Memorias da pedreira
Naquele tempo, a vida da nossa família pulsava ao ritmo das pedras. Papai tinha duas pedreiras: uma de dolomita, que vendia para a Magnesita, e outra de calçadão, onde o barulho metálico do triturador nunca parava. Era ali que as pedras, arrancadas com suor e dinamite, entravam brutas e saíam britas, em todos os tamanhos possíveis, como se a montanha se rendesse aos poucos, transformando-se em caminhos, casas e construções.
Lembro-me bem de um episódio que ficou gravado em minha memória como uma dessas histórias que parecem até lenda de família. Na pedreira, havia um compressor enorme, valioso, quase majestoso, que fornecia ar para os perfuradores. Era ele que dava fôlego às brocas que abriam espaço para a dinamite — e, assim, a pedra da montanha podia ser vencida. Aquele compressor ficava sempre de lado, imponente, como um guardião silencioso. Mas um dia, numa explosão mal calculada, uma pedra colossal voou pelo ar e caiu justamente sobre ele, esmagando o gigante de ferro como se fosse nada. Restou apenas um amontoado retorcido.
A perda foi imensa, mas papai não se abatia fácil. Logo decidiu comprar outro compressor, desta vez importado dos Estados Unidos, algo moderno, diferente de tudo o que tínhamos visto até então. Era um equipamento monumental, assentado sobre uma base de concreto, com doze pistões reluzentes que trabalhavam em harmonia. Quando ligávamos o motor elétrico, víamos os cilindros ganhando vida pouco a pouco, cada válvula fechando no seu tempo certo, até que a máquina começava a fabricar ar como se respirasse junto com a pedreira.
Mas havia um problema. Sempre que chegávamos ao terceiro cilindro, o motor simplesmente desarmava, como se uma mão invisível o desligasse. Tentamos de tudo. Papai chamou a assistência técnica da empresa que nos vendera a máquina. O técnico passou o dia inteiro examinando cada detalhe, mas no fim, com o rosto cansado, confessou que não descobrira o...
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Naquele tempo, a vida da nossa família pulsava ao ritmo das pedras. Papai tinha duas pedreiras: uma de dolomita, que vendia para a Magnesita, e outra de calçadão, onde o barulho metálico do triturador nunca parava. Era ali que as pedras, arrancadas com suor e dinamite, entravam brutas e saíam britas, em todos os tamanhos possíveis, como se a montanha se rendesse aos poucos, transformando-se em caminhos, casas e construções.
Lembro-me bem de um episódio que ficou gravado em minha memória como uma dessas histórias que parecem até lenda de família. Na pedreira, havia um compressor enorme, valioso, quase majestoso, que fornecia ar para os perfuradores. Era ele que dava fôlego às brocas que abriam espaço para a dinamite — e, assim, a pedra da montanha podia ser vencida. Aquele compressor ficava sempre de lado, imponente, como um guardião silencioso. Mas um dia, numa explosão mal calculada, uma pedra colossal voou pelo ar e caiu justamente sobre ele, esmagando o gigante de ferro como se fosse nada. Restou apenas um amontoado retorcido.
A perda foi imensa, mas papai não se abatia fácil. Logo decidiu comprar outro compressor, desta vez importado dos Estados Unidos, algo moderno, diferente de tudo o que tínhamos visto até então. Era um equipamento monumental, assentado sobre uma base de concreto, com doze pistões reluzentes que trabalhavam em harmonia. Quando ligávamos o motor elétrico, víamos os cilindros ganhando vida pouco a pouco, cada válvula fechando no seu tempo certo, até que a máquina começava a fabricar ar como se respirasse junto com a pedreira.
Mas havia um problema. Sempre que chegávamos ao terceiro cilindro, o motor simplesmente desarmava, como se uma mão invisível o desligasse. Tentamos de tudo. Papai chamou a assistência técnica da empresa que nos vendera a máquina. O técnico passou o dia inteiro examinando cada detalhe, mas no fim, com o rosto cansado, confessou que não descobrira o mistério. Foi então que decidiram enviar, diretamente dos Estados Unidos, um especialista para resolver.
Coube a mim ir buscá-lo no aeroporto. Nunca vou esquecer aquele dia. O estrangeiro desembarcou com sua mala discreta e um olhar firme, mas curioso, como quem está entrando numa aventura. Levei-o até a pedreira, e ao chegarmos, ele pediu que eu ligasse o compressor. Fiz como de costume: primeiro cilindro, segundo cilindro... e, no terceiro, o motor se entregou outra vez.
