Entrevista de Pedro Lucas Pillar
Entrevistado por Lupity Rossetto e Erik Araújo
São Paulo, 20 de março de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1201
Transcrita por Fábio Gonçalves
Revisado por Nicolau da Conceição
Realização Museu da Pessoa
P/1 - Pedro Lucas, né? Pilar…chique seu nome. Você se identifica com ele?
R - Agora sim, depois que eu adotei o Pilar… eu… tenho me sentido… não digo que mais confiante, mas eu acho que ele tem me dado o objetivo de vida, assim, de continuar.
P/1 - Interessante... e onde você nasceu?
R - Eu nasci no Hospital Morumbi, que na época era chamado de Açougue pelas mulheres aí, que tiveram filhas dessa região da Zona Oeste, divisa entre a Zona Sul e a Zona Oeste de São Paulo, Taboão da Serra, Campo Limpo Jardim Macedônia, Maria Sampaio, Capão Redondo. Eu sou de Taboão, mas a minha mãe morou em todos esses outros bairros que eu (rindo) falei, antes de chegar lá.
P/1 - E quando você nasceu?
R - Eu nasci no dia 20 de maio de 1996, se não me engano, uma segunda-feira.
P/1 - E te contaram como foi seu nascimento?
R - A minha mãe falou que foi tranquilo, ela conta bastante... ela disse que foi... um parto menos dolorido que o da Samanta, que é a irmã mais velha, e que o da Dandara que é a irmã mais nova. Mas ela falava que eu era muito esfomeado e que eu machucava... desde que eu nasci, eu machucava ela na hora da amamentação. Porque eu sugava o leite com muita força, eu lembro que ela sempre falava muito isso assim, que eu sou laricado desde criança... desde que eu nasci, né? E é a coisa do taurino, né? O mito confere (rindo) o signo (risos).
P/1 - E quantas irmãs você tem?
R - Por parte de mãe eu tenho duas, que é a Samanta, a minha mais velha e a Dandara, a mais nova.
P/1 - E quantos anos elas têm?
R - Eu vou fazer 27, então a Samanta vai fazer 36. É isso? É! Porque ela é 9 anos mais velha, e a Dandara vai fazer 18, porque ela é 9 anos mais nova....
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Entrevistado por Lupity Rossetto e Erik Araújo
São Paulo, 20 de março de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1201
Transcrita por Fábio Gonçalves
Revisado por Nicolau da Conceição
Realização Museu da Pessoa
P/1 - Pedro Lucas, né? Pilar…chique seu nome. Você se identifica com ele?
R - Agora sim, depois que eu adotei o Pilar… eu… tenho me sentido… não digo que mais confiante, mas eu acho que ele tem me dado o objetivo de vida, assim, de continuar.
P/1 - Interessante... e onde você nasceu?
R - Eu nasci no Hospital Morumbi, que na época era chamado de Açougue pelas mulheres aí, que tiveram filhas dessa região da Zona Oeste, divisa entre a Zona Sul e a Zona Oeste de São Paulo, Taboão da Serra, Campo Limpo Jardim Macedônia, Maria Sampaio, Capão Redondo. Eu sou de Taboão, mas a minha mãe morou em todos esses outros bairros que eu (rindo) falei, antes de chegar lá.
P/1 - E quando você nasceu?
R - Eu nasci no dia 20 de maio de 1996, se não me engano, uma segunda-feira.
P/1 - E te contaram como foi seu nascimento?
R - A minha mãe falou que foi tranquilo, ela conta bastante... ela disse que foi... um parto menos dolorido que o da Samanta, que é a irmã mais velha, e que o da Dandara que é a irmã mais nova. Mas ela falava que eu era muito esfomeado e que eu machucava... desde que eu nasci, eu machucava ela na hora da amamentação. Porque eu sugava o leite com muita força, eu lembro que ela sempre falava muito isso assim, que eu sou laricado desde criança... desde que eu nasci, né? E é a coisa do taurino, né? O mito confere (rindo) o signo (risos).
P/1 - E quantas irmãs você tem?
R - Por parte de mãe eu tenho duas, que é a Samanta, a minha mais velha e a Dandara, a mais nova.
P/1 - E quantos anos elas têm?
R - Eu vou fazer 27, então a Samanta vai fazer 36. É isso? É! Porque ela é 9 anos mais velha, e a Dandara vai fazer 18, porque ela é 9 anos mais nova. Tem um cálculo aí (risos)
P/1 - E o nome da sua mãe?
R - O nome da minha mãe é Tula Pilar Ferreira.
P/1 - Como você descreveria ela?
R - Uuu...nossa, muita coisa, é... vamos lá, primeiro uma supermãe, né? Criou três filhos sozinha, e por opção, ela podia ter optado por ser uma mulher submissa, mas ela preferiu manter a identidade dela. E... fazer o corre todo sozinha. É... teve a primeira filha dela muito cedo, com... lá por volta dos dezess...15, 17 anos, não lembro muito bem. É... deixou a filha um tempo com a mãe, com a minha avó, pra vir pra São Paulo, pra tentar uma vida melhor...e... a muito... da base de muito esforço, ela conseguiu melhorar essa vida, infelizmente ela não conseguiu colher os frutos dela em vida, mas é uma grande guerreira, né? Tem esse mito da mulher negra pobre ser sempre guerreira e enfim, essa necessidade... Eu nunca tinha parado pra refletir nisso, aí um dia, numa live, assim, ao vivo e a cores, assim, a minha irmã Dandara me corrigiu, sim. Ela falou, não, eu tô cansada de ser guerreira, caralho. Eu tô cansada de ser forte, de ter que ser uma supermulher, eu quero sentir dor, eu quero chorar, eu quero ser humana. E ela foi uma mulher muito humana sim, que ensinou muito, pra muita gente, do jeito simples dela de ser.
P/1 - E da onde ela veio?
R - Ela veio da cidade de Leopoldina, que é interior de Minas Gerais, não é nem tão interior, é região metropolitana, né? Mas é mais afastado, assim, região bem, bem, bem periférica, rural.
P/1 - E como que era a realidade dela? E a realidade da família dela na época que ela vivia lá?
R - Bem dura, bem dura mesmo, ela começou a trabalhar de empregada doméstica com 5 anos de idade, é... antes do período de alfabetização, ela era uma criança que era obrigada a cuidar de outras crianças, que tinha que limpar, que tinha que auxiliar na cozinha. Isso tornou ela uma pessoa muito endurecida né, ao longo da vida dela assim... que às vezes ela não expressava, ela não falava essas coisas, mas a gente via pelo modo de vida dela. Hoje em dia, em que ela já tá mais distante, e que eu também tô saindo pro mundo e me vendo enquanto pessoa, me conhecendo de fato, é...eu tenho um pouco mais de noção do quanto que ela era endurecida mesmo, afetivamente. No modo dela de ser, né? De vida. Porque ela precisou se endurecer, pra poder sobreviver, né?
P/1 - E a família dela, a mãe dela, você tem alguma memória?
R - A minha avó, dona Antônia, Antônia de Souza Ferreira, ela faleceu 4 anos antes de eu nascer, ela morreu muito jovem, acho que com 52 anos, isso é uma coisa que é do histórico da minha família, que as mulheres morrem muito cedo e sempre são questões relacionadas ao coração, pressão arteria. Então, a minha avó morreu de infarto, mas ela teve várias outras doenças antes desse, desse, desse infarto pegar ela e tal, então ela foi meio que definhando, dos 48 pra frente assim, foram 5 anos assim, tipo, decaindo com vários problemas específicos de saúde, coisas muito raras. A minha mãe falava que ela foi até cobaia de faculdade, porque os caras não acreditavam como é que uma mulher conseguia sobreviver com tantas doenças ao mesmo tempo, e todas elas relacionadas ao sistema imunológico e essa coisa da pressão arterial (suspiro). Aí a minha mãe contava uma história de uma tia também que só a minha mãe tinha lembrança dessa mulher, até hoje se eu perguntar para as minhas tias, elas não lembram muito, que é a tia Rosa. E a tia Rosa morreu da mesma coisa, morreu de infarto também, no chuveiro, e era um bagulho muito louco que a minha mãe contava que sonhou com ela antes dela falecer. E aí... a minha tia, minha avó, desculpa… que era a irmã dela, só descobriu que ela faleceu porque a minha mãe ficou querendo ver ela muito, de ter sonhado com ela, aí a minha mãe foi procurar informação e descobriu que a irmã dela tinha falecido, tipo, morreu no chuveiro, tomando um banho, teve um infarto no chuveiro. E a minha mãe também foi a mesma coisa assim, passou mal uma semana antes, numa quarta-feira e na quinta-feira da outra semana, ela caiu, morreu mesmo, nos meus braços.
P/1 - Deve ter sido uma cena muito triste, né? E como foi esse processo para você e para a sua família?
R - Pô, pra mim tá sendo ainda, né? Eu não tô dentro da cabeça da Samantha, que já era mais independente, já tava longe de casa há uns anos, quando a minha mãe morreu. É... eu acho que pra Dandara que é mais difícil, porque quando a minha mãe faleceu, a Dandara tinha 14, tava pra fazer 15. É... e pra mim, nossa… Eu… ah, é bem… é bem difícil… é bem difícil, assim, é bem difícil!
P/1 - Quando você lembra da grandiosidade da mulher que ela era, você prefere ficar com que memórias, normalmente?
R - Ah, as coisas de casa, de memórias de casa mesmo, assim, a gente, tipo... tipo em casa, ela, sei lá, reclamando que tava gorda e eu ficava apertando as banhas dela, assim tipo, bem bagulho de filho chato mesmo, que é meu naipe, o boy chato, fica pegando nas pessoas. É... ah, comida, que eu sou... a minha afetividade, ela tá muito relacionada com a questão do alimento, assim, acho que se unir pra comer, sentar à mesa e comer, é... esse processo de comer, fazer uma comida pra alguém… que você gosta, que você admira, pra mim é muito importante, assim, porque a comida, ela liga várias coisas, né? Ela liga o afeto, fonte de vida, né? Se a gente não come, a gente morre, existem outras coisas que servem de alimento pra além da comida física, então, também, eu considero essas outras coisas comida, e... é uma coisa que pode ser um lado, talvez, machista meu ou acomodado, mas eu sinto muita falta, dos dois lados na moeda, na verdade, tanto de chegar em casa e ter meu pratinho, que a minha mãe tinha preparado esperando, que é um rolê que nunca mais vai acontecer, mas também, às vezes, ela chegar, tipo, mano, meia-noite, cansada pra caralho, e eu poder, tipo, olhar pra cara dela e falar: “Gata, fiz o rango hoje, fica tranquila que a panela tá cheia, senta aí, toma seu banhinho, volta pra comer, tranquilo”. Isso era muito da hora, assim, pra mim, era uma das melhores sensações do meu dia, era, tipo, minha mãe chegar do trampo e, tipo, comer o rango que eu fiz, e falar: “Nossa, você tá mandando bem, hein? Olha, ensinei legal” (rindo).
