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Passo a narrar minhas vivências na grande enchente de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. A História será narrada em duas partes.
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2024
O Ano Em Que Naufragamos
O Contexto
Se considerarmos o lugar onde andamos vida à fora e onde desenvolvemos nossas atividades cotidianas como um imenso navio, podemos dizer que ele naufragou nos primeiros dias do mês de maio de 2024. As centenas de milhares de navegantes foram condenados à uma descida obrigatória, quase como andar pela prancha de uma velha escuna pirata num pulo às escuras, numa incerta e vertiginosa queda.
Já se contam dezenas de mortos, (74vitimas fatais até as 20 h de domingo} e um número inexato de desaparecidos. Esses números são multiplicados por milhares quando se trata de desabrigados e que ficaram expostos ao rigor da enchente, aguardando ajuda, sendo ajudados e desembarcando violentamente desse cruzeiro de horrores.
A contar das primeiras regiões do alto da serra gaúcha, uma sequência de eventos hidrográficos, geológicos e pluviométricos de grandeza nunca vistas, acabou por atingir toda a bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul, estado que recém começava a se recuperar de eventos semelhantes, porém, de monta menor ocorridos no ano de 2023, nos meses de setembro e novembro, onde a região mais atingida foi a central e a norte. Dessa vez o impacto foi geral, colapsando cidades inteiras, interrompendo desde pequenos acessos secundários, estradas estaduais e vias federais. Viadutos, pontes, taludes e diversos outros mobiliários importantes para o deslocamento ruíram ou estão condenados e bloqueados ao trânsito veicular. Desta forma a ajuda terrestre não pode chegar à muitos lugares, restando este trabalho a pequenos barcos ou helicópteros.
Até o meio dia de hoje, 05 de maio, muitos lugares continuavam isolados e, apenas monitorados pois o acesso ainda era difícil ou impossível para o momento, pois não há...
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Passo a narrar minhas vivências na grande enchente de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. A História será narrada em duas partes.
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2024
O Ano Em Que Naufragamos
O Contexto
Se considerarmos o lugar onde andamos vida à fora e onde desenvolvemos nossas atividades cotidianas como um imenso navio, podemos dizer que ele naufragou nos primeiros dias do mês de maio de 2024. As centenas de milhares de navegantes foram condenados à uma descida obrigatória, quase como andar pela prancha de uma velha escuna pirata num pulo às escuras, numa incerta e vertiginosa queda.
Já se contam dezenas de mortos, (74vitimas fatais até as 20 h de domingo} e um número inexato de desaparecidos. Esses números são multiplicados por milhares quando se trata de desabrigados e que ficaram expostos ao rigor da enchente, aguardando ajuda, sendo ajudados e desembarcando violentamente desse cruzeiro de horrores.
A contar das primeiras regiões do alto da serra gaúcha, uma sequência de eventos hidrográficos, geológicos e pluviométricos de grandeza nunca vistas, acabou por atingir toda a bacia hidrográfica do Rio Grande do Sul, estado que recém começava a se recuperar de eventos semelhantes, porém, de monta menor ocorridos no ano de 2023, nos meses de setembro e novembro, onde a região mais atingida foi a central e a norte. Dessa vez o impacto foi geral, colapsando cidades inteiras, interrompendo desde pequenos acessos secundários, estradas estaduais e vias federais. Viadutos, pontes, taludes e diversos outros mobiliários importantes para o deslocamento ruíram ou estão condenados e bloqueados ao trânsito veicular. Desta forma a ajuda terrestre não pode chegar à muitos lugares, restando este trabalho a pequenos barcos ou helicópteros.
Até o meio dia de hoje, 05 de maio, muitos lugares continuavam isolados e, apenas monitorados pois o acesso ainda era difícil ou impossível para o momento, pois não há aeronaves suficientes para atender o grito da população enorme de necessitados.