O homem então enfiou a mão no bolso e tirou algo inesperado: uma régua simples, dessas que qualquer um poderia carregar. Aproximou-se da polia do motor, mediu com calma, e, depois de alguns instantes de silêncio, balançou a cabeça com um sorriso de quem desvendara o enigma. Com seu sotaque carregado, disse que a polia tinha vindo errada de fábrica e precisaria ser trocada.
E foi só isso. Um detalhe tão pequeno, tão banal, escondido sob a grandiosidade daquela máquina. O técnico embarcou de volta no mesmo dia, e eu permaneci no aeroporto até vê-lo subir as escadas do avião, como se fosse um personagem que passou rapidamente pelo nosso enredo, mas deixou sua marca.
Quatro dias depois, a polia correta chegou. Fui eu mesmo quem a instalou, com as mãos firmes e o coração acelerado. E quando ligamos o compressor novamente, ele funcionou como uma beleza: suave, poderoso, como se respirasse junto com os homens e com a terra.
Esse episódio me ensinou que, por trás das pedras, das máquinas e das explosões, havia sempre um fio invisível de persistência e esperança. Papai sabia disso melhor do que ninguém. Seu trabalho não era apenas arrancar pedra da montanha, mas enfrentar cada imprevisto com coragem e inventividade.
Assim era a nossa vida: feita de pó de pedra, de motores que rugiam, de dinamite que tremia o chão e de pequenas vitórias que, no fundo, tinham um sabor grandioso. Era mais do que trabalho; era quase poesia escrita no coração da pedreira.
Achillis cheib
O Relógio da Infância – do livro Éramos Dez
Hoje a saudade chegou de mansinho, como costuma fazer. Não bate à porta, não avisa — apenas chega, se instala e começa a abrir as janelas do coração. Foi assim que me vi de volta ao tempo em que o Natal tinha o brilho da inocência e o calor da presença dos meus pais. Bastou um pensamento, uma lembrança qualquer, e lá estava eu outra vez na casa grande, cheia de vozes, de risadas e de amor.
Mamãe amava o Natal com uma devoção que só quem viveu ao lado dela poderia entender. Para ela, o Natal não era apenas uma data — era um sentimento. Era a prova de que o amor existia, de que a família era o bem mais precioso que se podia ter. Ela começava a se preparar muito antes de dezembro chegar. Fazia listas, anotava nomes, pensava em cada pessoa da família, em cada filho, neto e bisneto. Ninguém podia ficar sem presente. Dizia que o Natal era tempo de lembrar dos outros, e que esquecer alguém era como apagar uma estrela do céu da família.
Eu ainda consigo vê-la, andando apressada pelas ruas do centro, o olhar firme, o sorriso doce, a bolsa cheia de pacotes. Ela sabia de cor o gosto de cada um. Um presente pra um, um brinquedo pra outro, um perfume pra alguém especial. Fazia tudo com o mesmo amor, sem jamais se cansar. E quando a véspera do Natal chegava, a casa se transformava num verdadeiro lar de alegria.
A mesa era grande, o cheiro da ceia se espalhava pelo ar e o rádio tocava as músicas antigas que se misturavam ao barulho das risadas. Éramos oito filhos — oito corações batendo juntos sob o mesmo teto. A casa parecia viva. As crianças corriam, os adultos se cumprimentavam, os copos tilintavam, e papai observava tudo com aquele olhar calmo e orgulhoso de quem sabia que sua maior riqueza estava ali, reunida.
Papai era um homem de poucas palavras, mas de gestos imensos. Seu jeito firme e sereno nos ensinou o valor da honestidade e da responsabilidade. Era o alicerce da casa. Mamãe era o coração — o amor em forma de pessoa. Juntos, fizeram de nós o que somos. E mesmo depois que o tempo levou cada um para seu canto, o que ficou foi a marca profunda da educação, da união e do respeito que eles nos ensinaram.
Mas há lembranças que brilham com mais força no meio de todas. Uma delas é o dia em que ganhei o meu primeiro relógio. Eu devia ter uns seis ou sete anos. Era o meu aniversário e mamãe me levou ao centro da cidade. Lembro como se fosse hoje. O sol brilhava, as pessoas andavam apressadas, e eu caminhava ao lado dela sentindo o conforto de sua mão segurando a minha.