P/2 - Qual dessas comidas que você comia, que ela fazia, assim, que você mais gostava, tal? E se tinha alguma delas que foi passada pela sua avó pra ela?
R - Tinha, tinha várias, como a minha mãe teve uma infância muito pobre, é... ela era, tipo, meio… meio... (leva a mão no rosto, pensativo) como é que ela falava essa palavra? Ah, tinha uma palavra muito legal que ela falava, não é sovina, sovina é quando a pessoa é gananciosa. Ela falava outro negócio, eu não vou lembrar, uma hora eu vou lembrar. Ela usava muito essa palavra é... ridica. Que a minha avó falava que chamava ela de ridica, que ficava ridicando as coisas, né? Muito econômica, extremamente econômica, mas ela tirava, ela, fazia umas paradas, que até hoje isso eu não sei fazer, que ela fazia um bolo de água, que era um bolo que era ovo, farinha e água. E ficava top, mano, top, top, era um dos melhores bolos que eu comi na minha vida até hoje assim. Esses, é... bolo integral, bolo fitness é a mesma parada, assim, só que era um bolo de farinha, ovo e água. às vezes ela botava uma raspa de laranja, de limão, dava um sabor no bolo e tava perfeito. Era a simplicidade. Como boa mineira o frango com quiabo dela era... cabuloso, é... feijão, eu fico muito feliz, assim, porque tem essas trocas, né? Ao mesmo tempo que a gente aprende com os nossos mais velhos, eles aprendem com a gente. E eu faço uma coisa hoje em dia que chamo de feijão gordo, né? Eu chamo não, né? É o feijão gordo, mas... eu aprendi a fazer o feijão gordo na casa do pai de uma amiga minha, o Décio, o pai da Sofia Serafim, uma grande amiga minha. Ele fez esse feijão um dia com abóbora e com linguiça na casa dele, era um natal, assim, e nem era janta do natal, tinha sobrado. Ele falou: “ó Sobrou aí, o pessoal ainda tá fazendo as coisas aí, mas sobrou um feijão, se tá com muita fome? Vou te dar um feijão”, e eu não tava esperando que fosse tudo aquilo, assim, mas era um feijão com abóbora, com linguiça, assim (suspiro), aquela coisa, eu falei: Meu Deus! E aí, tipo, eu cheguei no outro dia em casa falei: mãe, aprendi a fazer um feijão, vou fazer esse feijão. E aí eu fiz e a minha mãe gostou muito, a gente começou a fazer sempre, aí sempre que a gente fazia, tipo assim, tinha mais coisa em casa Tipo, tinha linguiça, aí tacava linguiça, aí tacava abóbora, aí tacava mandioca, inhame e vai botando tudo dentro do feijão. E hoje em dia, quando eu vou fazer e receber gente em casa até por ser uma coisa que rende bastante, eu sempre faço feijão gordo. Assim, adoro, tipo, meu prato preferido de cozinhar pra grandes pessoas, em grandes quantidades, é meu feijão gordo. É o meu carro-chefe. É o prato da casa. É o feijão gordo. Eu gosto muito. E a minha mãe, ela já fazia dos jeitos dela, mas esse com abóbora e com linguiça, ela, tipo, nunca tinha feito, aí ela gostou muito e ela começou a fazer sempre, assim. Eu fico maior feliz que foi um rolê culinário... um saber que eu transmiti para ela, eu não ensinei... (risos) eu compartilhei.
P/1 - É mais sobre isso. E seu pai, assim, ou essa pessoa teve presente ou...?
R - Meu pai… Tadinho do bichinho, é... não, ele não teve presente. Eu sou mais um jovem negro dentro da estatística do abandono paternal, mas ele era um homem que tinha uma índole um tanto agressiva. Então a minha mãe também optou de... de não... de não compactuar com isso, não dividir a vida com ele, mas quando ela falou que estava grávida de mim, ele realmente pulou fora, aí com... quando eu tinha de seis para sete anos “ela botou ele no pau” e é por isso que hoje eu tenho esse sobrenome Procopio de Lima que é o sobrenome dele. Porque antes eu era só Pedro Lucas Ferreira, é... mas depois que a minha mãe faleceu, a gente teve uma reaproximação muito forte, eu gostei muito porque a nossa relação deixou de ser uma coisa monetária. Porque antes ele me dava, sei lá, cem conto e tipo, é isso, nossa relação de pai e filho, tá aí, valeu, obrigado, que legal... e... eu fiquei muito surpreso, assim. Porque quando... quando a gente foi levar minha mãe no pronto-socorro, ela já estava morta, na verdade, ela morreu em casa, mas a gente foi tentar prestar o socorro, o vizinho que no meu quintal é compartilhado. Então tem casa embaixo, tem casa do lado direito, esquerdo, em cima. E o vizinho de cima era taxista, então a gente conseguiu colocar minha mãe dentro do táxi e correr pro pronto-socorro, que não é tão longe de casa, e aí tinha uma vizinha dele lá, e aí quando eu falei pra vizinha da situação que estava acontecendo, eu nunca esperava isso, ela ligou pra ele na hora, e... quando a minha mãe, né... quando a gente foi reconhecer o corpo, depois que a gente voltou, a primeira pessoa que apareceu foi ele. Isso era um rolê que eu jamais ia contar na minha vida, e tipo assim, ele saiu da luz, do centro... largou tudo que ele tinha, tudo que ele estava fazendo e veio no meu auxílio. É... foi muito louco assim, ele tem um histórico de de alcoolismo, ele não é aquele bêbado que cai, mas ele é aquele bêbado bêbado, clássico, que fala, e se expressa e chora, e abraça. E era muito louco que muitas vezes que ele estava muito louco ele falava, que tipo: “nossa eu amo sua mãe eu amo sua mãe até hoje, eu amo muito sua mãe, eu amo sua mãe até hoje, pena que ela não me quer, mas eu amo muito sua mãe” (suspiro). E aí no dia que ela faleceu e ele foi a primeira pessoa que chegou no hospital, assim, eu falei: porra será que é verdade? Fiquei tipo... (rindo). Na segunda-feira passada ele perdeu a companheira dele, é... do mesmo jeito que a minha mãe, também morreu em casa.
P/1 - Uma mulher negra?
R - Uma mulher negra.
P/1 - Meus sentimentos.
R - Obrigado, 52 anos, 52, eu acho, super jovem também, meu pai tem uns 60 já.
P/1 - Novo também.
R - É…
P/1 - E o que eles faziam? Primeiramente, o que sua mãe fazia? Tirando todo o corre que ela sempre fez, mas algo que você queria contar. E o que ele fazia também?
R - Ah, o que minha mãe fazia de especial ou de comum que eu admirava?
P/1 - De trabalho, o que você quiser contar... de correria…
R - De trabalho, pô, minha mãe era a pau pra toda a obra. Ela veio pra cá como empregada doméstica. Ela não se adaptou muito com as contratantes de São Paulo, porque, tem uma diferença lá, com o clima das pessoas de Minas, BH. Ela tentou vida um tempo no Rio de Janeiro, mas o Rio de Janeiro é muito pior, a questão do racismo, da agressão, a vida íntima desses contratantes, né? Porque tem muito B.O envolvido, né? Casa de gente rica. Aí ela falou: não é pra mim esse B.O todo, aí ela veio pra São Paulo. Isso ela tinha ido com a minha avó, inclusive, ela foi com minha avó com a minha tia mais velha, minha tia Rita que mora na Argentina hoje em dia, é... e aí minha avó também não se adaptou, a minha tia Rita que ficou mais tempo em São Paulo, que ela já é mais do balacobaco, assim. Mas a minha mãe não se adaptou aí voltou pra Minas um tempo, depois veio para Sao Paulo. Aí aqui ela ficou uns tempos, mas ela começou a sofrer muita perseguição, porque ela era uma mulher mais pra frente, né? Ela tinha uma outra visão, ela queria os direitos trabalhistas dela, ela queria poder estudar, ela queria ter o direito de sair à noite, ela queria ter uma vida afetiva. E as patroas não eram... não concordavam com isso, então falavam que ela era, muito, muito arrogante, falavam que ela era muito atirada e aí ela foi... tipo assim, começou a ser caçada nas agências, porque, ela falava: “não, então eu não vou trabalhar com você, se você não está aceitando os meus termos, eu também não consigo aceitar os seus, é melhor eu sair fora”. Só que quando ela voltava pra agência a mulher já tinha ligado na agência já tinha falado uma pá de coisa dela... se sabia que ela estava em uma outra casa, de outra madame, como minha mãe falava: “de outra branca rica”... ela... ela... Ligava lá e fazia uma indicação negativa, e aí minha mãe começou a ficar queimada na casa das ricas, porque falavam que ela era limpa, ela era educada, ela faz o trabalho dela do jeito que tem que fazer, ela trabalha bem-feito, só que ela quer sair à noite, só que ela quer estudar, né? Como assim, uma mulher preta e pobre querer estudar? Não pode! Então ela foi desistindo de ser empregada doméstica, foi onde ela se encontrou como... como... passadeira, aí ficou um tempo trabalhando em uma lavanderia, aí ela passou pelo mesmo processo de querer estudar, de querer ter direito trabalhista, não quiseram dar os direitos pra ela. Aí ela foi se enfiar num monte de bagulho de revendedora de filtro de água. Pode falar o nome de marca?
P/1 - Pode.
R - Que era o bagulho de Hoken, aí eu lembro que um monte de tiozinho da Hoken lá em casa vender filtro, vender uns negócios assim. Que eu ficava: meu Deus, o que que é isso... alta tecnologia, naquela época, anos dois mil. É... perfume ela nunca se deu muito, ela tentou mas ela viu assim, ela falou: não quero esse negócio, aí saiu fora. E aí foi quando ela encontrou a revista Ocas, e aí a Ocas que é um start assim, porque por mais que o trabalho fosse árduo, fosse complexo, é... foi a partir da venda dessa revista, que ela começou a se antenar no movimento cultural de São Paulo, porque ela andava muito, muito no centro, muito na Avenida Paulista, e ela começou a fazer teatros, ela começou a conhecer os saraus a partir disso. Que já tinha saraus na quebrada, né? Mas na quebrada tudo é muito... como é que a gente fala? É tudo muito regional, né? Tudo muito nuclear. Então até a gente descobrir que tinha o Garajão lá no Taboão da Serra que era um movimento que o Marco Pezão fazia. Salve Marco (olhando pra cima)! Que o Sérgio Vaz puxava, né? Outros parceiros, Elmantu, foi um processo, era quase do lado da nossa casa em Taboão da Serra, antes de ser a Cooperifa hoje em dia. E aí ela começou a colar em alguns saraus do centro, e aí ela já tinha uns escritos dela nos diários, mas ela nunca tinha tido esse olhar para a poesia, para a escrita poética, enquanto poetiza declamadora, e aí ela começou por volta desses anos 2000 aí, que ela começou nessa aventura. E era muito legal, porque ela levava a Samanta, me levava, pra mim foi muito importante, porque foi no meu período de alfabetização. Bem na época que eu tava na escola, na primeira série, aprendendo a ler, é... eu complementava os meus estudos em casa, lendo poesia, e... a minha mãe escrevendo, então eu do lado dela escrevendo e eu aprendendo a ler e lendo, e era muito legal, era muito divertido, assim. E ela conseguiu se fazer através da poesia, assim, e isso é uma coisa que eu acho mais incrível, nos tempos que a gente vive hoje, que todo mundo é Slamer, que tem uma galera que lança livro. Super massa. E ela, dentro de tudo isso, assim, ela é uma das precursoras desse movimento, que eu acho que é um rolê que é importante reconhecer, assim. Ela não era só uma pessoa muito firmeza, mas ela abriu portas para muita gente, inclusive para mim, enquanto filho, né? Mas para muitos jovens né? Para muitos de nós que estamos vindo hoje enquanto artista, né? Porque eu acho que tem o lugar do produtor... tem o lugar do diretor, tem o lugar do ator. Ela, enquanto poeta, ela abriu caminho para várias pessoas, assim, enquanto poeta, mulher, preta e periférica, né?
