ficando o encontro marcado para as 21 horas na terça feira proxima.
Raul então vai procurar Téo para uma conversa e esse encontro se dá no bairro do Leme em um antigo Bar e Restaurante conhecido por EL CID onde cercado por seguranças armados que discretamente passaram a circular no local desde o cair da tarde verificando todos os cantos e portarias de prédios certificando-se de que não haveria nenhum tipo de “crocodilagem” - o mesmo que armadilha – armada para prender ou matar o líder.
A polícia então também cumpre a sua parte nas negociações afastando naquele dia as investidas das viaturas e a revista de possíveis suspeitos no bairro garantindo a calmaria que se faria necessária para que fosse “costurado” o tal acordo para a paz.
Ao saber da existência do encontro, Cristina exige estar presente no local e hora para ver pela primeira vez o rosto do homem que havia preconizado o fim de sua família. Em princípio resistente a ideia, Téo cedeu aos pedidos de sua amada desde que ela jurasse não falar nada durante o encontro e não deixar transparecer quem realmente era, o que poderia agravar a situação tensa que já estava no ar.
Cristina e Téo sentam nas mesas de canto, no centro um balcão em “L” serve a moçada que vai para balada. Este bar costumava ficar aberto sempre até as 6 horas da manhã servindo na ida o pessoal e na volta aqueles que nada arrumaram para a madrugada. A vantagem era que uma vez dentro do espaço do bar a entrada e a saída eram uma só dificultando qualquer tentativa de fuga ou de surpresa bélica.
Ao chegar Raul cumprimenta Téo:
- E aí garoto, muitos anos se passaram, hein!
Téo retruca:
- Garoto?! Maluco?! Já não sou mais o mesmo. Eu dito as ordens.
- O que você queria conversar?
Raul: - Ei! Calma! Quem é a gata?
- Muito respeito camarada, essa manda no meu coração.
- Que beleza gente boa! E beijando a mão de Cristina completa: - Criei esse menino e sempre achei que ele tinha futuro. Por favor não estrague ele.
Cristina diz: - Sempre cheguei para somar. Quero ver meu “homem” bem!
Todos riram da piadinha e pediram ao garçom uma cerveja e uma porção de filezinho para alegrar a conversa.
Téo pergunta: - Veio só? – Não gosto de “fardas” camufladas por perto, me sinto mal e fico ansioso. Tem arma contigo?
Nada disso, seus meninos já viram e eu já passei desse tempo, agora quero somente viver em paz e criar os netos.
Bom! Que posso fazer por você?
Por mim, nada. A rapaziada pede para que você pare de dar tiro na velha guarda e ganhe sua vida sem muito alarde. A chefia da cidade fica em cima porque acham que você tá muito nervoso. Espalhando carne por aí.
Cristina está muito insegura e ver frente a frente o homem que ameaçou seu pai lhe causa ânsia de vômito. A faz lembrar de muitas coisas ruins. Fica rubra com o rosto em brasa, mas Raul não percebe. A cor da pele ajuda a disfarçar mais não pode durar muito tempo.
Tomam suas cervejas riem de coisas do passado e o velho policial lembra das vezes que viu aquele garoto no frio e na chuva guardando posição. Pergunta quando ela chegou na favela e de onde veio, eles disfarçam contam outra estória para que ele não perceba nada e a conversa caminha para as despedidas. Eles nada tinham mais em comum e as diferenças eram muito grande não permitindo grandes arroubos.
Enquanto conversavam naquela mesa, a meninada do Téo, que haviam cercado muito bem a área descobriram o carro em que o velho havia utilizado para chegar até ali.
A velha raposa havia deixado o carro umas duas quadras a frente e vindo a pé para evitar surpresas e também poder estudar bem o local antes de se encontrar com o menino que vira crescer no crime, mas que hoje liderava o morro da Fortaleza.
O tenente do bando abaixou-se na lateral do carro e prendeu com cabos e um imã um grande artefato para explodir aquela geringonça velha assim que fosse ordenado. Estava preparada a última vingança de Cristina.
Na despedida Téo fez questão de telefonar para a atual chefia do velho “cana” e diz com a calma que lhe era peculiar: Gente boa, prometo que do velho caso da Fortaleza apenas um mais será expurgado e que daí para frente nunca mais falaremos sobre o assunto. Acalme seu coração que prometo que nada mais acontecerá sem a sua aprovação.