Quando chegamos à praça, ela me sentou num banco e me perguntou, com aquele olhar cheio de ternura:
— “Meu filho, o que você gostaria mais de ganhar no seu aniversário?”
Eu pensei por um instante, olhei pra ela e respondi:
— “Um relógio.”
Ela sorriu. Era um sorriso cheio de amor e compreensão, desses que só uma mãe sabe dar. Levantou-se, me deu a mão e disse:
— “Então vamos escolher o seu.”
Entramos na loja Sloper, que ficava ali no centro, e até hoje eu consigo lembrar do som da porta se abrindo, do perfume leve de madeira e vidro novo, e dos relógios enfileirados nas vitrines. Eu fiquei encantado. Aqueles pequenos instrumentos pareciam mágicos, cada ponteiro marcando um pedacinho do tempo.
Mamãe me deixou escolher.
E eu escolhi o mais bonito de todos — um relógio suíço, verdadeiro, com pulseira marrom e ponteiros dourados. Ela pagou, colocou o relógio no meu pulso e me disse, com a voz suave e firme:
— “Agora o tempo também é seu. Cuide bem dele.”
Depois fomos tomar sorvete. Eu estava radiante. Olhava o relógio o tempo todo, como se tivesse acabado de receber o maior tesouro do mundo. E de certa forma, tinha mesmo. Aquele relógio não era apenas um objeto. Era o símbolo do amor de uma mãe, o sinal de que ela me via crescendo, caminhando para a vida.
O tempo passou, como passa pra todos. O relógio, um dia, se perdeu — mas a lembrança dele nunca. Ficou guardada dentro de mim como uma fotografia que o coração conserva com zelo.
A vida seguiu seu rumo. Os oito filhos cresceram, formaram suas famílias, construíram caminhos próprios. E, como é da natureza das coisas, aos poucos a casa foi ficando mais vazia. O som das vozes se tornou memória, as cadeiras foram se esvaziando uma a uma. Um irmão partiu, depois outro, e mais outro. Mamãe e papai também se foram levando consigo um pedaço grande da nossa alma.
Hoje, quando penso nisso tudo, sinto um misto de tristeza e gratidão. Tristeza pelas ausências, mas gratidão por ter vivido tudo aquilo. Gratidão por ter tido pais como os meus e irmãos como os que Deus me deu. Éramos dez — e o amor que nos unia era tão grande que nem o tempo conseguiu desfazer.
Agora somos dois: eu e minha irmã.
Dois guardiões da memória. Dois ramos que ainda florescem na árvore da nossa família. Ela é meu porto seguro, minha companheira de jornada, a parte viva da minha infância. Conversamos todos os dias. Ela se preocupa comigo com a mesma ternura que mamãe tinha. Às vezes me liga só pra perguntar se comi, se dormi, se estou bem. É nessas pequenas coisas que vejo o quanto o amor sobrevive.
E não é só ela. Os filhos dela, meus sobrinhos amados, também carregam esse mesmo espírito. São atenciosos, carinhosos, presentes. Sempre se preocupam comigo, me, incluem na vida deles. E toda vez que isso acontece, eu vejo que o legado de mamãe e papai continua vivo. Vejo neles o mesmo cuidado, o mesmo amor, o mesmo valor de família que nos formou.
Às vezes penso que o amor é como uma herança invisível: passa de geração em geração, silencioso, mas imenso. É ele que mantém as famílias unidas, mesmo quando o tempo tenta separá-las.
Hoje, quando chega o Natal, é impossível não voltar àquele tempo antigo. Ainda posso sentir o cheiro da ceia, ouvir as músicas do rádio, ver o brilho das luzes piscando na varanda e mamãe no meio de todos, sorrindo, vitoriosa, feliz por ter todos os filhos reunidos. Aquelas noites eram mágicas. O amor estava em cada olhar, em cada gesto, em cada risada.
O Natal de agora é mais silencioso.
Mas dentro de mim, ele continua cheio.
Porque cada lembrança é uma forma de presença.
Cada memória é um abraço que o tempo não consegue desfazer.
Hoje, quando o silêncio chega, fecho os olhos e volto a ser aquele menino com o relógio no pulso, andando ao lado de mamãe, sentindo que o mundo era um lugar bom, seguro e cheio de amor.
O relógio talvez tenha parado, mas o tempo dela em mim continua batendo.