P/1 - E se reconhecer como artista, né?
R - Sim!
P/1 - Toda a diferença.
R - E não só se reconhecer, mas também a coisa da teimosia taurina, que ela era taurina também, (rindo), de... quando as pessoas rirem da sua cara e falar: Mas como assim? Você acha que você pode ser poeta? Ela falou: “Eu posso sim, quer ver? Ó a minha poesia aqui, tá aqui, ó. Fui eu que fiz!”
P/1 - E tenho mais para te mostrar se foi preciso.
R - Uhum…
P/1 - E algum parente, se tem alguém da família que você era bem próximo e... gosta muito, tem uma relação?
R - Minha mãe e minhas irmãs. Os pilares da minha vida, Tula, Samanta e Dandara. Essa é minha família, respeito muito todo mundo, amo muito todo mundo, mas ninguém me viu crescer... é ... não teve aquele processo de intimidade, de acolhimento, as crises todas que foram vividas na família, foram sempre entre nós três, assim. Esse é o nosso núcleo familiar, né? De uma mulher solteira. Minhas tias moram em Minas, tem minha tia que mora na Argentina o meu pai mora duas ruas de mim, mas a gente nunca teve essa proximidade. Quando teve, nunca foi um rolê muito saudável, por discordâncias, né? Então assim, meu núcleo familiar de sangue, né? Consanguíneo, eu tenho parentes que não são sanguíneos, mas o núcleo sanguíneo familiar são essas três mulheres da minha vida, assim.
P/1 - E alguém que não seja... que não tenha esse vínculo sanguíneo, que seja alguém...?
R - Puta, minha família é muito grande!
P/1 - Mas alguém que marcou de fato sua infância ou seu processo de construção?
R - Ai, (suspira) tem muita gente, nossa... tem muita gente, eu tenho um melhor amigo da escola que era o Eric, O Negrito, o apelido dele... a gente foi muito amigo, assim, é... durante esse processo todo do ensino fundamental e do ensino médio. Aí depois ele mudou pra Osasco a gente perdeu a proximidade, o Eric, ele era mais caseiro e eu era o maldito jovem do reggae. Aí era muito engraçado, porque, era tipo muito oposto os dois, assim. Os dois muito inteligentes e tipo muito imbatíveis, assim, na hora de dialogar. Mas o Eric era das exatas, ele era o cara da matemática, da física, e eu era o cara da filosofia da história, da geografia. Então quando a gente tinha qualquer B.O da escola, a gente sentava juntos, e ele me ensinava a fazer os rolês de matemática e eu passava os rolês de história, de geografia, física, filosofia pra ele. (rindo) A gente ficava trocando figurinha. Mas ele era tipo muito nerdola de casa, assim. Eu lembro que a época que a gente começou a se afastar, foi nessa época dos affairs, né? Então, aí a galera começa a transar, começa a ir pro baile, começa a beber, começa a fumar, e o Eric lá…tranquilo. E eu falava: “Eric, você tem que sair, você tem que fazer alguma coisa da sua vida, porque se ficar muito tarde, quando você comer esse melado você vai se lambuzar e não vai ter saída” (risos). E aí ele, mano, foi começar a dar rolê com 19 anos. Só que aí nesses 19 anos ele conheceu uma menina. E aí eu comecei a fazer a campanha, eu falei: use camisinha, use camisinha. Você tá perdendo a virgindade meio tarde pra um garoto de periferia. Porque infelizmente a gente sofre esse estigma. E eu falava: “você vai se ferrar, você é hétero, hétero engravida, cuidado!” E aí deu dois meses e ele fez um filho (rindo).
P/1 - Meu Deus… (risos)
R - E aí mudou de cidade, virou pai e a gente não mantém muito mais contato hoje, mas foi muito engraçado, porque eu tava pressentindo, assim. Isso era uma das ideias que eu trocava com a minha mãe, dessa coisa das pessoas que começam a viver muito tardiamente e aí acabam vislumbrando... várias coisas, ela sempre falava isso: “você quer ficar louco? Você quer fazer não sei o que? Faz, já faz, vai faz e faz agora, aproveita que você é novo. Você tem oportunidade de errar, porque se for deixar pra fazer quando você tiver velho. O negócio, é... o, a dor é diferente”. E eu não tinha essa reflexão, até que o Eric teve esse filho, (rindo) eu falei: “ah, pode crer”.
P/1 - E ele já tinha terminado a escola?
R - Já, já tínhamos terminado, foi bem no ano que a gente terminou, na verdade. Na verdade, ele terminou, eu sou repetente, repetente, repetentíssimo, meu Deus, eu repeti acho que 4 anos na escola. Porque depois dos 16 eu não consegui mais me adaptar ao sistema de ensino. É, eu brigava muito com os professores com a forma de pensar, com a forma de ensinar. Brigava muito sobre a questão do ensino de história africana, que nunca passava, quando passava era sempre sobre escravidão. E... não me adaptava ao regimento escolar mesmo, essa coisa de ter que acordar sempre muito cedo, e aí, às vezes ficar ali. E eu lembro que quando eu fui pro ensino médio, era uma escola que faltava muito professor. Faltava muito professor. Então a grade horária, eram 6 aulas por dia, e às vezes a gente tinha duas... porque... tipo, faltavam. Eles não liberavam a gente, então a gente ficava, assim, o dia inteiro ocioso. E isso foi me dando uma revolta, foi me dando uma revolta, eu tava na época, tipo, de fumar muito beck e, tipo, de dar muito rolê, tipo, de ir pro reggae. Então, às vezes tinha dia que eu vinha virado da escola e por mais que eu tivesse virado de rolê, eu queria estudar. Porque eu lembro que tinha um dia que era muito específico, que era um dia que tinha baile: ou tinha baile no capão, ou tinha baile na USP. E aí, esse dia que era de quarta pra quinta, de quinta pra sexta. Eram os dias que tinham as melhores aulas, que eu gostava, que era filosofia, que era história, que era geografia, e era o dia que mais faltava professor. Aí, isso aí pra mim foi me dando um bode, foi me dando um bode, eu fui começando a ficar arredio, arredio, arredio. E aí, eu, não querendo adiantar a etapa, mas ainda pensando numa construção de futuro, de processo, eu comecei a fazer o cursinho do Núcleo da Consciência Negra na USP. Aí, o cursinho foi me abrindo várias portas, assim, tanto pro lado mau, porque eu comecei a ficar mais rolezeiro ainda, porque eu tava dentro da USP, e aí, você vai conhecer a parte feia do rolê primeiro…
P/1 - E Cidade Universitária, né?
R - Uhum. Quanto...quanto na parte positiva de estudos e discussões, e ampliação de conhecimento. E aí, eu fui vendo que a escola pública já não me cabia mais. Só que foi um lugar meio de soberba, porque ainda não tinha terminado.
P/1 - Uhum... adolescente.
R - É, revoltado. E aí, eu larguei a escola e falei ainda tinha aquela coisa: se você passar no Enem, você pode terminar, você pode optar por terminar direto. Aí, eu caí nessa lenda, no final não fiz Enem, não fiz escola, falei mano... que se exploda. E fui buscar outros conhecimentos, na verdade, de vida. Porque... o saber institucional não tava me cabendo mesmo, assim. Eu não tava me encontrando, tava muito revolts, assim, com tudo. Tava no começo do meu afro surto (rindo), de se descobrir negro e se ver e tipo assim, se autoquestionar e questionar a sociedade, as pessoas e todas as estruturas, assim. Ainda muito ingenuamente. Mas aí fui saindo, fui abandonando. Abandonei a escola, abandonei o cursinho, e, tipo, falei, mano, vou ficar no baile, vou pras rodas de rolê memo, e é isso, deu minha cota. Aí fui pro EJA e terminei. O que era pra terminar em um ano, eu terminei em dois, porque eu também repeti no EJA, por trabalhar à noite.
P/2 - Você comentou sobre esse período….
R - Afrosúrtico.
P/2 - Afrosúrtico. Teve algum momento, assim, nessa fase que te deu um despertar, assim? Ou foi realmente a construção desse período todo? Como que foi?