Na região metropolitana de Porto Alegre, os municípios mais atingidos como Canoas, Eldorado do Sul ainda contabilizam de forma grosseira o número de desabrigados e vítimas fatais e ou, desaparecidos. Eldorado do Sul um pequeno município às margens do rio Jacuí, foi inteiramente tomado pelas águas, assim com as ilhas do delta desse rio. Guaíba mais ao sul, localizada no que se convencionou chamar de “Lago Guaíba”, estuário que recebe as águas dos rios Jacuí, Taquari, Caí e Sinos teve toda a sua orla alagada com bairros inteiros submersos. Um grande bairro residencial da Cohab, erguido no início dos anos oitenta foi inteiramente tomado pelas águas de uma barragem agrícola que não resistindo ao volume da água rompeu-se, despejando sobre o lugar centenas de milhões de metros cúbicos de água. Pegos de surpresa no meio da noite, grande parte dos habitantes fugiu com água pelo pescoço, carregando crianças, animais de estimação e os que conseguiram, alguns documentos, nada pode ser salvo, em raríssimas exceções.
Ginásios de esportes, colégios, associações, igrejas, prédios públicos e escolas foram requisitados para abrigar provisoriamente e conseguir atender as necessidades mais prementes dos vitimados pela catástrofe.
Da parte da população que estava nas áreas não atingidas diretamente pela enchente, se vê uma correria desenfreada aos supermercados, lojas e postos de gasolina na ânsia de se abastecer de víveres e combustível, bem como todo o tipo de utilidades cotidianas, do item de higiene até utilidades para o lar, cientes de que tudo pode faltar. Essa correria deve acabar por apressar a escassez de suprimentos. Estando a maioria das estradas bloqueadas, as ligações entre municípios produtores e as regiões consumidoras, está descartada no momento a possibilidade de reposição.
Leite, ovos e hortifrutigranjeiros são especialmente produtos da serra, onde o impacto teve início. A região central, produz carnes e tem grandes frigoríficos, bem como a região do vale do Taquari onde se faz presente em larga escala a produção avícola e suína, com toda a cadeia de gorduras e embutidos. No alto do estado ao norte, temos a produção de grãos, soja, trigo, cevada, milho, etc. Todos esses lugares cortados por estradas de rodagem e grandes escoadouros da produção, no momento e em grande parte com grandes trechos interrompidos e/ou bloqueados por deslizamentos, transbordamento de córregos, arroios e mesmo os grandes rios. Dessa forma impossibilitando as conexões necessárias para o fluxo logísticos.
Toda a cadeia comercial está em xeque, do mercadinho do bairro com seus legumes e verduras, até as grandes lojas e mercados de rede, que dependem em igual ou maior grau que os pequenos.
A equação consumo exacerbado x reposição não fecha, resultando num coeficiente insustentável.
A mobilização dos governos em todas as esferas parece ter sido desferida em tempo relativamente curto, resta ver se as verbas necessárias para a manutenção do momento caótico e da fase posterior da reconstrução tenham a mesma ou melhor celeridade. Seguem ainda os resgates em diversos lugares, o sobe e desce de helicópteros em um dos pontos de concentração na cidade de Guaíba, mostra que é incessante o trabalho. Na noite de quinta para sexta-feira última, o clima era de guerra com o trovoar das aeronaves desembarcando pessoas e animais domésticos, a maioria ensopados e com poucas roupas, o desespero era gritante, com crianças, idosos e mulheres apavorados pela situação inusitada. Todos os locais disponíveis esgotam a capacidade em pouco tempo e novos locais vão surgindo a medida do possível. As doações chegam a todo o momento e voluntários de apresentam enquanto Ongs se dedicam aos animais extraviados, a solidariedade está presente, felizmente.
Muitos se oferecem com veículos aquáticos, jet-skis, pequenos barcos, pranchas de surf, tudo foi e está sendo utilizado nos resgates, o medo agora é a falta de combustível, já que as distâncias a percorrer dentro da água é grande na maioria das vezes. Nas ilhas do delta, muitos barcos de pescadores locais estão a serviço de salvamentos, caiaques, botes e barcos de alumínio. O corpo de bombeiro tem trabalhado com todo o equipamento disponível e equipes, fazendo um trabalho hercúleo no resgate e no primeiro atendimento. A televisão mostrou os médicos atendendo em Porto Alegre, recebendo os flagelados das ilhas em condições adversas em plena chuva e caminhando sobre o lodo que se formou na margem do lago no local onde fica o shopping pontal, com barracas improvisadas e equipamento médico à postos, recebendo gente com sinais de hipotermia, crise nervosa e choro convulsivo. Crianças de colo sem entender porque foram arrancadas de seus doces sonhos para essa realidade absurda e dolorida, a água barrenta a lhes escorrer dos rostos assustados. Uma mulher foi acolhida em pleno trabalho de parto, recebendo o atendimento médico de urgência compatível e logo encaminhada aos serviços hospitalares, a essa altura completamente convulsionados.