Papai e mamãe continuam vivos — não nos retratos, mas no que somos.
Vivem na bondade da minha irmã, na generosidade dos meus sobrinhos, no carinho que eles me oferecem, no respeito e no amor que herdamos todos juntos.
E é por isso que, mesmo com o coração cheio de saudade, eu posso dizer que a vida foi boa comigo.
Porque eu tive uma família.
Tive pais que ensinaram o valor da honestidade e do amor.
Tive irmãos que fizeram da infância uma festa.
Tenho uma irmã que ainda hoje me cuida e me ama.
E tenho sobrinhos que me provam, a cada dia, que a família verdadeira nunca acaba — apenas muda de forma.
O tempo passa, sim.
Mas há coisas que o tempo nunca leva.
O amor, por exemplo.
O amor é o relógio da eternidade.
E eu sigo aqui, com esse relógio invisível batendo dentro de mim, marcando não as horas, mas as lembranças.
Marcando o tempo do afeto, o tempo da gratidão, o tempo da vida que valeu a pena ser vivida.
Porque é isso que somos — o resultado de todos os abraços que recebemos, de todas as palavras boas que ouvimos, de todos os gestos de amor que nos formaram.
Éramos dez.
Agora somos dois.
Mas dentro de nós vivem os dez.
E enquanto houver amor, enquanto houver lembrança, enquanto houver fé, nenhum de nós estará realmente sozinho.
Agradeço a Deus pelos pais maravilhosos que tive, por cada irmão e irmã que fez parte da minha história, por cada lembrança que me acompanha.
Agradeço especialmente à minha irmã, companheira fiel, presença constante, amor que não se mede.
E agradeço também aos meus sobrinhos — filhos dela, que herdaram o mesmo coração generoso dos avós.
Obrigado pelo cuidado, pelo carinho, pelas palavras, pelas preocupações sinceras.
Vocês são a continuação viva daquilo que fomos, a prova de que o amor da nossa família não se perdeu.
Vocês são o meu orgulho, a minha alegria e o meu consolo.
Enquanto eu viver, levarei comigo cada um de vocês — como quem carrega no peito o som doce de um relógio que não para,
marcando para sempre o tempo da saudade, da gratidão e do amor.
Achillis cheib
Há um instante na vida em que o coração, já cansado de apenas sentir, pede para escrever. Talvez seja porque a memória começa a se encher de vozes, risos, abraços que já não cabem mais só dentro de nós. É como se o tempo, com sua pressa silenciosa, dissesse: “coloque no papel, antes que o vento leve”. E então, sem planejar, eu me descobri escritor de minha própria vida, guardião das lembranças de uma família que me fez ser quem sou.
Escrever tornou-se um ato de amor. Cada palavra que brota da minha mão é como um afago em quem já partiu, como se eu conseguisse chamar de volta para perto aqueles que a saudade insiste em manter longe. Há uma ternura inexplicável em revisitar a infância: a casa cheia, o cheiro de café passado na hora, os pés descalços correndo no quintal, as histórias contadas na beira da mesa. É doce, mas também é dolorido, porque lembrar é também reconhecer que o tempo não para, e que muitos já seguiram viagem para além da vida.
Ainda assim, escrever me ensina algo precioso: envelhecer é privilégio. É poder contar histórias que outros não tiveram tempo de deixar. É ser testemunha das gerações que vieram antes e das que estão chegando agora. É poder olhar para trás com lágrimas nos olhos, mas também com um sorriso nos lábios, porque se houve despedidas, também houve encontros; se houve silêncios, também houve músicas que ainda ecoam dentro de mim.
Meu editor pede que eu pare, que eu dê um tempo, que eu deixe o livro respirar. Ele me diz: “já temos páginas suficientes para contar uma vida inteira”. Mas como deter o rio da memória, se cada dia ele me traz uma nova correnteza? Como dizer ao coração para não escrever, se escrever é a forma que ele encontrou de continuar vivendo? Então, obedeço pela metade: deixo o livro de família em repouso, mas abro um novo espaço, um caderno em branco para que outras palavras possam florescer.
Talvez este seja meu destino: nunca parar de escrever. Se não for sobre a família, será sobre o amor; se não for sobre o passado, será sobre o presente; se não for sobre mim, será sobre os outros, porque todos carregamos histórias que merecem ser contadas.
Escrever é meu romance eterno. É a mão que acaricia a memória, é o abraço que consola a saudade, é a promessa de que nada será completamente esquecido enquanto houver tinta, papel e coração.