R - (suspiro) Pra mim é sempre uma necessidade, assim, essa parte pra mim é sempre muito perigosa de falar, porque… eu me identifico muito com esses saberes ancestrais mesmo, da negritude. Mas por construções, acho que construções sociais mesmo, estéticas, eu ainda sou um cara preto que me relaciono muito com pessoas brancas, afetivamente. E aí, quando veio esse período de afrosurto, na verdade, foi um bagulho de autodefesa, tá ligado? De, tipo, não estar extremamente vulnerável perto dessas pessoas, dentro desses âmbitos, assim. Porque você se relacionar com uma pessoa branca é difícil, mas é suave (rindo). Mas aí tem o amigo branco, aí tem a mãe branca, o pai branco, o irmão branco, e a avó branca, e aí o cachorro é branco. E aí, tipo assim, quando você vê você é um pontinho preto, cercado de gente branca, você fala, meu Deus, o que eu tô fazendo aqui? O que é isso? Onde que eu vou... sabe quando você vai trocar mesmo? Tipo, o que a gente tem em comum? E aí é difícil, porque a gente tem muitas coisas, mas as estruturas da sociedade, elas não deixam, não permitem que a gente veja. E tem essas coisas da sociedade que vão, vão escamando a gente, né? Então, eu tô nesse patamar aqui, porque eu sou preto, mas eu sou homem, sou cis. Né? Então, eu tô acima do viado preto, né? Afeminado. Eu tô acima da mulher trans preta. Eu tô acima da mulher cis preta. E esse é o meu patamar, esse é o meu lugar. Né? Então, eu tenho que estar dentro do lugar da virilidade, né? Eu tenho que apresentar uma performance sexual importante. E, gente, isso é real. Quando a gente se relaciona com as pessoas, mesmo entre pessoas pretas, isso é real. É… discutir sobre isso dentro dos nossos núcleos, dentro do núcleo familiar, é complexo pra caramba, né? A gente tá entre os nossos amigos, que tão num patamar de intelectualidade superinteressante, a gente consegue falar mais abertamente sobre isso. Mas em outros lugares, não. E aí, a gente vai meio que... eu sou um pouco assim, eu sou meio... não politizado demais, mas acho que é importante a gente dialogar sobre essas coisas. A gente precisa estar o tempo todo falando, o tempo todo falando, o tempo todo falando. Até porque a gente sempre acha que sabe muita coisa e não sabe. E sempre tem quem tá do nosso lado, que sabe muita coisa, não sabe o que a gente sabe. Então, a gente tem que tá trocando figurinha mesmo. Tem que tá nessa troca de afetividade política. Né? E aí, foi quando eu fui vendo que tinha um travamento, assim, que... a gente não se entende, enquanto sociedade, não se entende enquanto pessoa, não se entende enquanto população negra, né? As pessoas brancas não se racializam dentro das discussões, dentro delas mesmas, elas não têm essa visão de que eu sou branco. Tipo, não, eu sou só um ser humano. Eu posso ser falho, né? Eu não tenho esse privilégio de entender que eu sou só um ser humano. Eu sou preto, velho. Qualquer lugar do mundo que eu for, se eu estiver na África, eu sou um homem preto, mano. Isso me marca. Isso me marca afetivamente, psicologicamente, socialmente. E aí, foi quando bateu esse start, assim, que foi meu primeiro namoro. Que foi um rolê que durou três meses, mas, tipo assim, ele quis me apresentar pra família dele. E aí, um dia o pai dele brotou na casa dele... que é, tipo assim, um senhor italiano. E aí, uma semana depois, ele terminou comigo, tá ligado? Tipo assim, sem explicar o porquê, tipo... com o zoio arregalado, assim, tipo, mano: a gente não vai poder se ver mais. Eu fico, tipo assim, mano... aí, eu fui juntando uma coisa na outra, eu fui costurando, assim, eu falei... Ah, isso é racismo. Pode crer, nunca tinha passado por esse rolê tão especificamente, assim, explícito, né? E aí, é buscar se conhecer e, tipo assim, o ambiente que você vive, né? Que é essa estrutura aí, que eu tenho que estar com a minha barba feita, eu não posso usar dread. Dependendo do lugar que eu for, eu não posso chegar com esse cabelo. Pra ganhar um salário de sete mil reais.
P/1 - E é mais. A estrutura que a gente vive, né? Não se compreende também a negritude num lugar, num espaço de poder, né? É... e na sua infância, no seu processo, você fala muito sobre essas pessoas que te referenciavam, né?
R - Uhum.
P/1 - Você gostava de ouvir histórias, essas pessoas te contavam histórias ou vivências que faziam você desbloquear várias coisas?
R - Nossa, muito! É, eu acho que eu sempre fui um jovem revoltado por isso inclusive. Porque como eu cresci muito arraigado por saraus, né? Sarau do Binho, o sarau da Cooperifa, Clube Caiobi, sarau do Nicanor, nossa... Ecla. Que eram os espaços que a minha mãe frequentava, né? Nossa, as pessoas eram sempre muito incríveis, assim, né? Sempre os artistas muito loucos das ideias, a galera muito boêmia. Então o meu rolê era ficar sentado na mesa do bar, tomando meu suquinho, enquanto a galera tomava uma cerveja, ouvindo histórias. Histórias de vida, de construção, né? Quem estudou aonde, viajou pra não sei onde, assim. E eu sempre falava, meu, eu quero isso, acho que a minha perspectiva de vida é essa. Quero ser artista mesmo, quero esse conhecimento pra mim. Então, eu... nossa, sempre cresci ouvindo muitas histórias e com muitas e muitas pessoas me marcando, assim. Pessoas de periferia, de vida simples, mas que foram buscar outras perspectivas, né?
P/1 - E a escola que você estudou?
R - Eu estudei no Francisco Vicente, no Ensino Fundamental, até a oitava série. A minha mãe sempre foi uma pessoa muito querida, sendo a pessoa que ela é. E eu sempre fui muito querido, sendo a pessoa que eu sou. Então foram períodos leves, assim, por a gente ser quem a gente é mesmo, porque a galera gostava da gente e ajudava. Então, por mais que tivesse dificuldade financeira, de, sei lá, comprar um material didático, aí antes de ter essa coisa do materialzinho do aluno presente, eu já ganhava o material didático das tias da escola, que elas entendiam a nossa dificuldade. E elas gostavam de mim mesmo, porque achavam que eu era um menino bonzinho e tals. E aí, pra mim, isso sempre foi muito legal, assim. É... eu não vou lembrar os nomes de todas mesmo, tipo Ana Carmen, Ana Lúcia, a Vilma, a professora Roseli, que foi a mulher que me ensinou a ler, a professora Ione, né, desses processos, assim, do Ensino Fundamental. Foi muito legal estudar lá, apesar de ser aquela escola que foi construída no período da ditadura militar. Então, ela tem toda aquela estrutura muito específica. Que, pra mim, quando eu fui trabalhar na Fundação Casa, quando eu entrei no prédio da Fundação, a primeira coisa que eu fiz, eu fui, tipo, no banheiro e sentei no vaso e chorei pra caralho, assim, porque eu falei, puta, eu tô dentro da minha escola, mano... É isso, é... É pra isso que é essa sociedade, porque essa estrutura prepara a gente, o nosso corpo, o nosso psicológico, é pra estar dentro desse tipo de lugar. Por que a estrutura da Fundação Casa é tão parecida com a estrutura da escola pública?
P/1 - Tem um estudo que diz que chama... que isso é um sistema panóptico.
R - Panóptico, vou anotar.
P/1 - Já anotei aqui pra você.
R - Obrigada.
P/1 - E ele diz que a construção, ela deve ser feita com vigilância, né. Então, sempre tem algo que vigia no centro e ele vai disseminando pras pontas, né, até que chegue nas celas, que são as salas, as coordenações, que são os espaços de poder e de vigilância, até que chega no raso, né, no que não se constrói, né, que na teoria são as salas. Mas é muito curioso essa relação do... de uma penitenciária, né, tipo, pra criança, pra adolescente.
R - Sim.
P/1 - E relacionar com a escola. E é um sistema também que... ele perpassa por vários caminhos da nossa sociedade. Hospital também são construídos assim, principalmente quando a gente pensa em hospitais públicos, né, essa construção de favela e de vigilância e desses censos, né, fazem todo esse sentido. Mas... como você chegou na Fundação Casa?
R - Cheguei através da minha mãe. Ela já tinha o trabalho dela com a poesia muito bem estabelecido. (suspiro) E aí teve um dia que foi, se não me engano, no ano de 2016... não sou tão bom com o ano. É… que... foi um convite do Sidney Santiago, estendido à Adéola, Adéola Idris, que era uma das responsáveis pela educação, uma das educadoras da Casa Topazio. E aí ela convidou a gente pra celebrar um Dia da Consciência Negra lá. Então o Sidney Santiago foi pra falar um pouco sobre teatro, sobre TV, a experiência dele enquanto, né, um homem preto que já atuou na Globo, que não nasceu com uma vida tão privilegiada, né, falar dessa formação social. A minha mãe foi enquanto mulher, poetisa, artista, e eu fui junto com ela, né, pra acompanhar ela ali com os meus tambores, sempre debaixo do braço, levar um pouco do caminho do Jongo também, falar sobre cultura tradicional. É... Foi bem legal esse dia, foi uma experiência muito interessante, assim, e muito me ver. Acho que foi a primeira vez em que eu pude ver meu reflexo em outras pessoas. Foi a primeira vez que eu pude... Pude me ver mesmo, assim, tipo, olhar num lugar e falar, putz, eu estou em seus meus. Cheguei, é aqui. Acho que na escola eu não tive tanta essa vivência. Sempre tinham os meus ali, mas até então eu acho que eu não tava... não tinha esse start ligado, né, essa procura, essa busca. Mas o dia que eu cheguei na Fundação Casa, eu falei, pode crer, meus parceiros tão aqui.
P/1 - E era uma oficina ou algo recorrente?
R - Era uma vivência, não. Foi uma vivência de um dia só. Acho que tinham ido outros artistas já, ao longo da semana, era uma semana, assim, especial, em que iriam vários artistas, e aí um dia específico foi a minha mãe convidada, e ela me chamou pra ir junto com ela.
P/1 - Você lembra como foi a sensação?
R - Ah, foi isso assim, primeiro... acho que medo eu não senti, eu não senti... no começo, né, na hora de entrar, de passar o portão, eu falei, porra, estrutura familiar. Mas até então era só o portão, mas quando eu entrei lá, que eu vi aquele corredor, que eu vi a estrutura das salas, o banheiro, tipo, o banheiro que eu entrei pra chorar era igual o banheiro da minha escola. E aí eu falei, mano…
P/1 - E como foi pra sua mãe também te levar pra esse espaço? E, claro, era algo pra celebrar ali, naquele momento, né, pra... querendo ou não estar ali, mostrar o que vocês construíram, e a potência que ela era também, né? Como foi pra você ter essa visão do todo? Você tinha essa compreensão de: nossa, minha mãe também é alguém importante, isso que a gente tá fazendo é, pra além de ser importante, olha essas pessoas que estão aqui, essas adolescentes, e você em um outro lugar, assim, como você se sentiu nesse momento?
R - Ah, eu sempre achei que a minha mãe fosse importante, assim, até por ela ser minha mãe, né? Mas compreender esse lugar dela enquanto artista, uma grande artista, uma mulher grandiosa... acho que o start não sei quando veio, assim, acho que demorou ainda um tempo, assim, pra... acho que não pra ver ela enquanto uma pessoa grandiosa, mas pra acreditar, né, nesse lugar da arte mesmo, nesse lugar de importância de ser artista, eu demorei um tempo, de que nós somos comunicadores, né? De que as pessoas nos veem e se exemplificam na gente, nos tem como espelho. Demorou muito, demorou muito, eu acho que eu ainda tô... porque eu também não quero ser muito exemplo pra muita gente, eu quero viver minha vida normal, quero poder, sei lá, saber, andar na rua, e ficar tranquilo e ver a pessoa te falar ó, é um amigo, não é um fã, né? Eu não quero fã, eu quero ser humano, primeiramente, tem um lugar do artista, né, os grandes artistas que estão nas grandes mídias, que são verificados no Facebook…
P/1 - (Risos) Facebook ou Instagram, né?