O velho ouviu a promessa e satisfeito apertou a mão de Téo e de sua amada ouvindo dela apenas uma frase que achou sem sentido, mas que para ele era irrelevante já que não lembrava do nome do homem que havia condenado a morte, nem de sua família e muito menos de única sobrevivente: - com os cumprimentos e a lembrança de “Seu” Orlando e sua filha Lica – Careca.
Ele saiu em busca do carro e olhando sempre em volta fez um caminho mais longo para evitar ser seguido, um velho hábito de policial esperto e bem vivido. Ligou o carro e saiu daquele lugar com a certeza de que havia pago sua última dívida com as pessoas que o sucederam.
Saiu em direção a ponte Rio-Niterói, passou pelo pedágio, pegou e BR 101 e ia para casa para descansar para sempre aquele espirito corroído desde a morte daquela família de pessoas boas, mas que atrapalhavam os negócios.
Nunca mais precisaria pensar naquele que ele sabia ter sido seu maior crime e participação em assassinatos de sua vida. Na sua cabeça, o portão, a tranca, os bombeiros e a casa em chamas.
Nem percebeu que estava sendo seguido e que no carro uns cinquenta metros atrás dois jovens o observavam. Eles falavam constantemente ao telefone celular informando os locais onde estavam ou que haviam passado. No final da Estrada do Contorno depois de passar pelo Posto Ipiranga Informaram a Téo a localização e ouviram a ordem.
- Chefia, passamos agora pelo posto de gás natural. Estamos na BR
Ouviram então uma voz feminina dizer: - Detonem e digam adeus a esse merda! – Que Exu o receba e guarde.
Eles assim o fizeram, uma grande explosão iluminou o céu negro da noite e pedaços de carro voaram em todas as direções. Uma bola de fogo ainda se arrastou por alguns metros e tudo parou.
Os marginais ainda passaram pelo carro em chamas virão que pessoas paravam para socorrer ou para saber o que estava acontecendo e no primeiro retorno entraram para dá outra pista agora muito engarrafada pudessem testificar o que haviam realizado.
- Missão cumprida e não se fala mais nisso. Né? Chefe!
Ali com a adrenalina a mil por hora, Téo e Cristina se abraçaram e nervosamente riram. Ninguém os culparia, um policial aposentado e cheio de processos pendentes na justiça não seria motivo de grandes investigações. Vida que segue, precisamos agora demonstrar que queremos a paz e negociar nossos produtos sem grandes pressões. A ordem será distribuição farta de “agrados” e “arregos” de modo a conter ideias de retaliações.
Saímos dali sem muito alarde e fomos pegar o carro na Avenida Princesa Isabel que estava guardado por dois dos “soldados” do tráfico. Nosso pessoal se desmobilizava de maneira vagarosa para evitar surpresas, mas nada aconteceu, o que nos deu a certeza de que nada seria feito e poderíamos dar por encerrado aquele assunto.
O Sol se levanta em todas as manhãs anunciando um novo dia e um novo recomeço. A vida na comunidade acorda para os trabalhos diários e as pessoas se põem a caminho. O casal na Fortaleza acorda pronto para uma nova vida.
Precisamos nos preparar para as festas de Carnaval, os salões repletos reclamarão nossa presença e atuação. No Sambódromo nossa Escola precisa fazer melhor, ano passado tivemos vários contratempos mais nos mantivemos firmes no grupo. Agora vamos para a “cabeça” – essa é a ordem da Chefia.
A movimentação na Comunidade é intensa na medida em que urge preparar todo o Carnaval em termos de Escola, com as alas, convidados, pessoal de desfile e fantasias. Neste momento o recrutamento fica mais fácil porque todos querem participar da festa e precisamos de toda a mão de obra possível em várias frentes. Não se pode perder o comando nem tampouco esquecer de nossos “protetores”. Todos querem “salvar” o seu antes que a festa acabe, porém cabe a nós deliberar as formas e as quantias a serem distribuídas.
O portão não metia mais medo em ninguém, pintado com as cores da Escola ele parecia mais uma alegoria a caminho do desfile. Um dia tenho certeza, ele será o Abre Alas anunciando nossa vitória.
A pressão é enorme mais o trabalho em todas as frentes produz a satisfação necessário ao engajamento da comunidade. Daí sabemos que sairão novos membros e colaboradores.
Então, ficamos mais um tempo deitados descansando cada centímetro de nossos corpos até aquela soneca reparadora e necessária.
Mais uma vez o verão carioca tinha sido maravilhoso!
Recolher