Escrever se tornou, para mim, o mais delicado dos romances. Não é um romance de duas pessoas, mas de um ser humano com o próprio tempo, com a vida e com tudo aquilo que insiste em permanecer dentro da alma. Quando a caneta toca o papel — ou quando os dedos se apressam no teclado — sinto como se abrisse uma janela secreta, por onde escapa a poesia que o cotidiano, às vezes, tenta esconder.
Comecei escrevendo sobre a minha família, acreditando que seria apenas um registro, uma lembrança para os que viessem depois. Mas descobri, com surpresa e encantamento, que cada memória é uma flor que, ao ser tocada, espalha sementes para todos os lados. Agora, já não escrevo apenas sobre o que vivi: escrevo também sobre o que sonhei, sobre o que perdi, sobre aquilo que ainda espero encontrar.
O coração humano é vasto demais para caber em um único livro. É por isso que nascem outros: porque sempre há mais a dizer, mais a sentir, mais a compartilhar. Este novo caminho que abro diante de mim não é feito apenas de lembranças; é feito de perguntas, de olhares demorados para o pôr do sol, de silêncios que guardam mais do que mil palavras, de encontros inesperados que mudam o rumo de uma vida inteira.
Quero escrever sobre o amor em suas muitas formas: o amor que começa como faísca e se torna incêndio, o amor que dura mesmo depois da despedida, o amor que não se diz em palavras, mas em gestos pequenos e quase invisíveis. Quero escrever sobre o tempo, esse senhor misterioso que nos tira tanto e, ainda assim, nos oferece a beleza de cada manhã. Quero escrever sobre a vida que pulsa nas coisas simples: no cheiro da terra molhada, na música que brota de uma janela distante, no sorriso que nasce sem motivo.
Este livro não tem pressa. Ele é feito para ser lido como quem bebe um vinho devagar, saboreando cada gole. É feito para os que acreditam que a vida, apesar das dores e das perdas, é um romance que vale a pena ser contado.
Se no livro de família eu fui guardião das memórias, neste eu me torno peregrino das emoções. Caminharei por dentro de mim e também pelos caminhos dos outros, e cada crônica, cada reflexão, será uma tentativa de traduzir em palavras aquilo que, no fundo, todos nós sentimos, mas nem sempre conseguimos dizer.
Porque escrever, afinal, é isto: transformar a vida em eternidade.
Há momentos em que a vida parece pedir silêncio, mas dentro de mim só cresce a vontade de escrever. Não escrevo para ser lido, escrevo para existir. Cada palavra que nasce é como uma chama pequena, acendendo um canto escuro do coração.
Descobri que recordar não é apenas visitar o passado — é reencontrar a mim mesmo em cada lembrança. É ouvir, no eco distante da infância, a voz da mãe chamando para o jantar, o riso dos irmãos correndo pelo quintal, o cheiro do bolo assando no forno. Mas também é sentir o vazio dos que já se foram, e compreender que amar é sempre viver com um pouco de saudade.
Há uma beleza imensa em perceber que envelhecer não é perder a juventude, mas ganhar camadas de memória, como um livro que se escreve página por página. Cada ruga é uma linha de poesia que o tempo escreve em nós, cada lágrima é uma palavra sublinhada pela intensidade da vida.
Escrever é meu modo de amar. Amar quem já partiu, amar quem permanece, amar até os desconhecidos que talvez encontrem nestas linhas um reflexo de si mesmos. Quando escrevo, me sinto acompanhado — como se todas as pessoas que amei estivessem sentadas ao meu redor, escutando, sorrindo, acenando com ternura.
E é por isso que não quero parar. Mesmo que me peçam descanso, mesmo que digam que já há páginas demais, sei que enquanto houver fôlego em mim, haverá mais uma história, mais um devaneio, mais um gesto de amor colocado em palavras.
Porque a vida é breve, mas a escrita... a escrita é infinita. Ela estende os dias, multiplica os instantes, transforma o que dói em consolo e o que alegra em eternidade.
E se um dia me perguntarem por que nunca deixei de escrever, responderei com simplicidade: porque cada palavra foi uma maneira de dizer “eu vivi, eu amei, eu senti”.
O tempo é um artista silencioso. Ele pinta nossas vidas em tons que às vezes não compreendemos: uns dias em aquarela, suaves e claros como manhãs de primavera; outros, em traços fortes, quase ásperos, que parecem rasgar a tela da existência. Mas, no fundo, há sempre delicadeza na maneira como ele nos ensina.