R - Essas coisas aí, nas redes sociais, né? E tem o lugar do artista que é o artista que eu procuro ser, que é, por exemplo, mano, tipo o Tião Carvalho, tá ligado? Que é um grande compositor, que é um grande músico, que é um grande pai, que é um negrão foda, da capoeira, do Bumba Meu Boi, da cultura tradicional, e ele tá ali, mano. Você vai ali no Butantã, no boteco, você senta com o Tião e você troca uma ideia, tá ligado? Você toma um café com ele, se você quiser. Tem artista que não tem esse acesso, né? Eu quero que o Tião esteja melhor de vida, eu quero que ele tenha uma casa dele na Europa, o jatinho dele, lógico que eu tenho, mas eu quero ter acesso ao cara sem precisar fazer esforço, porque ele é incrível, ele é um mestre, ele é um mestre.
P/1 - E é gente, né?
R - E é gente. E é um, pra mim, é um preto mais velho que eu me vejo, assim, tá ligado? Que eu tipo falaria: pô, eu queria que esse cara fosse meu pai, mano. (risos)
P/1 - Eu tenho essa mania, às vezes, de ter grandes referências, e falar, nossa, adoraria que fosse meu pai. Mas eu acho que é esse lugar da pessoa negra também, que não tem muito esse afeto paternal, né? Não necessariamente que seja um homem, mas nessa energia de ação, dessa masculinidade viril e forte, que também não é necessário que, não só deslegitime a existência desses homens, mas apaga também o que eles constroem pra chegar até aqui, né?
R - Sim.
P/1 - E nesse lugar você se coloca, e aí, teve a adolescência, você foi se descobrindo como um adolescente heterossexual?
R - Não, nunca. Desde a infância. Eu me identificava como bi, que eu nem sabia o que era isso, mas eu sabia que eu gostava de menino e de menina. E aí eu guardava parte dos meninos um pouco em segredo, né? Porque tem todas as construções ali, a coisa de viado, não sei o que, bichinha (gesticula). Então eu fiquei mais calado, eu fiquei mais calado, acho que até os meus 14 anos, por aí. Mas eu sempre me identifiquei enquanto bi. Antes de saber o que era essa palavra, eu já falava, porque eu tinha aprendido em alguma coisa, sei lá, no cine privê, alguma parada assim. E aí eu falava, pode crer, eu sou isso aí, entendi.
P/1 - E como que a poesia, de fato, entrou na sua vida, pra além do que a sua mãe trouxe? Como você falou, ah, vou seguir esse caminho e vou trilhando pra eu me encontrar?
R - É, então, esse é um processo muito louco, porque na verdade a poesia entrou na minha vida e me deu esse start de... dessa busca mesmo da minha própria humanidade, identidade, de me ver enquanto artista. Mas eu não sou poeta. Eu não me vejo tipo, escrevendo um livro, disputando slam, tipo, fazendo poesia, produção, e um homem tipo das palavras escritas e faladas. Eu me vejo muito mais enquanto um ator, que eu tô buscando essa formação agora, um declamador poético. Mas o meu corre mesmo é com a cultura tradicional. Aí a poesia entra. Então, se a gente for falar da poética do tambor de crioula, isso é um rolê que eu estudo, que é a poesia de improviso. Dentro de um mote de verso curto. O samba de coco, né? O coco de sala, que é um canto de verso mais complexo, tem as suas métricas, os seus motes, os seus desafios. Isso é um estudo que eu tenho dentro da poesia. O jongo, isso é um estudo que eu tenho dentro da poesia. Agora, a poesia literária não é meu rolê. Eu galguei esse caminho porque foi o presente que exu me deu para eu me encontrar enquanto gente. Mas... não... ainda não me achei enquanto um poeta da palavra escrita.
P/1 - Você acha que para ser um ator também tem que lidar com poesia?
R - Tem, bastante. É nessa parte que eu estudo. Mas eu não sou um poeta escritor, eu posso ler e interpretar. Escrever, eu até gosto de escrever, mas escrever para mim é um processo muito íntimo, muito pessoal, ou eu tenho que tá radiando felicidade, soltando raios, ou eu tenho que estar muito no fundo do poço. E aí eu escrevo nesses momentos. Por isso que eu não revelo muito sobre o que eu escrevo, porque é muito pessoal, é muito íntimo. Muito íntimo. É quase que um diário, assim…
P/1 - E essa coisa da arte num todo, você acha que você se identifica…. Eu basicamente não acredito que a gente precisa se identificar com uma coisa só. Mas o que te atrai mais, o que te traz mais satisfação.
R - Umbigada. Eu estou onde tem Umbigado, tambor e umbigado, eu descobri. Eu estava tentando me identificar assim até certo tempo. Qual que é o tambor que me chama? Porque eu acho lindo, por exemplo, o maracatu. Todos os meus respeitos a todas as nações de maracatu, de baque virado, de baque solto e tudo mais… mas eu não me identifico com o maracatu, eu não sou o cara do maracatu. Se me chamar para tocar, eu vou tocar porque eu já estudei, acho legal, acho bonito, mas, tipo assim, eu não vou... puts, ai, vamos puxar o movimento de maracatu aqui agora, para a gente começar o maracatu e fortalecer? E daqui a 10 anos a gente vai ter o maracatu do Museu da Pessoa. Não, eu não vou ser esse cara. Porque maracatu não tem umbigada. Agora, se você falar: vamos fazer o tambor de crioula do Museu da Pessoa, a gente faz. O jongo a gente faz, o coco de roda a gente faz, o samba de roda a gente faz. Porque... eu descobri que essa função da roda, unir as pessoas em roda e ter o auxílio do tambor, enquanto um instrumento de comunicação, comunicação ancestral, de comunicação consagrado, e que eleva um profano saudável. E é essa coisa do centro de equilíbrio que está na barriga mesmo aqui (põe as mãos na direção do umbigo). Então, quando a gente bate essa barriga aqui, esse ventre, seja dois homens, duas mulheres, um homem, uma mulher, esse encontro aqui é... ele promove... eu não sei explicar ainda. Mas é encontro de ancestralidades mesmo, assim. Aí eu me descobri nesse lugar. Eu descobri que qualquer lugar que tem tambor tem umbigada, eu vou e os pelos da nuca arrepiam, e eu fico dias e dias sonhando. E, nossa, já tive muitos sonhos com o tambor, com coisas muito fortes, sobre missões, sobre qual é o caminho seguido da minha vida. Eu acredito que eu quero estar nesse lugar. Ainda não aprendi a construir os tambores que eu quero. Eu estou na busca dessa missão. Eu fico enchendo o saco do Poeira. Eu falo: o Poeira, me ensina a fazer um tambor. Enche o saco do Tijolo, que é um cara que também aprende um pouco com Poeira. Nossa, o Caçapava. O Caçapava falou: “você precisa trazer o tronco que eu te ensino”. Eu ainda não arrumei um tronco. Fico procurando poda de árvore em São Paulo (rindo). Mas... é isso, sim. Eu quero estar nesse lugar de quem promove esse encontro. Essa poética. A poética da roda. A poética da semba, da umbigada. A poética desse encontro ancestral, desse matriarcado. Porque essas brincadeiras, elas são construídas, estruturadas por mulheres, por mulheres pretas, desde o início das eras. Tanto o tambor de crioula, quanto o samba de roda. O destaque pode até ser masculino, mas sem as mulheres esse rolê nunca é feito.
P/1 - Uhum.
R - Nunca. Impossível. Se não fossem elas, não tinha chegado até nós. Nesses 500 e tantos anos de Brasil.
P/1 - Até mais, né?
R - Uhum.
P/2 - Você comentou bastante coisas sobre a questão da cultura africana. Entender como foi e quando foi mais ou menos que você sentiu a necessidade de aprender mais, conhecer mais e fazer parte mais dessa cultura?