Para tornar possível o deslocamento de equipes e veículos, retroescavadeiras e homens espalhavam brita no acesso e nas áreas de trabalho para minimizar a exposição dos profissionais da defesa civil em seu vai e vem interminável, os trabalhos atravessando a noite e o dia contabilizando centenas de atendimento em se contando os moradores das ilhas apenas. Do outro lado das ilhas os morado na margem opostas as pessoas são levadas para partes altas da rodovia onde equipes prestam o atendimento, este mais precário em virtude do isolamento do local, que teve pontes e viadutos interrompidos. De qualquer sorte o trânsito entre Porto Alegre e as cidades mais ao sul e outras regiões está totalmente bloqueado. Basicamente os transbordos tanto de pessoas quanto equipamentos e equipes estão sendo feitos basicamente via aérea. Apenas os movimentos locais são realizados por veículos terrestres, particulares ou viaturas oficiais, bem como ambulâncias e outros.
A Experiência Pessoal
O bairro onde moro demonstrava sinais de que ia sofre alagamento desde as primeiras horas do dia anterior. A água do lago Guaíba já se infiltrava pela rede de esgoto e formava uma grande poça no segmento central da rua, justamente onde fica o meu lote. Neste local tem três casas, a minha, a de minha irmã e a de meu irmão, que no momento está desocupada.
A tarde quando a água já beirava o meio fio alertei minha mulher para que preparasse uma mochila pois, teríamos que passar a noite fora, caso não quiséssemos molhar os pés, tudo iria alagar. Disse isso pensando que o alagamento seria tipo o que acontece em dias de chuva forte. A noitinha começou uma chuva mais intensa, sem alteração na altura da água na rua, mesmo assim fiquei acordado e, as 3 da madrugada preparei uma mochila e fui para casa de meu cunhado, minha mulher não quis sair, julgava que a água não subiria. Da casa onde me abriguei, meu cunhado foi buscá-la, nesse momento a água já alcançava os primeiros degraus da área da frente da casa, tiveram que sair com água pelas canelas, a água continuava a subir. Pela manhã, de bicicleta fui até o bairro e constatei a intensa movimentação dos vizinhos, haviam carros com os pneus submersos. Nas garagens, já sem a possibilidade de saírem. Grande parte dos moradores já haviam deixado o bairro. Entrei na casa, ainda não havia água dentro, ela se insinuava na soleira da porta e tinha instabilizado um pouco. Organizei os eletrodomésticos, meus sobrinhos ajudaram a subir alguns centímetros a geladeira, a televisão maior eles levaram para o segundo piso da casa deles junto com alguns mantimentos que havia na geladeira. Algumas roupas eu já havia retirado na madrugada, preparei algumas mochilas e sacolas com cobertores e mais roupas, reuni os computadores, rádios e outros eletros, meu filho estava na esquina de carro, demos diversas viagens com a água pelos joelhos, a água já inundava todas as peças da casa. Volte, coloquei mais algumas coisa em móveis e estantes mais altas, chaveei a casa e saí. Nos fundos minha irmã, que a princípio optara por ficar no segundo piso da casa, também já preparava a evacuação, pois tudo enchia rapidamente. Deixei para trás fogão, geladeira, camas e colchões. Também ficaram alguns móveis como estantes e roupeiros, muitos álbuns e quadros de fotografias. Deixei livros, coleções de revistas e cd’s e muitas roupas. Talvez consiga recuperar alguma parte. Mais tarde ficaríamos sabendo que uma barragem nos limites da cidade havia transbordado e outros 3 bairros inteiros estavam embaixo d’água.
O sábado 4/5 e o domingo 5/5, passamos revendo os acontecimentos na segurança do refúgio onde estamos até o momento. No sábado andei pelos lugares que ficaram sob a água e constatei a tragédia de perto. No bairro mais populoso da cidade, a Cohab, tudo foi atingido rapidamente pelo transbordamento da tal barragem. Vi que não havia nada o que fazer e retornei para a casa de meu cunhado, onde passamos o final de semana nos ocupando com coisas corriqueiras como conseguir água e algum alimento, tudo já estava escasso, difícil de conseguir.
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