Na infância, o tempo é generoso: abre os dias largos, deixa que o sol se demore mais no quintal, nos dá a sensação de que tudo será eterno. Quando crescemos, ele se torna apressado, quase impaciente, como quem nos lembra que precisamos escolher caminhos, plantar sonhos, construir destinos. E quando a velhice se aproxima, o tempo se torna sábio e lento: ensina a olhar para trás com ternura, a aceitar que a vida é feita de chegadas e partidas, a agradecer por cada instante que ainda se abre diante de nós.
Sim, envelhecer é um privilégio. Há dor, é verdade — a dor de perder, de sentir a ausência, de carregar silêncios que antes eram vozes. Mas também há beleza: é quando compreendemos que cada rosto querido que partiu não se perdeu de fato, apenas mudou de lugar dentro de nós. Agora eles habitam em nossas palavras, em nossos gestos, na forma como aprendemos a amar.
Escrever sobre o tempo é também escrever sobre o amor. Porque só quem ama sente a urgência de guardar as horas, de congelar os instantes, de transformar em eternidade aquilo que o relógio insiste em roubar. É no amor que o tempo encontra seu maior desafio: ele pode desgastar o corpo, mas não consegue apagar a lembrança de um olhar, de um toque, de um sorriso que marcou para sempre.
E talvez seja essa a razão pela qual escrevo sem descanso: porque sei que, ao colocar no papel, eu engano o tempo. Transformo em permanência aquilo que parecia passageiro. Dou à saudade um corpo de palavra. Dou à memória um coração novo.
Escrever, no fim das contas, é um pacto secreto com a delicadeza da vida: mesmo
sabendo que tudo passa, eu insisto em registrar como se fosse eterno.
O amor é o grande mistério que move a vida. Não falo apenas do amor entre dois corpos que se buscam, mas do amor em todas as suas moradas: o amor que nasce no silêncio de um olhar, o amor que cresce no cuidado de uma mãe, o amor que se esconde no sacrifício de um pai, o amor que se espalha entre amigos que se reconhecem como irmãos.
Há quem pense que o amor se mede em grandes gestos, mas ele é feito de detalhes quase invisíveis. É o café servido ainda quente, o bilhete deixado na mesa, o abraço que chega sem pedir licença, o sorriso que diz “estou aqui” mesmo quando não há palavras. O amor verdadeiro não grita, não exige, não precisa de palco: ele floresce em segredo, como uma rosa que se abre durante a madrugada.
Com o tempo, descobri que o amor não é algo que temos, mas algo que somos. Quando amamos, transbordamos. Tornamo-nos mais generosos, mais humanos, mais próximos daquilo que é divino. O amor é a ponte entre o que é passageiro e o que é eterno. Tudo o que amamos, de algum modo, nunca morre — porque passa a existir dentro de nós como chama que o vento não apaga.
E mesmo quando dói, mesmo quando parte, mesmo quando se transforma em saudade, o amor continua sendo presente. Porque amar é, antes de tudo, permitir-se viver de forma inteira. Quem ama não guarda reservas: entrega-se ao instante, oferece-se ao outro, escreve no coração uma história que o tempo não consegue apagar.
Escrevo sobre o amor porque é impossível não o escrever. Ele está em cada linha que nasce, em cada memória que guardo, em cada silêncio que transformo em palavra. Talvez toda a minha escrita seja apenas isso: uma declaração interminável de amor à vida e às pessoas que cruzaram meu caminho.
E se um dia me perguntarem o que aprendi com a escrita, direi sem hesitar: aprendi que o amor é a única herança que realmente deixamos no mundo.
A saudade é uma companheira que chega sem ser chamada e, ainda assim, nunca nos abandona. Ela se instala no peito como quem acende uma vela que não se apaga: ora ilumina, ora queima, mas sempre permanece.
É curioso como a saudade se apresenta em formas diferentes. Às vezes, é um nó na garganta quando ouvimos uma música antiga. Outras vezes, é um sorriso inesperado ao sentir um perfume que nos leva de volta para um abraço que já não existe. Há dias em que ela pesa como pedra, e outros em que é leve como brisa — quase doce, como se dissesse: “olha, você viveu algo tão bonito que vale a pena ser lembrado”.