R - Foi desde que eu me dou por gente, mano. Que é tipo assim, quando eu fui descobrindo as coisas que eu me identificava, que não eram do senso comum, a primeira coisa foi a capoeira. Porque a Samanta mais velha fazia capoeira lá na quebrada, lá no Taboão. E aí ela me levava. Eu só tinha medo dos golpes, porque eu sempre apanhava muito. Via os caras dar cambalhota, várias pernadas. E eu era sempre o menor. Eu sempre fui o menor em tudo que eu faço. Até na coisa de física mesmo, de estatura, altura. Tipo, eu jogo basquete. Eu tenho 1,75 (rindo). Quanto de idade. Então, geralmente, eu estou muito acostumado a ser o mais novo dos rolês. E na capoeira era essa relação. Então, eu sempre ficava miudinho no meu canto, assim. Mas quando eu descobri a capoeira, nossa, pra mim foi um rolê de... assim, um universo. O som do berimbau. O atabaque. Tipo, eu era moleque e eu ficava muito vislumbrado. Eu lembro que eu tinha 4 pra 5 anos, assim. E aí a Samanta treinava, eu ficava de cantinho, batendo palma (batendo palma). Ainda treinava, fazia uma coisinha ali, um joguinho de perna. Mas não tinha coordenação motora ainda, né? Mas eu gostava muito. E aí eu lembro que depois, quando eu fiz uns 6 anos, a Samanta parou de ir pra capoeira. Porque a Samanta de nós... Não, mentira. A Dandara também é super aplicada. Eu sou mais preguiçoso dos três. A Samanta começou a trampar muito cedo, correr atrás de dinheiro já. Eu lembro que ela fazia uns trampos de babá, cuidava de uns moleques na vizinhança. Então ela optou por sair da capoeira e começar a trabalhar, nesse corre de babá mesmo. E aí, tipo assim, ficou um limbo na minha vida. Eu fiquei muito tempo assim, pô, capoeira... E nunca mais. Nunca mais. Até hoje eu não treino. A Dandara tá treinando. Aminha mãe... Inclusive, o dia que a minha mãe passou mal, antes de falecer, ela tava num treinando de capoeira. Mas... a minha primeira comunicação com a cultura tradicional foi a capoeira. Antes de entender o que era cultura tradicional, né? Que aí depois eu fui buscar entender. Aí mesmo, pra voltar nesse start, foi com tipo 12 anos de idade quando eu conheci o Grupo Candearte, no Sarau do Binho, que era um grupo que brincava bumba meu boi, ciranda e coco. O grupo do Geraldo Magela, o mestre Geraldo Magela. Que acho inclusive é uma indicação de entrevista pra cá também. É... E aí... pô, demorei acho que uns dois anos ainda pra entrar no Candearte, mas eu ficava sempre muito ansioso pelas apresentações dele, quando tinha no Sarau do Binho, ou na casa do Magela, antes que a sede do grupo Candearte, né? A antiga sede era na casa do Magela mesmo. Que aí tinha o bumba meu boi, tinha o coco e a ciranda. Eu ficava, tipo, muito animado, assim. E aí foi ali, foi naquele lugar que me deu o start, assim. De... entender esse universo da cultura tradicional, que é muito, muito, muito, muito grande, né? Às vezes a gente conhece uma coisa e se reduz àquilo, né? E fica só ali. Ai, é só o samba de roda. Pô, é só a capoeira. Sendo que, né, na nossa cultura, graças a Deus, são dois complementos. São duas coisas totalmente diferentes que sempre caminham juntas, né? É... E aí eu descobri o samba de coco, que foi o meu primeiro interesse. Aí fui no bumba meu boi, aí fui na ciranda. Aí um dia apareceu uma oportunidade pra eu estudar no Instituto Brincante. Que aí foi a minha primeira formação artística pedagógica. E aí lá a gente se aprofundou em várias matrizes, assim, da cultura tradicional, do tambor de crioula ao samba de parelha. Ao coco de roda, ao coco rural, ao... Ai, meu Deus. Fui embora. Fui embora. E aí fiquei viciado, assim. E hoje eu me considero... Não tenho essa formação acadêmica, mas eu me considero um etnomusicólogo. Porque o meu prazer maior do mundo é sentar e ouvir um mestre falar sobre a brincadeira dele, sobre a tradição específica dele. E ter esse respeito. Porque o coco que se toca no bairro do Amaro Branco, lá em Recife, não é o mesmo coco que se toca na comunidade da Xambá. A gente precisa entender essa diferença e onde que elas estão. E quando a gente for reproduzir, que aqui em São Paulo é o que a gente faz, infelizmente, a gente precisa saber o que está reproduzindo. Acho que tudo bem você chegar numa roda livre, igual o coco da batata, que é um rolê que a gente puxa, e aí o mano vai puxar um toque de pandeiro, que é do coco do Amaro Branco, mas o meu amigo só sabe tocar o bombo da Xambá. Não, então, firmeza. A gente está numa roda livre. Mas aí é explicar. Vamos trocar essa figurinha. Você sabe que você está tocando o coco do Amaro Branco? Você sabe que isso é coco de praia? Você sabe que isso aqui é coco da Xambá? Você sabe que é um coco juremado? Você sabe que o coco é um ritmo do sagrado, também da jurema sagrada, que é o ritmo de encantado? Que os encantados vêm pra brincar coco e que o bagulho é muito louco? (rindo) Meu Deus, Axé. A gente precisa saber dessas coisas. Eu me considero etnomusicólogo porque eu me interesso por esse universo especificamente. E vou atrás desse saber. Ainda quero fazer essa faculdade. Não sei se de etnomusicologia ou de antropologia, mas é pra dar destaque pra essas pessoas, trazer esses saberes pra universidades. Já sei que tem outros irmãos e irmãs que já fazem esse trampo, mas eu quero ser mais uma pessoa, tá ligado? Pra trazer esse reconhecimento. É... esse conhecimento que é quilombola, que é rural, que é ancestral, que é periférico, que é de favela, que é de gente em preto, indígena, afro-indígena, que são de mulheres, de sociedade de mulheres, mães, avós, filhas, né? Que mantém esse rolê vivo há muito, muito, muito, muito tempo e que não é uma parada pra show. São coisas que não cabem no palco, a gente tem que fazer no chão, que é o lugar do pé no chão. É o lugar onde o artista pisa no mesmo chão que você. Te olha nos olhos, tá ligado? Vai cantar e voar perdigoto na sua cara e não tem problema, tá ligado? Porque ele tá do seu lado, tá? Aconchegado. Esse é o meu lugar de artista, esse é o artista que eu sou, o artista do pé no chão, do círculo, da roda. Aí eu me vejo enquanto artista.
P/1 - Você falou um pouco sobre que a sua irmã foi buscar, saiu do da capoeira pra buscar um trabalho, né? Não necessariamente nessa ordem, mas…
R - Ela sempre fez isso. (risos)
P/1 - Você teve esse momento do primeiro trabalho que você falou, nossa, agora eu vou ter que seguir o que me dizem pra seguir, vou ter que buscar um trabalho?
R - É, eu tive alguns trabalhos assim, mas nunca foi muito bem remunerado, eu tive trabalhos voluntários. A minha mãe trabalhava na Ocas, aí na sede da Ocas eles abriram uma biblioteca comunitária.
P/1 - Na Oca do Ibirapuera?
R - Na Ocas, revista Ocas.
P/1 - Ah, sim.
R - Esse foi o meu primeiro trampo, só que eu só recebi o dinheiro da passagem e alimentação. Mas pra mim era um emprego, então eu ficava lá o dia inteiro limpando o livro, etiquetando, catalogando, e eu gostava, porque eu tava no meio dos livros, né? No meio da literatura, então ali pra mim a biblioteca não tinha muitos usuários, eu fiquei pouquíssimo tempo, acho que uns cinco meses, talvez nem isso. Mas enquanto eu tive essa vivência de estar com os livros, ali não era muito organizado, então eu não conseguia organizar tão bem, e era muito livro mesmo, eles recebiam duas caixas de doação semanal, então quando você achava que tinha organizado alguma coisa, aparecia mais livro. (rindo) Eram às vezes uns livros super desatualizados, então tinha muita coisa que tinha que jogar fora, às vezes eu ficava com dó. Mas esse foi tipo o meu primeiro trampo de função, bibliotecário comunitário. Gostei demais dessa função, e eu atrelava isso ao treino de basquete, que eu joguei federado alguns anos da minha vida. E aí isso também foi meu primeiro emprego, tipo atleta, de você ser remunerado, também, miseravelmente remunerado, mas pelo menos era uma coisa que eu gostava, que movimentava pra minha vida, apesar de eu sempre ter esse lugar de, pô, eu sou artista, eu sou boêmio, ou eu sou atleta? E aí entrava uma crise, tipo, ai meu Deus, pra onde que eu vou? E aí nunca consegui equilibrar a vida de atleta, de boêmio, profissionalmente, mas eu fui até onde deu, com a coisa de atleta.
P/1 - (risadas) E deixou de ser atleta?
R - Profissionalmente sim, porque não tem como, mas tô num timinho, tô num time aí, um time aí, underground, basquetebol, um time lá de Embu das Artes, uns parceiros de racha, assim, depois de muito tempo me chamaram pra jogar, a gente tá disputando o campeonato agora, tô bem feliz, a gente tá em segundo colocado na nossa chave, é um time muito potente, com jovens muito bons, com veteranos muito bons, e a gente tá com uma sintonia legal, sempre muda, é um time que tem umas 40 pessoas. Aí pra cada campeonato específico eles chamam um grupo específico, mas tem uma sintonia muito massa, assim, é tudo muito da hora, a gente tá conseguindo ganhar, aí eu tô me destacando enquanto jogador mediano, tô feliz, jogando meu basquetinho que eu sempre gostei de jogar, de uniforme, com arbitragem. Não faço academia, não faço nada, eu pedalo e jogo basquete, é esse meu, ali, pra manter o corpo saudável, ali, correndo, eu dou uma suada, é isso que eu faço.
P/1 - Você se alimenta com saúde, e fé? (risos)
R - É, eu já fui mais saudável nessa parte de alimentação, mas estando empregado agora, né, trabalhando, assim, de carteira na rua, não é todo dia que dá pra comer bem. Aí, às vezes, a gente pega aquele salgadão, ali, aquele hamburgão maravilhoso, eu adoro, eu me amarro, sei que não faz bem, mas é o que tem pra hoje.
P/1 - E você mora com quem hoje?
R - Eu moro com a Dandara, eu e a Dandara e as plantas.
P/1 - Aonde você mora?
R - Oi?
P/1 - Aonde vocês moram?
R - A gente mora em Taboão da Serra, ainda, ainda, ainda, por enquanto.
P/1 - E as plantas são vindas, herdadas ou cuidadas?
R - Poxa, que herdada, nossa, tem poucas que são herdadas, acho que tem um bambu, tem um bambu, tem um peixinho, tem poucas, mas aí, depois que a minha mãe faleceu, eu fui pegando mais, assim, e fiquei meio viciado. Elas não estão tão bem cuidadas, assim, você vai falar, ah, minha casa é um jardim, verdejante, maravilhoso, tem umas que estão secas, vira e mexe alguma outra, morre, já morreu alecrim umas três vezes, eu desisti de plantar alecrim, desisti de plantar manjericão, porque eles são muito delicados, e aí, eu, na minha vida de boêmio, de querer sair quarta-feira de casa e voltar no domingo…
P/1 - Não tem planta que resista. (risos)
R - Por isso que eu estou na hora de plantar cacto agora (risos).
P/1 - Mas alecrim é bom, traz energias boas, limpa o ambiente.
R - É bom, é bom, eu sempre compro fresco, assim, em casa, mas plantar mesmo no bichinho, na minha mão, não aguenta. E a minha casa é muito apertada, então, não tem onde pôr planta, meu Deus, não tem, não tem mais, assim, eu estou muito triste por isso, porque eu queria que tivesse mais lugares, mas não bate mais, não bate mais lugares, mas não bate mais sol também. Aí tem toda a energia da minha mãe ter morrido lá dentro, ainda pra mim é um lugar muito triste de estar, que eu ainda não consegui mudar de lá, porque eu não estou no cacife, por enquanto, então, eu também não quero mais ficar levando tanta energia de renovação pra lá. Eu quero levar energia de renovação pra outro lugar, né, porque aí renova de uma vez, não estagna. Mas...Tenho bastante coisa lá, inclusive, uma das imagens que eu trouxe é uma planta que o Jonas me deu, pra mostrar que cresceu, essa tá bem cuidada. (risos)
P/1 - Legal. E faz quantos anos que a sua mãe partiu?
R - 2019, quatro.
P/1 - Recente.
R - Recente, mês que vem faz quatro anos, dia 11.
P/1 - E como foi esse pré-pandemia pra você, olhando hoje, né, depois, e esse processo todo?
R - Ah, pode parecer frio da minha parte, mas uma das coisas que hoje em dia eu mais agradeço aos orixás é da minha mãe ter falecido antes da pandemia. Porque eu acho que se tivesse sido nesse processo pandêmico, perder minha mãe pra Covid, com todo o rolê que eu passei em 2020, de não ter perspectiva de trampo, emprego, futuro, porque eu lembro que quando a pandemia começou, eu tinha uma viagem marcada pra BH, pra Salvador. É... Nossa, eu tinha tanta coisa pra fazer. Tipo assim, a gente tava em novembro, e eu já tinha uma agenda até maio, de trampo com arte. E aí, tipo assim, o meu último rolê foi o navio pirata no carnaval, pulamos no Baiana System, no sábado, e tipo assim, na segunda era lockdown. E a gente tipo assim, como assim lockdown? Não, mas peraí, segunda tem um negócio pra mim fazer, tá rolando pra mim. Acabei de perder 600 reais, o trampo nem começou e eu já perdi. Então assim, foi um momento de desespero muito, muito, muito grande. Muito grande. Que pra mim, ele foi grande, mas eu acho que se fosse com a minha mãe, seria muito maior o desespero dela, tá ligado? E tipo, nossa, perder a minha mãe pra Covid, então, meu Deus, no meio de tudo aquilo ali, ia ser muito, muito, muito, muito... Eu acho que eu não estaria aqui hoje se eu estivesse, eu não ia estar bem da cabeça. Não que eu esteja 100%, ninguém tá, né? Mas... ah, foi difícil, mas deu pra passar. Deu pra passar. Candomblé me ajudou muito nesse sentido também.