Sim, a saudade dói. Dói porque nos lembra do que já não volta, do que o tempo levou, das pessoas que seguimos amando mesmo além da vida. Mas também é verdade que só sente saudade quem amou de verdade. Ela é a prova silenciosa de que algo foi tão grande, tão intenso, tão verdadeiro, que se recusou a desaparecer.
Escrevendo, aprendi que a saudade também pode ser consolo. Quando coloco no papel as lembranças de quem já se foi, é como se eu abrisse uma porta e eles entrassem novamente, sentando-se ao meu lado, sorrindo outra vez, respirando dentro das palavras. É por isso que digo: a saudade não é ausência, é presença em outra forma.
E, de certo modo, é ela quem nos ensina a valorizar o instante. Porque quando sabemos que tudo pode se tornar saudade, passamos a viver com mais delicadeza. Cada abraço se torna sagrado, cada riso é guardado como tesouro, cada olhar é gravado como promessa de eternidade.
Se a vida fosse feita apenas de presenças, talvez não tivesse tanta profundidade. É a saudade quem dá peso às nossas memórias, quem coloca poesia nas despedidas, quem transforma o “adeus” em “para sempre”.
E por isso, escrevendo, descubro: a saudade é uma forma de amor que se recusa a morrer.
A infância é o lugar onde a vida guarda seus tesouros mais puros. É um tempo que nunca se perde, apenas se esconde dentro de nós, esperando o momento de ser chamado pelas lembranças. Basta um cheiro, uma música ou até mesmo o som da chuva batendo no telhado para que, de repente, sejamos levados de volta ao quintal de outrora, ao chão de terra batida, ao sorriso desdentado que hoje só existe em fotografia.
Na infância, tudo era grande: o céu parecia não ter fim, o mundo cabia dentro da rua da nossa casa, e a felicidade morava em coisas tão pequenas que hoje parecem impossíveis — uma bola feita de meia, uma pipa no alto, uma tarde inteira correndo sem pressa de chegar.
Havia também a magia das histórias contadas pelos mais velhos. Sentar-se à mesa, ouvir as vozes da família, sentir o cheiro da comida se espalhando pela casa — era como estar dentro de um livro vivo, onde cada gesto era ensinamento e cada olhar carregava amor. Essas lembranças, mesmo envoltas em saudade, são como estrelas: continuam brilhando no céu da memória, mesmo quando a noite já avançou.
O mais belo da infância é que nela não existe tempo. Os dias pareciam infinitos, e a alegria não pedia motivo para existir. Talvez seja por isso que, ao lembrar dela, sentimos um misto de ternura e dor: ternura pelo que vivemos, dor por saber que não voltará.
Mas, no fundo, a infância nunca nos abandona. Ela se esconde em nossos gestos, aparece no brilho dos olhos quando rimos sem motivo, renasce cada vez que ensinamos uma criança a brincar. Ela é a raiz de tudo o que somos.
E escrever sobre a infância é como abrir um álbum de memórias invisíveis: páginas que não se rasgam, fotografias que o tempo não amarela, vozes que continuam a nos chamar pelo nome.
Sim, a infância é eterna. Vive em cada um de nós, guardada no cofre secreto do coração.
A esperança é a chama discreta que insiste em arder, mesmo quando o vento sopra forte. Ela não se exibe, não faz alarde — apenas permanece, escondida no canto mais íntimo do coração, lembrando-nos de que nenhum inverno é eterno, de que sempre há uma primavera esperando para florescer.
É curioso como a esperança se revela em pequenas coisas. Está no botão de flor que insiste em nascer entre as pedras, no riso de uma criança que corre sem medo do futuro, no olhar de quem acredita que amanhã pode ser melhor do que hoje. Ela não precisa de promessas grandiosas: basta um sopro de vida, um gesto de bondade, um raio tímido de sol atravessando a janela.
Muitas vezes confundimos esperança com ilusão, mas não são a mesma coisa. A ilusão fecha os olhos para a realidade; a esperança, ao contrário, encara a dor de frente e ainda assim acredita. É uma força silenciosa que nos levanta quando tudo parece perdido, que nos faz levantar da cama em dias de sombra, que nos convida a confiar mesmo quando não temos certeza do caminho.
Eu escrevo porque tenho esperança. Cada palavra lançada ao papel é como uma semente que deposito na terra do tempo. Talvez um dia alguém a encontre e nela descubra consolo, coragem ou mesmo um motivo para sorrir. Essa é a beleza da esperança: ela não pertence apenas a quem a sente, mas se espalha, contagia, renova.