P/1 - E como você, antes da pandemia, você vivia como? Você trabalhava em relação à arte, com o quê?
R - Ah, eu tava mais esporádico fazendo, tava em alguns coletivos, né? Que eu sempre tô, tô no... a gente tá com o Jongo, vai fazer... daqui a pouco faz 10 anos, ano que vem. São 9 anos de Jongo. Que nunca deu muita grana, mas vira e mexe dava um cachezinho ali, que dava pra...como eu era...Tinha minha mãe como suporte, eu ganhava 300 reais, eu tava uh! Pagava ali uma conta de água, de luz, e o resto do dinheiro eu bebia. Dava rolê. É... aí, com o coco, a mesma coisa. Alguns saraus davam uma remuneração ali, na semana. Então, eu sobrevivia com muito pouco, assim. Porque tava, tipo, na asa da minha mãe, né? Mas... é isso, era o que dava, era o que tinha. Eu nunca reclamei, não. E era bem econômico, era mais barato fazer rolê. Que você comprava um corote e uma paranga, e você ficava a noite toda, tranquilo, assim. Hoje em dia, no more.
P/1 - No more. E, depois da partida dela, como foi esse lugar do trabalho pra você?
R - Primeiro, eu fiquei meio surpreso, assim. De entender. Acho que foi quando a minha mãe morreu que eu entendi a grandeza dela. É... Esses dias eu fui lá no cemitério, né? Porque teve a perda da companheira do meu pai. E aí, a gente... Eu fiquei lembrando, assim, andando no cemitério, lembrando o dia do funeral dela. É, então, foram 200 pessoas no funeral dela, assim. 40 capoeira, 40 berimbau, ressoando assim junto. Cantando em homenagem à minha mãe, assim. Eu não tava bem, né? Mas eu lembro que eu vi as pessoas, assim. E eu falava, nossa, todas essas pessoas estão aqui pela minha mãe, pela partida dela, assim. É... acho que foi esse dia que eu vi a grandeza dela. Mas só quando a gente perde que a gente vê, né? Mas... foi muito louco, assim. Porque nesse lugar, muitas coisas começaram a aparecer pra mim. Da mesma forma que aparecem hoje. Porque, tipo, você é o filho da Tula, né? Vem aqui falar um pouco pra gente da sua mãe. Vem aqui manter o seu legado. Olha os livros dela aí. Que a gente ainda tá tentando lutar com esses livros. Tem bastante livro dela em casa. A gente já conseguiu vender bastante, fazer vários circularem ainda. Sim, tem bastante. A gente tinha muitos planos de vender vários livros, inclusive, dessa agenda de maio. Vários livros que estavam lá eram pra vender. Pra serem vendidos na pandemia. E, tipo, não rolou. Foi tudo cancelado. A gente conseguiu fazer o lançamento do livro na Flip, que foi muito massa. É, o trampo que saiu agora com a gravação do "Diário de Bitita", do disco da Carolina Maria de Jesus, que a Ester convidou pra fazer. Pô, gravei com a Nega Duda, mano. Isso está no meu currículo, gente. Um sonho. Que eu acho que é isso. Eu sou artista de pé no chão. Esses são os meus ídolos, minhas ídolas. E aí... era pra mim ser a minha mãe nesse trampo. Dandara também ganhou várias oportunidades. Foi atuar no Sesc Ipiranga, com as Clarianas, dentro dessa pesquisa da Carolina Maria de Jesus. Então, mesmo a minha mãe não estar no presente. Ela sempre deu suporte pra gente. E eu acho que é isso. Estar aqui hoje é uma continuação disso. É mais ela do que eu aqui (risos).
P/1 - São vocês dois.
R - Axé.
P/1 - E aí chegou março de 2020. Acabou o Navio Pirata, segunda-feira, lockdown. Como foi o seu processo desse ano assim, de 2020? Você lembra um pouco?
R - (suspiro) Eu lembro que no começo da pandemia, a gente tinha uma estrutura né, já tinha trabalhado, tinha um dinheiro guardado. Então, o desespero não foi tanto. Eu lembro que eu dormi muito. Eu falei, mano, é pandemia, é lockdown, tem que ficar preso, tem que ficar guardado. O que eu vou fazer? Eu vou dormir. Quando eu não estava dormindo, eu estava comendo, estava cozinhando. Foi esses primeiros março, abril, maio, junho, julho. Não era uma pessoa que eu tinha muita intimidade. Não foi um grande amigo, não foi um grande conhecido. Nem... morro de medo de alguém falar que eu usei a imagem do cara, para me crescer de alguma forma. Mas o bagulho que me marcou na pandemia foi quando o Demetrio se suicidou, que era um jovem homem preto trans. Puta! Ali a pandemia me derrubou, mano. Ali eu falei, mano, se eu não fizer nada da minha vida agora eu vou ser o próximo porque... cai num buraco muito profundo no dia que eu vi aquele menino tão lindo, tão jovem, tão talentoso, acabou do jeito que ele acabou assim... E vendo vários outros amigos passando pelo mesmo processo emocional, e todo mundo tipo assim sem saber o que fazer, sem conseguir sair do lugar, sem conseguir trampo. Aí, meu lockdown acabou, eu fui jogar basquete. E aí...falei, mano, não consigo trampar, não consigo dar rolê, não consigo namorar, o que eu vou fazer? Eu vou ficar aqui chorando, vou ficar no escuro até quanto tempo? E aí eu pegava as quadras que estavam isoladas e fechadas, e ia treinar arremesso. Foi o que consegui fazer para ter sobriedade. A Dandara também falou, “ai meu Deus, eu tô engordando”, vamos fazer exercício, (risos) vamos parar de comer. E aí... E a gente foi cada um sentindo o processo um do outro, principalmente a gente do Jongo... o Sol, a Colibri, o Natan. Colibri e Natan, hoje a gente já não é mais tão amigo tá ligado. Não estamos tão íntimos, a pandemia, as tensões pandémicas também causaram afastamentos. Lamentavelmente, admito. Fui um vacilão com com meus amigues. É… mas foram pessoas que me ajudaram a manter sobriedade, manter a saúde mental, porque a gente deu muito rolê. Deu muito rolê. A gente saiu junto em 2020 todo. A gente ia para a festa, fazia a festa em casa, jantava todo mundo, a gente ia para a casa 3, 4 dias comendo o dia inteiro, fumando, trocando ideias, vendo filme. E foram essas pessoas que me ajudaram a sobreviver assim, passar esse processo pandêmico, assim unidos. A gente conseguiu fazer live de Jongo e ser remunerado, ainda conseguimos um courinho de rato ali. Cada um no seu corre. O Sol é educador social. Era, né? Agora ele saiu do CCA. A Colibri também tinha os arrimo dela, tava com a mãe também né, nesse privilégio de estar com a mãe. O Nathan também, tem a família dele, e eu estava meio que o órfão assim, e essas foram as minhas babás, foi a galera que cuidou de mim. A Geisa também, a Gabi, minhas amigas. Foi muito importante. Foram essas pessoas que me tiraram do buraco nessa hora, de estar perdido mesmo, de estar depressivo, deprimido, desacreditado de tudo, sem perspectiva de futuro. Essas pessoas, até hoje, mesmo elas estando longe de mim, são meu eixo. (mostra a corrente no pescoço) Isso é um presente do Nathan. Ele não quer me ver nem pintado de ouro, mas eu uso todo dia. E ele está comigo. E é meu amigo. E eu fui muito vacilão com ele, muito escroto mesmo. Eu preciso admitir, fui eu que errei. Mas é isso. (respira fundo) Eu vivo com o meu erro. E as consequências dele.
P/1 - E a possível melhora deles.
R - É... exatamente, né? Aprender a lição.
P/2 - Nesse período de 2020, 2021, e 2022 também, que teve a pandemia ferrada. Que a gente passou. Você conseguiu tirar algum aprendizado? Seja no âmbito pessoal ou profissional.
R - No âmbito pessoal, eu aprendi que quando eu estou triste, magoado, eu magoo outras pessoas. Porque... nesse ano de 2020, eu comecei um relacionamento. E foi um relacionamento extremamente conturbado. Que acabou no final do ano passado. Porque eu quis terminar, porque eu já não aguentava mais. Sofre por umas paradas desnecessárias. Um relacionamento interracial. Enfim. Gay. E aí... Eu falei, não. Não, não dá não. Deixa quieto. Eu não preciso passar pelo que eu estou passando. Ainda estou sofrendo porque eu gosto da pessoa. Mas não preciso passar pelo que eu passei. Não preciso. Não vou. Não vou me permitir estar nesse lugar. Principalmente dentro dessa questão racializada. Porque a gente se permite. E isso, eu acredito que é um rolê da colonização do nosso subconsciente, o tempo todo agindo pra gente se submeter aos bagulhos que não é pra nós. Não é possível, velho. Então eu falei... dei um time. Mas nesse ano de 2020, quando eu fiz essa cagada toda com esses meus amigos, eles estavam me acolhendo de novo. Porque eu estava super magoado. A gente tinha tretado, tinha terminado. Já tinha uns meses. E aí eu fui fazendo um vacilo atrás do outro. Assim, na brisa da auto-sabotagem. Até que atingiu esses amigos, sabe? E aí eu aprendi que quando eu não tô bem, quem tá do meu lado não fica bem também. Então por isso que eu prefiro ficar no buraco sozinho. Me afasto. Aí eu vou procurando a luz. Até encontrar. Até eu falar, não. Agora eu posso socializar. Porque eu acabo ferindo as pessoas mesmo. Tipo, não é um rolê da maldade, sabe? É tipo, subconsciente. Então também tô tratando isso, né? Ainda não consegui achar uma terapia psicológica aí. Mas tô nessa busca. Mas isso foi um auto-aprendizado importante. Assim, hoje em dia eu tenho me observado mais. Nesses períodos de tristeza mesmo, né? Que a gente passa bastante. Como o meu término tá recente, eu tô bem entristecido. Então eu também tenho evitado dar tanto rol... essa coisa mais afetiva e sexual. No começo do término eu tava meio desesperado. Eu não preciso arrumar alguém. Preciso ficar com alguém. Preciso de um afeto diferente. Não, preciso não. Preciso de mim saudável. Sóbrio, lúcido e com dinheiro. Preciso trabalhar. (rindo) É isso que eu preciso.
P/1 - E aí, como foi estar com a sua irmã dentro de casa e ela também com as necessidades dela e compartilhar isso no coletivo? Como foi?
R - Acho que aí é uma entrevista de duas horas. Só mais, só mais. Outra entrevista, assim. Eu acho que pra ela a entrevista ia ser de quatro, de seis. Um dia de entrevista. Eu acho que entre eu e a Dandara, eu acho que eu sou a pessoa mais difícil. Porque eu tenho a coisa do taurino, né? O taurino que é teimoso, o taurino que é preguiçoso, o taurino que é comilão. Mas, é... nesse período de desesperança de vida também, e eu sempre falo isso, o meu principal motivo de vida pra estar vivo hoje é a Dandara. É esse cuidado com ela. Porque quando eu... Eu falei pra ela, eu falei, mana, você tem opções. Você pode morar com a Samanta, que é sua irmã mais velha, que já tem um apartamento comprado, que tem um quarto lá pra você, tá ligada? Porque eu e a Samanta a gente se ama, mas a Samanta é de escorpião, eu sou de touro. Então, isso é uma união que é interessante, mas ela é limitada. E quando ela chega no limite, o bagulho fica louco. A Samanta e a minha mãe já eram assim, tanto que a Samanta saiu de casa antes de tudo. É... então, eu falei: eu não vou morar com a Samanta. Por mais que o bagulho esteja louco aqui, eu prefiro me ferrar com o aluguel agora, e depois a gente se estrutura e vai pra um lugar melhor, que é o que a gente tá tentando fazer agora. Mas é isso, é... como eu sei que a Dandara tá crescendo, que ela é um mulherão com uma superpotência, com super possibilidades de vida, eu tô falando pra ela. Faz o seu corre, estuda, se forma. Quando você estiver com o trampo da hora, a gente muda. Porque aí a gente racha o aluguel, a gente racha as contas, você também vai ter suas responsabilidades de vida, né? E a gente não vai deixar de estar junto, porque a gente é família, a não ser que você não queira mais. Aí você pode ir embora, que você já vai ser independente. Mas é... o meu motivo de vida, assim, é isso, é ver a Dandara lúcida, é ver a Dandara gordinha, bem-educada, bem-criada agora que ela tá estudando. Eu não me importo muito de ter que, sei lá, trampar mais dois anos, pra esperar ela se formar, pra depois a gente conseguir sair daquela casa infernal, mas eu quero que ela esteja formada, que ela esteja estrutura, e no mesmo pensamento que a minha mãe tinha, se Deus me livre em algum momento e eu não estiver aqui, você não vai ficar perdida, você vai saber o que fazer, vai seguir sozinha, tranquila. Então eu tô nesse trabalho de dar essa continuidade nessa criação da Dandara. Essa é a minha missão de vida nesse momento. Depois que ela estiver grande, eu vou sair vazado. Assim, quando ela falar, mano, tô com emprego, eu vou esperar ela ficar uns seis meses trabalhando, quando ela estiver estabelecida eu vou falar, amiga, beijo, partiu, sério, eu vou sair de São Paulo, preciso. Porque eu nunca saí da cidade, pra mim é um rolê dentro dessa formação, dessa cultura tradicional que eu quero, então eu quero conhecer os confins do Nordeste, mesmo com todo o coronelismo desse país. Que é um rolê que eu tenho muito medo, né? A situação das comunidades quilombolas não tá fácil. (suspira)
P/1 - Nunca foi fácil, né?
R - Mas agora, com Bolsonaro e Monsanto, né, gente? Meu Deus. Enfim... e é isso, assim, meu eixo é ela. Então, sempre foi ela, tava em casa, cozinhava muito, porque a Dandara tava em casa, então a gente comia muito, a gente viu muito filme, viu muita série, ela estudou mais. E aí, quando eu também dei esse... tipo meio que toquei esse foda-se, pra pandemia, ela também olhou e falou... Ela ainda ficou mais em casa, nos come... no começo, assim, ela ficou mais em casa. Mas eu fiquei rolezeiro total, assim, um pouco inconsequente, porque eu poderia ter contraído o vírus da Covid, todos nós, né, esse bom de todo que eu falei. Ninguém nunca pegou Covid. Em situação nenhuma. Não sei a colibri, eu não sei da colibri, mas tipo, de nós, assim, do jongo, ninguém pegou Covid até hoje, assim. Com tudo que a gente fez, e saía pra namorar, ia pra baile, ia pra não sei aonde, tudo clandestino. E a gente foi com fé no Orixá, com saúde, e graças a Deus a gente foi, porque eu acho que se não tava todo mundo no hospício agora. É... e é isso, assim, meu eixo é ela. Então, foi tipo... ah, dois adolescentes em casa. A gente nunca foi de se torturar, a gente nunca foi de se desrespeitar, a gente nunca se odiou, a gente tem muitas discordâncias, muitas, mas a gente sempre respeitou a opinião um do outro, sempre entendeu onde que cada um tá certo, onde que cada um tá errado, e a gente se abre e fala, olha, mas você não acha que seu ponto de vista aqui, talvez... Porque a Dandara também, ela é muito madura pra certas discussões, pra algumas coisas, apesar dela ter os 17 aninhos dela, né, aparenta uma maturidade que ela não tem, mas ela aparenta muito bem. Então ela sempre…
P/1 - Mulher negra.
R - É, sempre mostra pontos de vista muito contundentes, que é sempre muito legal, então a gente, mano, conversava muito, a gente sempre falou sobre tudo, sobre drogas, sobre sexo, sobre família, sobre afetividade, relacionamento preto, relacionamento interracial, relacionamento hétero, relacionamento lésbico, relacionamento homossexual... e aí é isso, assim, são dois falastrões juntos, eu e ela, tem dia que a gente não se olha, ela fica deitada na cama dela, a gente divide mesmo o quarto. Tem dia que ela fica deitada na cama dela, eu fico deitado na minha cama, ela vê a série dela, eu vejo a minha série, tá tudo certo, e tem dia que a gente, mano, faz a casa pegar fogo, assim, e aí é o dia da faxina, e aí é lavar roupa, e aí é fazer comida, e aí é cuidar das plantas, e aí é limpar, e aí é acontecer, e aí é isso, equilíbrio de família. Mas a gente é uma família muito equilibrada, nunca aconteceu algo super drástico, eu já tive meus períodos de mais novo, de dar uns tapas na Dandara, meu Deus, mas é isso, hoje em dia eu falo, gata, você é uma mulher, entendeu, faz seu corre aí, você tá errada, você sabe que você tá errada, e a consequência do seu erro você vai ver por si mesma, não preciso te agredir, não preciso fazer nada, você já é grande.
P/1 - (riso) E... a dandara, ela tá na escola?
R - Não, ela terminou no ano passado, concluiu o ensino médio, bolsista, numa escola particular, bem feliz, estamos todes. Foi um desses trampos pós falecimento da Tula, que a gente foi no dia da consciência negra, fazer uma fala sobre consciência negra numa escola de boys, aí descobriu que a Dandara tinha a idade do ensino médio, e falou, vem estudar aqui com a gente vem ser nossa bolsista. Aí eu relutei bastante, eu falei, olha, se eu fosse você, eu não ia, porque, enfim, depois pra fazer ENEM, fazer essas coisas, vai ter que pagar, taxa de inscrição, mas o ensino é melhor. Aí ela já tava fazendo outras coisas, ela tava estudando balé, ela tava fazendo várias paradas de estudo, além da escola, falei: “você vai se sobrecarregar, e aí depois você vai falar que não aguenta, vai querer desistir, vai ficar triste, vai ficar chateada, e aí eu que vou ter que ficar te adulando, você sabe”. E foi exatamente o que aconteceu…
P/1 - Mas que bom que você estava lá
R- Ela largou o balé, no fim das contas, mas ela terminou o ensino médio, falei, agora é isso, né? Exterminou a escola, e voa.
P/1 - E ela tem pretensão de fazer faculdade ou algo assim?
R - Temos, ela tem, eu também tenho, apesar de estar nesse lugar sofrido, meu Deus. Esse ano vou tentar voltar pro cursinho, vou tentar não, estou tentando. A aula inaugural do cursinho é semana que vem, e eu tenho uma viagem de trampo marcada, e aí é isso, amanhã tem que…
P/1 - Conciliar.
R - É.
P/1 - A vida é um pouco disso. Infelizmente.
R - Uhum.
P/1 - E aí foi abrindo os portais da pandemia, fora os que já existiam, né? Mas aqueles pré-estabelecidos, né? Tipo, parece que está acabando. Vacina. Teve alguma coisa muito marcante nesse processo? Desde trabalho e encontros de pessoas ou desencontros?
R - Essa desfeita de amizades, assim, esse afastamento, foi uma coisa que me marcou muito. Que me entristece muito até hoje. Porque são pessoas que eu tenho um carinho muito grande, mesmo estando afastadas. Mesmo entendendo que... eu tive os meus erros e que tiveram outros erros que não foram meus. E que eles se estendem aí até hoje, como consequências de várias coisas que eu não sei se estão atreladas ao futuro, que eu não sei se estão atreladas à saúde mental, uma questão mais afetiva que não foi bem comunicada. Mas esses afastamentos foram algo que me marcaram muito. Eu sempre fiquei muito triste. Várias perdas, né? Pessoas muito próximas. Tanto pessoas que já tinham uma idade mais avançada, mas principalmente os amigos muito jovens e pretos. Os que foram pela Covid, os que não foram. Os que foram pelo suicídio. Então essas perdas também...Sinto que muito dessas pessoas… Sinto que muito de mim ficou nessas perdas lá atrás. Que é algo que eu não consigo resgatar. E consegui arrumar meu primeiro tempo de carteira registrada em 2021. Trabalhando no CAPS, que é onde eu estou hoje. Centro de Atenção Psicossocial Adulto 2, de Perus. Não é um trampo fácil, mas não é um trampo difícil. Mas não é algo que eu me identifique que eu queira seguir na minha vida. Tipo assim, vou ser psicólogo a partir daqui. Assistente social. Ou quero super trabalhar a saúde mental dentro da instituição cultura. Não. Eu acho que me abre um start para esse trabalho, para essa atenção psicossocial, para a população periférica preta LGBT. Mas não dentro da estrutura institucional. Acho que isso não fortalece a gente em nada. Acho que eles têm um papel deles que é muito importante. Principalmente dentro da questão medicamentosa, porque esses medicamentos são caros. Esses tratamentos psicossociais são muito caros. E que bom que o CAPS existe. Vive o SUS. Mas o meu lugar enquanto profissional de arte e cultura e abrindo possibilidades para uma saúde mental é outro. Ainda estou descobrindo…
P/1 - Uhum… E o que você vê de importante, para além de legado, né? Que eu acho que tem muito a ver também com esse processo. Mas o que você quer deixar para os próximos? Para os próximos mesmo. A Dandara, seu irmão, futuras crianças que virão.
R - Ai, o tambor, quero deixar tambor…
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