E, no fundo, é a esperança que nos mantém vivos. Não é o passado, cheio de lembranças; nem o presente, cheio de incertezas. É o futuro, esse território invisível onde guardamos nossos sonhos. A esperança é a ponte que nos leva até lá.
Por isso, ainda que o coração às vezes doa de saudade, ainda que o corpo canse e o tempo pese, sigo escrevendo. Porque cada linha é uma maneira de dizer: a vida continua, e há sempre um amanhecer à espera.
A vida é feita de milagres tão discretos que, muitas vezes, passamos por eles sem perceber. Estamos acostumados a buscar grandes acontecimentos, mas a verdade é que a essência do existir mora nas coisas simples, nas pequenas delicadezas que dão sentido aos dias.
Há poesia no cheiro do café fresco pela manhã, no vento que bagunça os cabelos, no canto de um pássaro que insiste em acordar a cidade. Há beleza no sorriso de alguém que passa na rua e nem sabe que iluminou nossa tarde, no abraço demorado que parece costurar de volta as partes rasgadas da alma, no silêncio tranquilo de um fim de dia que nos convida a agradecer.
A simplicidade é uma linguagem secreta da vida. Ela nos ensina que não é preciso muito para ser feliz — basta saber enxergar. Quem aprende a olhar com olhos simples descobre tesouros escondidos em cada esquina: a ternura de um olhar, a lealdade de um cachorro que espera na porta, a mão estendida de um amigo, o pôr do sol que se repete e, ainda assim, nunca é igual ao anterior.
Talvez a verdadeira riqueza seja essa: colecionar momentos simples que se transformam em eternidade. Porque, no fim, não nos lembraremos das grandes conquistas materiais, mas do riso que compartilhamos, das conversas ao redor da mesa, da leveza de uma tarde sem pressa.
Escrevendo, percebo que minha maior herança não será feita de coisas, mas de palavras. Palavras simples, mas cheias de amor. Palavras que guardam gestos, que eternizam pequenos instantes, que transformam o cotidiano em poesia.
A vida não exige grandiosidade: exige presença. Estar inteiro no agora, saborear cada instante como se fosse único, agradecer pelo sopro de ar, pelo pão na mesa, pelo coração que insiste em bater.
E é assim que descubro que a simplicidade não é falta — é abundância. É ter olhos para o que realmente importa, e coração para sentir que, mesmo nas coisas pequenas, mora a grandeza da vida.
Os sonhos são pássaros que habitam a alma, mesmo quando o corpo permanece preso às responsabilidades do dia a dia. Eles não perguntam se estamos prontos; apenas nos chamam a voar, a imaginar, a acreditar que há algo além do que os olhos podem ver.
Há sonhos que são silenciosos e tímidos, como uma vela acesa no canto de um quarto, e há sonhos que explodem como fogos de artifício, iluminando o céu inteiro da vida. Alguns nos levam a lugares distantes, outros nos devolvem a nós mesmos, em lembranças, paixões e descobertas que nem sabíamos existir.
Sonhar é um ato de coragem. É permitir-se acreditar que o impossível pode se tornar possível, que o horizonte não é limite, que cada amanhecer traz uma oportunidade de recomeçar. Mesmo quando a realidade insiste em nos dobrar, os sonhos permanecem: persistentes, silenciosos, insistentes. Eles são o sopro de eternidade que nos lembra que somos mais do que corpos, mais do que circunstâncias; somos possibilidades infinitas.
Escrever sobre os sonhos é, de certo modo, tocá-los com as mãos, dar-lhes forma e cor, transformá-los em algo tangível. Cada palavra é uma asa, cada frase, um voo. E, mesmo que alguns sonhos se percam no caminho, é no ato de sonhar que encontramos a força para continuar.
E a beleza é que os sonhos não envelhecem. Eles podem mudar de forma, podem adormecer por um tempo, podem até se esconder atrás de medos e preocupações, mas nunca morrem. Basta uma lembrança, uma palavra, uma esperança, para que eles levantem voo novamente, levando-nos junto com eles.
Escrevo porque sonhar é preciso. E escrever é a forma que encontrei de manter todos os meus sonhos acordados, como se o papel fosse o céu infinito onde eles podem voar livres, sem medo, sem limites, sem tempo.
Achillis cheib
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